A língua humana (III)

nov 03, 2014 | por Sandra Merlo | Histologia, Língua humana

Woman looking through microscopeNeste terceiro texto da série, vou abordar a anatomia microscópica da língua no que diz respeito à musculatura.

 

Histologia dos músculos da língua

A seguir, analiso duas publicações de histologia em relação aos músculos da língua.

No atlas de histologia que foi consultado [1], há duas grandes seções de capítulos: os relacionados a tecidos (epitelial, conjuntivo, muscular, etc.) e os relacionados a sistemas (digestivo, respiratório, urinário, etc.).

O capítulo chamado “Tecido muscular” (pp. 44-47) apresenta os três tipos de fibras musculares: liso, estriado esquelético e estriado cardíaco. Para ilustrar o tecido muscular estriado esquelético foi escolhida justamente uma amostra da língua. O corte apresentado foi analisado em microscópio óptico com aumento de 320 vezes. Por questões de direito autoral, a lâmina não pode ser apresentada aqui. Mas o leitor pode acompanhar pelo “Atlas Eletrônico de Histologia”: nesta página, a primeira e a terceira imagens apresentam, respectivamente, um corte longitudinal e um corte transversal da musculatura da língua. Mais ilustrativa ainda é a seção “Tecido muscular esquelético estriado” do site “Microscopia onLine” (embora não se trate de musculatura específica da língua).

O autor do atlas [1] apresenta as fibras musculares da língua como sendo da variedade esquelética, mas, conforme apontei no texto anterior desta série, os músculos intrínsecos da língua não são realmente esqueléticos (por não se originarem ou se inserirem em ossos do esqueleto). Entretanto, por serem os únicos quatro músculos estriados do organismo a não se encaixarem na classificação, a nomenclatura é mantida.

No corte apresentado [1]:

  • São vistos fascículos orientados longitudinalmente e outros orientados transversalmente. Talvez este tenha sido o motivo para a escolha da língua para ilustrar esta variedade muscular: em qualquer tipo de corte (sagital, coronal ou axial) na língua, encontram-se fibras musculares orientadas em diferentes sentidos (ver seção “Atlas anatômico tridimensional dos músculos da língua” neste texto).
  • Nas fibras com orientação longitudinal, observam-se claramente linhas mais escuras intercalando-se com linhas mais claras. É exatamente este aspecto listrado que confere a esta musculatura o nome de “estriada”. As linhas correspondem a filamentos de actina (bandas claras) ou a filamentos de actina e miosina (bandas escuras). Maiores informações na seção “A célula muscular” deste texto.
  • São vistos claramente diversos fascículos, ou seja, coleções de células musculares reunidas por tecido conjuntivo. O tecido conjuntivo que delimita fascículos musculares é chamado de perimísio. No corte apresentado, especificamente em relação aos fascículos orientados transversalmente, há três deles que estão completos e que possuem 4, 12 e 22 células.
  • No interior da cada fascículo, também é possível visualizar que as células apresentam certa distância entre si. Esta distância é causada pela presença de tecido conjuntivo, o qual, neste caso, recebe o nome de endomísio. A presença do endomísio demonstra outra característica das fibras musculares: elas não se anastomosam, ou seja, não se comunicam entre si.

Ainda no atlas de histologia [1], o capítulo “Aparelho digestivo” apresenta uma subseção específica sobre a língua (pp. 82-85). As três lâminas apresentadas descrevem a língua como um todo e não apenas em seu aspecto muscular. É dada bastante ênfase para as papilas gustativas, para as diferenças entre a mucosa do dorso e do ventre e também para as glândulas.

No livro-texto de histologia que foi consultado [2], há o capítulo “Células contráteis”, que analisa principalmente o processo molecular de contração muscular. No capítulo “O trato alimentar”, há uma seção específica para a língua. Neste seção, são descritos todos os tecidos que compõem a língua, com grande ênfase para as papilas gustativas. A musculatura da língua é descrita brevemente: como sendo formada por fibras que se organizam em diversos (sentidos longitudinal, vertical, transversal e oblíqua) e que isso é importante para a mobilidade da língua.

Assim, o atlas consultado [1] apresentou ricas informações sobre a musculatura da língua, mas não o livro-texto [2]. Estes dados são similares aos de anatomia macroscópica, analisados no texto anterior desta série: o atlas apresentou ricas informações sobre a musculatura da língua, mas não os livros-texto.

 

Tipos de fibras musculares da língua

No texto anterior desta série, foram apontadas algumas diferenças dos músculos da língua humana em relação a outros mamíferos: o transverso e o genioglosso, por exemplo, são mais volumosos. Mas não é apenas em relação à anatomia macroscópica que a língua humana difere da de outros mamíferos. A língua humana também difere em relação a aspectos moleculares.

Cada molécula de miosina é composta por seis cadeias polipeptídicas: duas cadeias pesadas formam a cauda da molécula e quatro cadeias leves formam as cabeças da molécula. Dependendo das propriedades moleculares da cadeia pesada, a fibra muscular pode contrair mais lentamente, gerar menos tensão e resistir mais à fadiga (são as fibras tipo I) ou pode contrair mais rapidamente, gerar mais tensão e resistir menos à fadiga (são as fibras tipo II). Para maiores informações sobre as variações de cadeia pesada da molécula de miosina e sobre os tipos de fibras musculares, veja este texto.

Um estudo realizado por Ira Sanders & colaboradores [3] ilustrou a complexidade das fibras dos músculos da língua: a proporção de fibras musculares não é homogênea em relação às três partes da língua, em um mesmo músculo, em músculos diferentes, em idades diferentes ou em condições adversas de saúde.

  1. A lâmina apresenta menor concentração de fibras tipo I em comparação ao corpo e à base.
  2. O músculo longitudinal superior apresenta proporções diferentes de fibras tipo I na região da lâmina (menor proporção), nas laterais do corpo e da base (proporção intermediária) e na região medial do corpo e da base (maior proporção).
  3. O vertical é o músculo que apresenta menor proporção de fibras tipo I, enquanto o longitudinal inferior e o transverso são os que apresentam maior proporção de fibras tipo I.
  4. Adultos e crianças apresentam maior proporção de fibras tipo I nos músculos da língua em relação a recém-nascidos.
  5. Adultos com doença de Parkinson apresentam menor concentração de fibras tipo I em comparação a adultos sem Parkinson.

Para maiores informações sobre as fibras musculares da língua, veja este texto.

Ao que tudo indica, o aumento de fibras musculares tipo I na língua humana foi uma das mudanças evolutivas que possibilitou o desenvolvimento da fala tendo em vista que outros primatas e mamíferos apresentam menor número de fibras tipo I em suas línguas. Portanto, a redução da velocidade de contração, a redução da tensão isométrica e a maior resistência à fadiga são características necessárias para a produção da fala.

 

Referências

[1] Di Fiore, M. S. H. (1991). Atlas de histologia. 7ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.

[2] Stevens, A. & Lowe, J. (1995). Histologia. São Paulo: Manole.

[3] Sanders, I. et al. (2013). The human tongue slows down to speak: muscle fibers of the human tongue. The Anatomical Record, 296 (10): 1615-27.