Distúrbios do neurodesenvolvimento em crianças com gagueira
Quais as chances de uma criança com gagueira também apresentar outro distúrbio do neurodesenvolvimento? Para responder esta pergunta, os fonoaudiólogos americanos Patrick Briley e Charles Ellis Jr. analisaram um extenso banco de dados. Os resultados indicaram que metade das crianças com gagueira apresentavam outro distúrbio do neurodesenvolvimento associado, como epilepsia ou TDAH.
O estudo
O objetivo do estudo foi verificar se a gagueira infantil tende a ocorrer em conjunto com determinados distúrbios do neurodesenvolvimento. Foram utilizados dados do “National Center for Health Statistics”, um instituto nacional de saúde dos EUA. Este instituto visita de 35.000 a 40.000 residências todos os anos, com a intenção de levantar dados para monitorar a saúde de crianças e adultos. A escolha das residências é determinada através de métodos estatísticos de amostragem.
A coleta de dados é feita através de questionários. Existem questionários específicos para adultos e para crianças. É definida como “criança” qualquer indivíduo abaixo de 18 anos de idade. O questionário relativo às crianças pode ser lido aqui. As respostas são fornecidas por um adulto responsável pela criança (mãe ou madrasta, pai ou padrasto, avó, avô).
O estudo de Briley & Ellis Jr. analisou as respostas dos questionários sobre as crianças entre os anos de 2010 a 2015. As crianças incluídas no estudo foram aquelas para quem havia resposta explícita (“sim” ou “não”) em referência à seguinte pergunta: “Nos últimos 12 meses, a criança apresentou gagueira?”.
Também foram analisadas as respostas para mais cinco perguntas:
- “Um médico ou outro profissional de saúde, em algum momento da vida da criança, disse que ela apresenta deficiência intelectual?”
- “Um médico ou outro profissional de saúde, em algum momento da vida da criança, disse que ela apresenta transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH)?”
- “Um médico ou outro profissional de saúde, em algum momento da vida da criança, disse que ela apresenta transtorno do espectro autista?”
- “Um profissional da escola ou um profissional de saúde, em algum momento da vida da criança, disse que ela apresenta distúrbio de aprendizagem?”
- “Nos últimos 12 meses, a criança apresentou convulsões?”
Não foram avaliadas as respostas para outras condições de saúde, tais como: síndrome de Down, paralisia cerebral, alergias (respiratórias, alimentares ou de pele), otites, deficiência auditiva, problemas de fala, depressão, irritabilidade.
Resultados
Os dados de 2010 a 2015 incluíram 62.450 crianças, sendo que 51% eram do sexo masculino. Do total de crianças, 1.231 (2%) foram referidas como apresentando gagueira nos últimos 12 meses, sendo que 68% destas crianças eram do sexo masculino.
As crianças sem gagueira tendiam a ser mais velhas (idade média de 10 anos) em relação às com gagueira (idade média de 8,8 anos). A maior frequência de gagueira estava na faixa etária de 3 a 5 anos, depois na faixa de 6 a 10 anos e, por último, na faixa de 11 a 17 anos.
A escolarização dos pais diferenciou os dois grupos de crianças: 38% dos pais das crianças sem gagueira possuíam diploma de nível superior contra 22% das crianças com gagueira. A renda familiar também diferenciou os dois grupos de crianças: 49% das crianças com gagueira estavam na menor faixa de renda, havendo apenas 29% de crianças sem gagueira na mesma faixa de renda.
A presença de distúrbios do neurodesenvolvimento foi bem maior entre crianças com gagueira: 52% das crianças com gagueira apresentaram outro distúrbio do neurodesenvolvimento contra apenas 15% das crianças sem gagueira. Em termos percentuais, os resultados foram:
- 33% das crianças com gagueira também apresentaram distúrbio de aprendizagem.
- 25% das crianças com gagueira também apresentaram TDAH.
