Fonologia

fev 04, 2013 | por Sandra Merlo | Fonologia, Gagueira

A fonologia é o estudo de unidades mínimas que produzem distinção, contraste ou oposição de significado.

Estou dando início a uma série sobre relações entre fluência e fonologia. Antes de abordar diretamente essas relações, cabe expor alguns conceitos utilizados pela fonologia estruturalista e pela gerativista. Conceitos utilizados pela fonologia articulatória serão expostos em outro texto.

 

Definição

Na fonologia (seja qual for a abordagem), as palavras-chave são distinção, contraste, oposição. Por isso, buscam-se unidades mínimas que produzam distinção, contraste ou oposição de significado [4]. Por exemplo, as palavras “capa”, “mapa”, “chapa” e “lapa” distinguem-se apenas pelo segmento inicial. A transcrição fonológica dessas palavras é /’kapa/, /’mapa/, /’∫apa/ e /’lapa/. Exemplos como esses demonstram que os segmentos /k, m, ∫, l/ em posição de ataque silábico são capazes de contrastar significados em português. Esses segmentos (que não têm significado em si, mas que são capazes de distinguir significados), são chamados de fonemas [4].

 

Natureza abstrata

Para a fonologia estruturalista e para a gerativista, o fonema é uma unidade abstrata, que não está diretamente relacionada com a realização acústica e articulatória no trato vocal. Para essas teorias, a realização física de um fonema é um fone (este, sim, diretamente relacionado com o sinal acústico e articulatório de fala) [2, 3]. Portanto, sendo uma unidade abstrata, o fonema não pode ser um “som de fala”, somente o fone é um som de fala. Para essas teorias, o fonema é uma unidade abstrata e distintiva da língua.

A representação das duas unidades também é distinta: o fonema é representado por barras (/…/), enquanto o fone é representado por colchetes ([…]) [4].

A compreensão do fonema como unidade abstrata, discreta e qualitativa coloca a Fonologia como ciência social, relacionada à realidade semiológica. A compreensão do fone como unidade concreta, contínua e quantitativa coloca a Fonética como ciência natural, relacionada à realidade física. Neste sentido, fonema e fone não são unidades comensuráveis, ou seja, não admitem serem medidos e analisados da mesma maneira [1].

 

Fonologia e fala

Um fonema não necessariamente é realizado por apenas um fone [4]. Ele pode ser realizado por mais de um fone, que são os alofones (*). Um exemplo clássico em português é a realização do fonema /t/ como [t] ou [t∫] dependendo do contexto vocálico:

  • se a vogal que segue /t/ for /i/, então o fone pode ser [t] ou [t∫]. A opção por uma ou outra realização vai depender da comunidade sociolinguística do falante;
  • com todas as outras vogais, /t/ é realizado como [t].

Outra possibilidade seria a realização do fonema /p/ como [p] ou [Φ] (este último refere-se à fricativa bilabial desvozeada). Embora o fone [Φ] não seja usual em português brasileiro, ele não corresponde a um fonema específico e, por isso, não produz contraste de significado. A realização do fonema /p/ como [Φ] e não como [p] pode ocorrer em enunciados emitidos com taxa rápida de elocução.

O trato vocal humano é capaz de produzir inúmeros fones, mas nem todos têm função distintiva; na verdade, apenas um pequeno número tem esta função [2].

 

Fonologia e escrita

Da mesma maneira, os fonemas não apresentam relação inequívoca com as letras. Um mesmo fonema pode ser representado por diversas letras. Por exemplo, o fonema /s/ pode ser representado pelas letras S, SS, XC, C ou Ç (como em “saída”, “assento”, “excesso”, “cebola”, “caça”). De forma similar, uma mesma letra pode representar diversos fonemas. Por exemplo, a letra C pode representar os fonemas /k, s/ (como em “cabelo”, “cebola”), a letra G pode representar os fonemas /g, ʒ/ (como em “gato”, “gíria”), a letra R pode representar os fonemas /ɾ, ɣ/ (como em “areia”, “rifa”).

 

Fonotaxe

A fonologia também analisa as regras combinatórias dos fonemas de uma língua [2]. Ou seja, os fonemas não podem estar em qualquer sequência: uma língua natural tem suas sequências permitidas e proibidas de fonemas. Por exemplo, a pseudopalavra “janeta” (/ʒa’nɛta/), embora inexistente em português, apresenta uma sequência fonológica permitida na língua. Já a pseudopalavra “vjaneta” (/vʒa’nɛta/) apresenta uma sequência combinatória não permitida, facilmente reconhecida por falantes nativos da língua.

