Eletroterapia não invasiva

mar 17, 2014 | por Sandra Merlo | Eletroterapia, Gagueira

“Eletroterapia” é o uso da corrente elétrica para fins terapêuticos.

Estou dando início a uma série sobre gagueira e eletroterapia. Esta série foi motivada por dificuldades com o manejo clínico da tensão muscular ao longo do trato vocal. Para diversos pacientes, os exercícios fonoaudiológicos convencionais conseguem reduzir a hipertonia muscular, oferecendo bons resultados a curto e longo prazo. Para outros pacientes, entretanto, os exercícios convencionais oferecem resultados palpáveis, mas aquém do desejado. O recurso tecnológico de eletroterapia é, então, uma tentativa de avançarmos um pouco mais.

 

O que é eletroterapia

Eletroterapia é um termo genérico que se refere a qualquer técnica que faça uso de corrente elétrica a fim de se obter alguma melhora na saúde.

As técnicas de eletroterapia que serão abordadas aqui se situam especificamente no terreno da neuromodulação. Por “neuromodulação”, compreende-se qualquer tipo de intervenção elétrica ou química que modifica o funcionamento do sistema nervoso central ou periférico através do uso de dispositivos que são implantados interna ou externamente no paciente.

Técnicas não invasivas de eletroterapia são muito utilizadas na fisioterapia, na educação física e, mais recentemente, na fonoaudiologia (ver pág. 36). É sobre os efeitos fisiológicos da eletroterapia não invasiva e suas aplicações na fonoaudiologia que versa esta série.

 

Breves considerações históricas

Diz a lenda que o uso da eletricidade com fins terapêuticos nasceu em Roma. Em 46 a.C., o médico do imperador Cláudio, Scribonius Largus, indicava choques de peixes elétricos para aliviar cefaleias e gota. Posteriormente, por volta de 130 d.C., Cláudio Galeno, médico do imperador Marco Aurélio, também adotava a mesma prática.

Entretanto, foi somente no século XVIII que se passou a compreender melhor o que é a eletricidade e quais são suas propriedades.

Em 1752, o americano Benjamin Franklin publicou “Experiments and observations on electricity”. Tendo feito diversos experimentos, Franklin propôs que os corpos eram feitos de “matéria comum” e também de “matéria elétrica”. Na época, já se sabia que corpos eletrizados poderiam se atrair ou se repelir. Franklin postulou que o corpo que se eletrizava perdendo matéria elétrica seria chamado de negativo e o corpo que se eletrizava ganhando matéria elétrica seria chamado de positivo. Ele também conseguiu demonstrar a natureza elétrica dos raios e inventou o para-raios.

No século XVIII, o italiano Luigi Galvani foi pioneiro em estudos de bioeletricidade. Ele descobriu que a eletricidade era capaz de contrair a musculatura das pernas de sapos. Isso acontecia tanto se a eletricidade fosse aplicada diretamente no músculo como diretamente no nervo. Com outros experimentos, Galvani concluiu que os músculos possuíam “eletricidade animal” (em oposição à “eletricidade natural” dos raios). Suas conclusões foram publicadas nos ensaios “Comentário sobre o efeito da eletricidade no movimento muscular” e “Sobre o uso e atividade do arco condutivo na contração dos músculos”. O termo “galvânico”, hoje comum, deve-se à Galvani.

Em seguida, o italiano Alessandro Volta repetiu os experimentos de Galvani e chegou aos mesmos resultados, mas ele não acreditava na existência de uma “eletricidade animal”. Ele argumentava que a eletricidade era gerada externamente por metais que estavam em contato com os músculos das pernas do sapo e que os músculos em si eram apenas condutores da eletricidade. Devido a este debate, Volta acabou inventando a pilha hidroelétrica, um dispositivo que gera corrente contínua. Termos hoje populares como “Volts” e “voltaico” devem-se à Volta.

A disputa entre Galvani e Volta foi encerrada com os experimentos do alemão Alexander von Humboldt, que demonstrou a existência de eletricidade gerada por metais e também a existência de eletricidade animal. Os estudos de Galvani estabeleceram as bases da neurofisiologia, porque demonstraram que os nervos conduziam eletricidade (e não água, como havia sido sugerido por René Descartes).

A compreensão básica sobre o que é a eletricidade e a concepção de que a comunicação entre nervo e músculo era elétrica, possibilitou o uso terapêutico da eletricidade pelo neurologista francês Guillaume Duchenne no século XIX. Ele utilizou estimulação elétrica transcutânea no nervo frênico para ativar o diafragma e induzir respiração artificial. Seus achados foram publicados na monografia “Eletricidade localizada e sua aplicação na fisiologia, na patologia e na terapêutica”. Duchenne é considerado o pai da eletroterapia.

A partir daí, a eletroterapia foi se desenvolvendo cada vez mais. Em relação às afecções que envolvem o sistema nervoso, hoje há diversas técnicas eletroterápicas invasivas e não invasivas. Dentre as técnicas invasivas, estão a estimulação cerebral profunda (para tratar doença de Parkinson, por exemplo) e a estimulação da medula espinhal (para tratar dor neuropática crônica). Dentre as técnicas não invasivas, estão a estimulação elétrica terapêutica (TES) e a estimulação elétrica funcional (FES). É exatamente sobre as técnicas não invasivas que falaremos a seguir.

