A língua humana (VII)

mar 23, 2015 | por Sandra Merlo | Anatomia, Língua humana

NeuronsOs textos anteriores abordaram os movimentos da língua durante a fala e as funções alimentares (mastigação e deglutição). Este texto aborda o comando neural final dos movimentos da língua.

 

Bulbo

O bulbo é a região mais inferior do encéfalo, localizado abaixo da ponte e acima da medula espinhal [1, 2]. Veja aqui uma imagem da região anterior e aqui da região posterior do bulbo. O bulbo, a ponte e o mesencéfalo constituem o chamado tronco encefálico [1, 2].

A anatomia macroscópica do bulbo deixa claro muitas de suas estruturas importantes [2].

Na região anterior do bulbo, estão as pirâmides, que são colunas salientes bilaterais localizadas em toda sua face anterior e separadas entre si pela fissura mediana [1]. As fibras que passam e formam as pirâmides são descendentes, trazendo impulsos motores do giro pré-central: é o trato piramidal ou trato corticoespinhal [1, 2]. Na parte mais inferior, as fibras desse trato cruzam para o lado oposto. O cruzamento das fibras é visível macroscopicamente e é chamado de decussação das pirâmides [1]. É devido a esse cruzamento das fibras que o hemisfério cerebral esquerdo controla os movimentos do lado direito do corpo e vice-versa.

Na região lateral do bulbo, estão as olivas, que também são saliências, mas localizadas mais lateralmente e separadas das pirâmides pelo sulco lateral anterior [1, 2]. As olivas são compostas por três núcleos: olivar inferior, olivar acessório dorsal e olivar acessório medial [3]. Logo depois das olivas está o sulco lateral posterior.

Na região posterior do bulbo, estão os fascículos cuneiforme e grácil, separados entre si pelo sulco intermédio posterior. Esses fascículos são compostos por fibras ascendentes provenientes da medula espinhal. Eles terminam no próprio bulbo, na região dos tubérculos cuneiforme e grácil, que são os núcleos dos fascículos. O sulco mediano posterior delimita as partes direita e esquerda da região posterior.

O canal central da medula espinhal continua no interior do bulbo até sua porção média [1]. O canal do bulbo se abre para a formação do IV ventrículo encefálico [1].

A anatomia macroscópica sinaliza uma das funções do bulbo, que é servir de “via expressa” para centros superiores e inferiores do sistema nervoso [2]. Assim, o bulbo dá passagem para tratos ascendentes, relacionados à sensibilidade, provenientes de todo o corpo: da cabeça e do pescoço através do sistema trigeminal e do tronco e dos membros através da medula espinhal [2]. O bulbo também dá passagem para tratos descendentes, relacionados à motricidade, provenientes do telencéfalo e do diencéfalo [2].

Como o bulbo é uma região antiga filogeneticamente, uma de suas funções é controlar as funções vitais. Funções como frequência cardíaca, pressão arterial, respiração, mastigação, deglutição e vômito possuem seus núcleos no bulbo [1]. Por isso, o bulbo também é chamado de centro vital. Esses núcleos integram a formação reticular do tronco encefálico, a qual é responsável por regular o nível de consciência [1, 2].

O bulbo também abriga os núcleos dos quatro últimos nervos cranianos: glossofaríngeo, vago, acessório espinhal e hipoglosso [1, 2]. Levando em consideração que o bulbo abriga os centros da mastigação, da deglutição e do vômito, não é à toa que os núcleos dos quatro últimos nervos cranianos também estejam localizados nele, porque esses são nervos exatamente relacionados à sensibilidade e motricidade de língua, faringe e laringe.

 

Nervo hipoglosso: XII par craniano

O nervo hipoglosso é o responsável direto pela mobilidade de todos os músculos da língua (intrínsecos e extrínsecos) [1, 4]. O hipoglosso é essencialmente um nervo motor [1, 2, 4]. Assim como todos os nervos, o hipoglosso é classificado como fazendo parte do sistema nervoso periférico [1].

