Como a gagueira se desenvolve

dez 19, 2017 | por Sandra Merlo | Gagueira
Como a gagueira se desenvolve: trajetórias rumo à remissão ou à cronificação

Como a gagueira se desenvolve: trajetórias rumo à remissão ou à cronificação do distúrbio de fluência

O que faz com que uma criança se recupere totalmente da gagueira, enquanto outra criança continua gaguejando? As fonoaudiólogas Anne Smith e Christine Weber, pesquisadoras de gagueira da Purdue University, propõem que a interação entre diversos fatores epigenéticos (como controle motor, linguagem e emoções) irá determinar se uma criança conseguirá ou não se recuperar da gagueira.

Elas recentemente publicaram um artigo de revisão sobre como a gagueira evolui ao longo da vida. Não pretendo fazer um resumo de todo o artigo, mas enfatizar alguns aspectos que me pareceram importantes.

 

A busca pela causa única da gagueira

Segundo Smith & Weber, a maioria dos pesquisadores da área concorda que a gagueira não pode ser explicada por um único fator. Fatores genéticos, neurológicos, linguísticos, auditivos, motores e emocionais são elencados como importantes para o início da gagueira e sua possível recuperação. Nos anos 1990, diversos artigos científicos (clínicos e experimentais) partiam da premissa de que um único fator (por exemplo, o motor) era candidato único à causa da gagueira. Entretanto, estudos posteriores demonstraram que este tipo de premissa não consegue explicar todos os fenômenos associados à gagueira. As autoras adotam a perspectiva de que é a interação entre diversos fatores que dá início à gagueira. Também é a interação entre esses diversos fatores que vai determinar a trajetória futura da gagueira: se em direção à remissão ou à cronificação.

 

As disfluências

As autoras criticam o foco excessivo na quantificação e na tipologia das disfluências. Elas adotam a perspectiva de que as disfluências perceptíveis são apenas pontos convenientes de referência. Mas isso não significa que os processos subjacentes que levam às disfluências perceptíveis ocorram somente nos momentos de disfluências. Os processos neurais subjacentes são contínuos, sendo que as disfluências perceptíveis são apenas pontos extremos desses processos.

Entendo que esta visão das disfluências como pontos extremos de um processo contínuo é bastante interessante para explicar algo clinicamente bastante observado na fala de diversas pessoas com gagueira. Muitas vezes, embora a pessoa não esteja explicitamente gaguejando, sua fala não é foneticamente normal, sendo possível perceber imprecisões articulatórias ou alterações de ritmo e entoação.

 

A natureza da gagueira

Smith & Weber enxergam a gagueira como um sistema dinâmico e não linear. Sem entrar em detalhes sobre a teoria de sistemas dinâmicos, penso que esta é uma abordagem que explica diversos aspectos do funcionamento da gagueira, percebidos inclusive por pessoas leigas.

Um desses aspectos se refere às variações de manifestação da gagueira. A gagueira não é constante ao longo do tempo, apresentando exacerbações em certos momentos, dias, meses ou mesmo anos. A oscilação na manifestação de um comportamento está no centro da teoria de sistemas dinâmicos.

Além disso, a gagueira apresenta claramente um comportamento não linear, facilmente desconcertante para uma pessoa leiga. Um exemplo da minha prática clínica: a privação de sono piora a gagueira. Mas isso não quer dizer que toda e qualquer noite mal dormida piore a gagueira no dia seguinte. Há uma tendência para que isso ocorra, mas não é um fator determinístico.

Na opinião das autoras, uma teoria completa e integrada da gagueira deve resultar da união de subsistemas de processamento (tais como: controle motor, integração auditiva, processamento linguístico, aspectos emocionais) e da interação não linear entre esses subsistemas. Nesta perspectiva, não haveria uma causa central da gagueira.

 

Genética e epigenética

A gagueira apresenta um perfil fortemente hereditário e quatro genes já foram identificados (veja aqui). Porém, apresentar genes relacionados à gagueira não significa manifestar gagueira e também não significa ter gagueira persistente. Isso porque existem processos epigenéticos que influenciam a manifestação gênica. Ou seja, um determinado indivíduo pode ter genes para a gagueira, mas pode não apresentar gagueira clinicamente, porque processos epigenéticos impediram a manifestação desses genes. Vemos isso ocorrer quando um determinado indivíduo gagueja, seu pai ou sua mãe não gagueja, mas seu avô ou sua avó também gagueja. Nestes casos, o pai ou a mãe também apresentam genes para gagueira, mas, devido a processos epigenéticos, não manifestaram o distúrbio. Smith & Weber argumentam que o desenvolvimento do controle motor, a aquisição de linguagem e o desenvolvimento das emoções podem atuar como fatores epigenéticos, que irão determinar a manifestação (ou não) da gagueira. São os fatores epigenéticos, por exemplo, que explicam a discrepância de incidência ou prevalência de gagueira em gêmeos monozigóticos.