 

Conceitos básicos de eletroterapia não invasiva

Veja aqui um exemplo de aparelho de eletroterapia não invasiva.

Atualmente, define-se corrente elétrica como o movimento ordenado de cargas elétricas. O tipo de carga elétrica envolvida depende do material: em metais, as cargas elétricas são elétrons livres; em eletrólitos, as cargas são íons; em gases, são elétrons e íons. O fluxo de cargas se estabelece apenas quando há diferença de potencial elétrico entre dois pontos. O ponto (ou polo) com maior número de cargas é o negativo.

A intensidade da corrente elétrica (medida em ampères, A) depende do número de cargas elétricas que fluem de um polo a outro durante um intervalo de tempo. A intensidade dos aparelhos de eletroterapia não invasiva é baixa, até 250 mA por canal.

Na eletroterapia não invasiva, são fixados eletrodos sobre a pele da região que se deseja estimular. Os eletrodos podem ser de borracha, os quais necessitam de gel para diminuir a resistência e facilitar a transmissão da corrente. Os eletrodos também podem ser de silicone, os quais não necessitam de gel e são autoadesivos.

Os eletrodos sempre são em número par: a corrente elétrica parte de um dos eletrodos, flui pelos tecidos vivos e chega ao outro eletrodo.

Existem basicamente dois modos de aplicação de eletroterapia não invasiva para estimular sensibilidade e/ou motricidade: a TES e a FES. Os dados relatados a seguir estão em um artigo escrito pelo fisioterapeuta Othmar Schuhfried e colaboradores (veja aqui o artigo completo).

A estimulação elétrica terapêutica (therapeutic electrical stimulation – TES) pode atuar apenas na sensibilidade ou também na motricidade.

Quando a TES atua apenas na sensibilidade, ela é chamada de estimulação elétrica transcutânea (transcutaneous electrical nerve stimulation – TENS). É uma estimulação submotora, porque não induz contração muscular. Sendo assim, a TENS apenas trabalha com vias aferentes. O paciente experimenta sensação de formigamento sobre a pele. Como é uma terapêutica que tem o objetivo de melhorar a sensibilidade, pode auxiliar:

  • No controle da dor.
  • No refinamento do controle motor.
  • Na melhora da heminegligência. A heminegligência é um quadro neurológico em que o indivíduo negligencia um dos lados do corpo. A aplicação de TENS no lado negligenciado melhora a atenção para aquele lado.

Quando a TES também atua na motricidade, os estímulos elétricos induzem contrações musculares. Em casos de hipotonia, o paciente também pode contrair voluntariamente a musculatura, seguindo o ritmo do aparelho.

A TES também pode estar associada à eletromiografia de superfície. Neste caso, o paciente precisa contrair minimamente a musculatura (contração grau 2 em uma escala de zero a cinco) para que a estimulação elétrica seja disparada. É um procedimento utilizado para pacientes que apresentam hipotonia da musculatura.

A configuração de parâmetros irá determinar se o estímulo da TES é apenas sensorial ou também motor. Por exemplo, frequências mais baixas estão relacionadas à contração motora, enquanto frequências mais altas estão relacionadas à estimulação sensorial. Veja tabela comparativa neste artigo.

O tempo de estimulação pode variar entre 10 e 30 minutos.

As vantagens da TES incluem o fato de ser de fácil aplicação e de baixo custo. Dentre as desvantagens, estão as variações na impedância da pele e a dificuldade para se localizar superficialmente o percurso de nervos e músculos a serem estimulados (principalmente quando se trata de músculos pequenos, como os do trato vocal).

A estimulação elétrica funcional (functional electrical stimulation – FES) faz com que seja possível executar uma determinada tarefa motora por causa da estimulação elétrica. Sem a estimulação elétrica, a tarefa não é executada porque o paciente não possui controle motor suficiente. Por exemplo, utiliza-se em pessoas que tenham paralisias nos membros superiores e/ou inferiores. A FES envolve, portanto, sistemas de próteses funcionais.

Assim, a distinção entre TES e FES refere-se à presença ou ausência de atividade motora voluntária funcional. Na prática, porém, costuma-se falar apenas em “TENS” (para se referir a estímulos que produzam parestesia) ou em “FES” (para se referir a qualquer estímulo que produza contração muscular).

A estimulação da eletroterapia não invasiva não é apenas periférica, mas também central. Quando se usa a TES submotora, ocorre estimulação dos nervos sensoriais e também do córtex somatossensorial. Quando se usa TES motora ou FES, ocorre estimulação dos músculos, nervos, córtex somatossensorial e área motora suplementar.

A eletroterapia não invasiva aumenta o fluxo de informações aferentes e/ou eferentes que chegam ao córtex cerebral, facilitando a plasticidade neural. Assim, conexões neuronais pré-existentes são ativadas ou inibidas. Com a repetição da estimulação, ocorre modificação nos padrões de ativação cortical, fazendo com que a melhora se prolongue para situações em que não há estimulação elétrica direta.

A estimulação elétrica não substitui os exercícios convencionais e deve sempre ser utilizada em combinação com eles.