Não é possível dizer que o hipoglosso seja um nervo exclusivamente motor, porque ele apresenta algumas fibras sensitivas [1]. Essas fibras estão relacionadas à propriocepção, ou seja, são fibras que fornecem informações ao sistema nervoso central (SNC) sobre o grau de contração muscular e, consequentemente, permitem ao SNC estimar a posição de cada músculo.

Existem nervos que são chamados de “cranianos” e outros que são chamados de “espinhais”. Os nervos cranianos são em número de 12 e têm esse nome porque seus núcleos estão localizados no encéfalo [1]. Os nervos cranianos costumam ser numerados por algarismos romanos, do mais superior para o mais inferior, na sequência em que suas raízes emergem do encéfalo [1]. Por outro lado, os nervos espinhais são em número de 31 e têm esse nome porque seus núcleos estão localizados na medula espinhal [1].

O hipoglosso é um nervo craniano, porque emerge do bulbo. Mais especificamente, é o XII par craniano, o último deles [1, 2, 4]. O núcleo do hipoglosso está localizado na parte posterior do bulbo, praticamente ao longo de toda a região paramediana [2, 4]. Veja neste esquema.

O núcleo do nervo hipoglosso apresenta organização miotópica [5]. Os músculos que fazem a protrusão da língua (transverso, vertical e genioglosso) estão representados na região anterior do núcleo. Os músculos que fazem a retrusão da língua (longitudinais, hioglosso e estiloglosso) estão representados na região posterior do núcleo. Além disso, também existem pequenos interneurônios no próprio núcleo do hipoglosso. Esses neurônios intranucleares correspondem a 5% dos neurônios do núcleo [5].

Os corpos neuronais que compõem o núcleo do hipoglosso não formam uma população homogênea, ou seja, não são todos ativados ao mesmo tempo para qualquer função que envolva a mobilidade da língua. Pelo contrário, o núcleo é formado por grupos funcionais diferentes [5]. Experimentos com gatos descerebrados indicaram que [5]:

  • 20% dos corpos neuronais do núcleo do hipoglosso estão exclusivamente ligados à deglutição, ou seja, ativam-se apenas durante a deglutição, mas não durante outras funções [5]. Isso significa que os movimentos da língua durante a deglutição tem algo de exclusivo e necessitam de um grupo específico de neurônios para serem executados.
  • 30% dos corpos neuronais do núcleo do hipoglosso são ativados tanto na respiração quanto na deglutição. Isso significa que alguns movimentos da língua são compartilhados entre a respiração e a deglutição.
  • Os corpos neurais do hipoglosso ativados durante a fase inspiratória da respiração podem ser divididos em dois grupos. Os neurônios Tipo 1 são ativados durante a inspiração, logo após o reflexo de tosse e durante a deglutição. Esses neurônios provavelmente inervam o músculo estiloglosso, um dos responsáveis pela retrusão da língua. Por outro lado, os neurônios Tipo 2 são ativados durante a inspiração, durante a tosse e logo após a deglutição. Esses neurônios provavelmente inervam o músculo genioglosso, um dos responsáveis pela protrusão da língua.

As fibras do hipoglosso emergem entre as pirâmides e as olivas, no sulco lateral anterior [1, 2, 4, 5]. A saída do hipoglosso do bulbo ocorre por pequenas raízes [1, 2, 4, 5]. É clássica a representação anatômica do bulbo com as raízes do hipoglosso. Veja imagem aqui.

Depois da saída do bulbo, as raízes do hipoglosso se dirigem lateralmente e convergem para o canal do hipoglosso, que é um forâmen no osso occipital [1, 4, 5]. Veja imagem aqui e aqui. É através do canal do hipoglosso que o nervo deixa a região intracraniana e se dirige à face.

Em seguida, o hipoglosso faz uma trajetória descendente e anteriorizada até a artéria carótida interna no espaço retroestilóide [4, 5]. Logo depois da bifurcação da artéria carótida comum, no nível do corno posterior do osso hioide, o hipoglosso faz uma curva acentuada e então se dirige para frente, em direção ao mento [1, 4]. Veja nesta imagem. O hipoglosso chega à língua por baixo dela e vem daí seu nome: prefixo “hipo-” e radical “glosso”, abaixo da língua [4].