Estimativas antigas sobre a etiologia de distúrbios genéticos complexos (como esquizofrenia, autismo e diabetes) atribuíam muito peso aos genes. Estimativas mais atuais, por outro lado, dão mais peso às influências epigenéticas, como fatores etiológicos mais importantes em distúrbios complexos.

 

A gagueira como um distúrbio neuromotor de desenvolvimento

A gagueira é um distúrbio de fluência que inicia na infância, cujo principal sintoma são tipos muito particulares de disfluências (repetições de parte de palavra, prolongamentos ou bloqueios silábicos). Outros distúrbios, como a dislexia e o distúrbio específico de linguagem, também apresentam perfil de início na infância. São todos distúrbios de neurodesenvolvimento, ou seja, disfunções que resultam de um desenvolvimento atípico do sistema nervoso central em relação a diversos subsistemas (motor, linguístico, auditivo, etc.). Em última instância, a gagueira é um distúrbio dos processos sensório-motores envolvidos na produção da fala. Mas seu início, persistência e gravidade ao longo da vida são fortemente condicionados por fatores linguísticos, cognitivos e emocionais.

Uma das hipóteses científicas atuais é que pessoas com gagueira não possuem programas motores estáveis para a produção da fala. O sistema neuromotor de fala de pessoas com gagueira seria continuamente instável, havendo padrões fonéticos atípicos mesmo na fala fluente e sendo as disfluências percebidas apenas pontos extremos dessa instabilidade.

Pessoas com gagueira apresentam claras dificuldades de coordenação entre os diversos subsistemas de fala (respiração, voz e articulação). Pesquisas científicas com articulografia eletromagnética (EMA) já documentaram dificuldades de coordenação entre lábios e língua mesmo na fala fluente de pessoas com gagueira. Na prática clínica, percebemos dificuldades para coordenar o sopro expirado com a voz, a vibração de lábios e língua com a voz, movimentos de lábios com movimentos de língua. Essas dificuldades de controle motor da fala não são consequências da gagueira, porque já estão presentes em crianças pequenas, de 4 ou 5 anos.

 

Remissão total da gagueira

A idade típica de início da gagueira é entre 2 e 4 anos. A partir dos 5 anos, é difícil uma criança começar a gaguejar. Se isso acontecer, o mais provável é que ela tenha gaguejado por um breve período entre 2 e 4 anos e que, mais tarde, a gagueira retornou.

É muito importante saber que, quanto mais tempo uma criança gagueja, mais improvável é sua recuperação:

  • Aos 2,5 anos, há 80% de chance de remissão total (cura) da gagueira.
  • Aos 4 anos, há 60% de chance de remissão total da gagueira.
  • Aos 5 anos, há 40% de chance de remissão total da gagueira.
  • Aos 6 anos, há 20% de chance de remissão total da gagueira.
  • A partir dos 7 anos, a chance de remissão total da gagueira tende a zero.

Importante perceber que a chance de remissão total nunca é de 100%, nem aos 2 anos. Além disso, as chances de remissão caem significativamente a cada ano que passa. Por isso, a intervenção deve iniciar o mais cedo possível. A partir dos 7 anos, quando padrões atípicos de controle neuromotor da fala já estão estabelecidos, torna-se muito difícil reestabelecer a fluência normal.

Smith & Weber atentam para o fato de que a gagueira inicia quando o desenvolvimento de linguagem da criança está em rápida expansão (principalmente, em relação à fonologia e à extensão dos enunciados). Já é conhecido o fato de que a maior complexidade sintática do enunciado tende a piorar a gagueira em crianças pequenas, porque a maior complexidade sintática provoca maior instabilidade motora. Por isso, é essencial intervir para garantir um processo de aquisição de linguagem o mais próximo possível da normalidade. Neste sentido, crianças que apresentam claros déficits de linguagem, ou seja, crianças que “falam muito errado” ou que “falam pouco” apresentam maior probabilidade de cronificação da gagueira.

Outro fator importante para a cronificação é a percepção da criança sobre sua gagueira. Crianças de 3 anos já podem ter alguma percepção que gaguejam. Essa percepção progressivamente aumenta e, aos 5 anos, a consciência da gagueira tende a estar bem estabelecida. Embora não existam características emocionais típicas de crianças que gaguejam (por exemplo, maior ansiedade), Smith & Weber argumentam que é preciso observar se a personalidade da criança dificulta com que ela lide com a gagueira. Em caso positivo, deve-se intervir neste aspecto também, porque, a depender das reações emocionais da criança perante a gagueira, as instabilidades neuromotoras na fala serão mais intensas, favorecendo a cronificação da gagueira.

Neste sentido, Smith & Weber são favoráveis a uma avaliação multidimensional, que inclua a avaliação específica da fluência e do controle motor, mas também da linguagem, da cognição, da audição e das emoções. As autoras acreditam que á interação entre todos esses fatores que irá determinar a trajetória da gagueira: se para remissão ou para cronificação.

 

Referência

Smith, A. & Weber, C. (2017). How stuttering develops: The Multifactorial Dynamic Pathways Theory. Journal of Speech, Language, and Hearing Research, 60, pp. 2483-2505.