- 7,5% das crianças com gagueira também apresentaram deficiência intelectual.
- 8% das crianças com gagueira também apresentaram transtorno do espectro autista.
- 5% das crianças com gagueira também apresentaram convulsões.
Os resultados acima podem dar a entender que o distúrbio de neurodesenvolvimento mais frequentemente associado à gagueira é o distúrbio de aprendizagem. Entretanto, quando os dados foram corrigidos estatisticamente em relação a gênero, raça, educação parental e renda familiar, os resultados foram bem diferentes. Por isso, o estudo concluiu que crianças que apresentaram gagueira nos últimos 12 meses também tiveram:
- 7,5 vezes mais chances de apresentarem convulsões nos mesmos 12 meses.
- 6,5 vezes mais chances de apresentarem deficiência intelectual.
- 5,5 vezes mais chances de apresentarem distúrbio de aprendizagem.
- 5,5 vezes mais chances de apresentarem transtorno do espectro autista.
- 3 vezes mais chance de apresentarem TDAH.
Fiquei surpresa ao ver que o distúrbio de neurodesenvolvimento com maior probabilidade de ocorrer em crianças com gagueira são convulsões. A convulsão é um sinal que pode indicar epilepsia (embora não seja um sinal inequívoco). Este resultado é bastante compatível com minha experiência clínica, tendo em vista que aproximadamente metade das crianças com gagueira que atendo apresentam formas brandas de epilepsia.
Importante destacar que o estudo indicou também que a maior referência a outros distúrbios de neurodesenvolvimento ocorreu para todas as faixas etárias de crianças com gagueira (dos 3 aos 5 anos, dos 6 aos 10 anos e dos 11 aos 17 anos). Ou seja, são dados consistentes.
Os motivos que levam as crianças com gagueira a também apresentarem outro distúrbio de neurodesenvolvimento ainda não são claros, mas tudo leva a crer que são processos neurais compartilhados entre as diferentes condições.
O fato de metade das crianças que gaguejam apresentarem pelo menos mais um distúrbio de neurodesenvolvimento indica que o fonoaudiólogo não pode se limitar a saber apenas sobre gagueira, devendo também possuir conhecimentos mínimos sobre convulsões/epilepsia, deficiência intelectual, distúrbios de aprendizagem, transtornos do espectro autista e TDAH.
Além disso, entendo que o fato de o estudo demonstrar que metade das crianças que gaguejam apresentam outro distúrbio de neurodesenvolvimento torna obrigatória a avaliação das crianças que gaguejam por um neurologista infantil. A avaliação tem por objetivo a realização de exames necessários (como o eletroencefalograma), o estabelecimento de um diagnóstico mais amplo em relação ao neurodesenvolvimento e a possibilidade de tratamento medicamentoso complementar. Penso que o tratamento da gagueira só tem a ganhar com isso, aumentando as chances de se obterem melhoras consistentes e duradouras na fluência da fala. Por exemplo, a presença de um quadro de epilepsia que ainda não foi corretamente identificado e tratado pode prejudicar significativamente a aprendizagem neuromotora necessária à melhora da fluência, comprometendo os resultados da fonoterapia. Outro exemplo refere-se ao TDAH: um estudo recente [2] indicou que crianças com gagueira que também apresentam TDAH necessitam de um maior número de sessões de fonoterapia (25% a mais) para atingir bons resultados na fluência da fala.
Referências
[1] Briley, P. M. & Ellis, C. Jr. (2018). The coexistence of disabling conditions in children who stutter: Evidence from the National Health Interview Survey. Journal of Speech, Language and Hearing Research, 61 (12), 2895-2905.
[2] Druker, K.; Hennessey, N.; Mazzucchelli, T. & Beilby, J. (2018). Elevated attention deficit hyperactivity disorder symptoms in children who stutter. Journal of Fluency Disorders [no prelo no momento da publicação deste post].