A partir da face inferior e lateral da língua, o hipoglosso emite ramos ascendentes para inervar cada um dos sete músculos linguais [4]. Da mesma forma que há organização miotópica no núcleo do hipoglosso, também há organização miotópica em seus ramos. Assim, os músculos protrusores são inervados pelo ramo medial, enquanto os músculos retrusores são inervados pelo ramo lateral [5]. O hipoglosso transmite impulsos para as fibras musculares da língua através de junções neuromusculares (para maiores informações sobre junção neuromuscular, veja este texto). As fibras sensitivas relacionadas à propriocepção se comunicam com os músculos através de fusos neuromusculares e de órgãos neurotendíneos (estes últimos apenas nos músculos extrínsecos da língua) [1].

Importante salientar a comunicação direta de ramos periféricos do hipoglosso com ramos periféricos do nervo vago (o X par craniano) [4]. O nervo vago é responsável pela contração de músculos do véu palatino, da faringe e intrínsecos da laringe. Ou seja, existe uma comunicação periférica direta entre as funções articulatórias da língua, as funções ressonantais do véu palatino e da faringe e a função fonatória da laringe.

Também importante salientar a comunicação direta de ramos do hipoglosso com os três primeiros nervos espinhais (C1, C2 e C3). O hipoglosso e os três primeiros nervos cervicais se unem no pescoço, formando a chamada alça cervical ou alça do hipoglosso [1, 4]. Veja imagem aqui.

  • C1 e C2 inervam os músculos supra-hioideos.
  • C2 e C3 inervam os músculos infra-hioideos.
  • C3 a C5 formam o nervo frênico, que supre o músculo diafragma.
  • C2 a C4 inervam os músculos esternocleidomastoideo, levantador da escápula, escaleno médio e trapézio [1].

Ou seja, os nervos cervicais estão intimamente relacionados à fala, porque suprem músculos utilizados para a produção da fala. E o hipoglosso está interconectado com os três primeiros nervos cervicais, o que sugere que ativações do hipoglosso são capazes de modificar a atividade dos três primeiros nervos cervicais (e vice-versa). Esta possivelmente é uma das razões que explicam um achado clínico frequente: a redução ou o aumento da tensão muscular cervical afeta diretamente a mobilidade da língua e a posição da língua na articulação vocálica.

Como dito, o hipoglosso inerva todos os músculos da língua. A sensibilidade lingual, por outro lado, é de responsabilidade de três outros pares cranianos: trigêmeo (V par), facial (VII par) e glossofaríngeo (IX par).

  • A sensibilidade geral é realizada pelo V e pelo VII pares [4]. O nervo lingual do V par é responsável pela sensibilidade da lâmina e do corpo da língua [4]. Por outro lado, o ramo lingual do VII par é responsável pela sensibilidade da raiz da língua.
  • A sensibilidade gustativa é realizada pelo VII e pelo IX pares [4]. O nervo intermédio do VII par supre a região da lâmina e do corpo da língua. O ramo lingual do IX par supre a raiz da língua.

As sensibilidades da língua serão abordadas em outros textos.

 

Referências

[1] Spence, A. P. (1991). Sistema nervoso periférico. In: Anatomia humana básica (pp. 419-443). 2ª ed. São Paulo: Manole.

[2] Purves, D. et al. (2004). The brainstem and the cranial nerves. In: Neuroscience (pp. 755-761). 3rd ed. Sunderland: Sinauer Associates.

[3] Departamento de Anatomia do Instituto de Biologia da UNICAMP. Bulbo (ou medula oblonga). In: Atlas básico de neuroanatomia humana. Disponível online.

[4] Figún, M. E. & Garino, R. R. (1994). Neurologia. In: Anatomia odontológica funcional e aplicada (pp. 132-182). 3ª ed. São Paulo: Panamericana.

[5] Gestreau, C.; Dutschmann, M.; Obled, S. & Bianchi, A. L. (2005). Activation of XII motoneurons and premotor neurons during various oropharyngeal behaviors. Respiratory Physiology & Neurobiology, 147, 159-176.