 

Traços distintivos

Um fonema pode ser decomposto em unidades menores, chamadas de traços distintivos [4]. Os traços são chamados de “distintivos”, porque sua presença ou não tende a estabelecer contraste no sistema fonológico da língua. Nem todas as línguas possuem os mesmos traços distintivos, mas alguns são mais frequentes do que outros. Geralmente esses traços são de natureza articulatória e não acústica.

Por exemplo, os traços da fonologia gerativa para o português são os seguintes [4]:
[± consonantal], [± vocálico], [± soante], [± contínuo], [± tenso]
[± labial], [± coronal], [± dorsal]
[± anterior], [± posterior]
[± arredondado]
[± alto], [± baixo]
[± sonoro]
[± nasal]
[± lateral]

A unidade mínima é o fonema ou o traço distintivo? Isso vai depender da teoria. Para a teoria estruturalista, o fonema é a unidade mínima. Para a teoria gerativista, o traço distintivo é a unidade mínima [2].

Na teoria estruturalista, uma unidade linguística mínima (fonológica, morfológica, etc.) precisa satisfazer a dois requisitos: deve ser linearmente segmentável e substituível [3]. Isso ocorre com o fone e o fonema, por exemplo: é possível isolá-los e substituí-los por outros. Sendo segmentos, eles só podem ocorrer sequencialmente e não ao mesmo tempo. Mas não é possível segmentar os traços, apenas substituí-los. Por exemplo, o traço de vozeamento pode se estender ao longo de mais de um segmento, como em “gato”: /’gato/. É possível substituir o traço de vozeamento do fonema /g/ pelo traço de desvozeamento, o que resulta no fonema /k/: /’kato/. A segmentação dos traços não produzirá correspondência sistemática com nenhuma unidade linguística. Sendo traços, eles só podem ocorrer em conjunto e não sequencialmente.

 

Natureza binária

As unidades mínimas na teoria estruturalista (fonema) e na gerativista (traço distintivo) são binárias, ou seja, ou estão presentes ou não estão, não há possibilidades intermediárias [1, 4]. Por exemplo, para o estruturalismo, não há possibilidade de se produzir um fone intermediário entre [s] e [∫]: ou é um ou é outro. Para o gerativismo, não há possibilidade de produzir um fone mais ou menos vozeado: ou é vozeado ou não é.

 

Aplicações na fonoaudiologia

A avaliação e a terapia dos transtornos fonológicos variam conforme a teoria adotada [1].

Se o estruturalismo é a teoria adotada, então se fala em “substituição, omissão, adição, transposição ou distorção de fonemas”. Medidas como “porcentagem de consoantes corretas” também fazem mais sentido na abordagem estruturalista. Sempre o fonema é a unidade mínima e cada fonema alterado é estimulado individualmente.

Se o gerativismo é a teoria adotada, então se fala em processos fonológicos. Como as unidades mínimas são os traços distintivos, não importam os fonemas em si, mas os processos fonológicos. Assim, cada processo fonológico alterado é estimulado individualmente, não importando quantos fonemas estão envolvidos no processo.

 

Segmental e suprassegmental

Os contrastes fonológicos podem tanto ocorrer em nível segmental, quanto em nível suprassegmental.

O nível segmental refere-se ao eixo paradigmático [4]. Ou seja, trata de unidades que podem ser substituídas e que são excludentes entre si. Por exemplo, para completar /’…ata/ é necessário escolher entre /p, b, m, d, n, l, k, g, ɣ/.

O nível suprassegmental refere-se ao eixo sintagmático [4]. Ou seja, as propriedades do segmento precisam ser analisadas em função do contexto linguístico em que o segmento se encontra. Assim, se um determinado fonema é realizado como um fone mais longo ou mais curto, mais tenso ou mais relaxado, mais grave ou mais agudo, isso é concluído com base nas características acústico-articulatórias das realizações que estão em torno dele e não com ele isoladamente. Os valores no nível suprassegmental são relativos e não absolutos [3].

Da mesma forma, características suprassegmentais (como acento lexical primário e entoação) também podem ter função distintiva e, portanto, fonológica [4]. Em português, o acento lexical primário pode diferenciar itens lexicais (“para” versus “Pará”, “prática” versus “pratica”). A entoação, por outro lado, pode distinguir enunciados, indicando se são declarativos, interrogativos ou exclamativos (“Amanhã”, “Amanhã?”, “Amanhã!”).

 

Fonologia e gagueira

A primeira relação que se pode pensar entre fonologia e gagueira é no nível suprassegmental. A gagueira se manifesta concretamente como alongamentos, bloqueios e/ou repetições fônicas. São características suprassegmentais, porque o alongamento, o bloqueio e a repetição de um segmento só podem ser confirmados pela comparação daquele segmento em relação aos que o circundam. Entretanto, a ocorrência de gagueira raramente tem efeito distintivo em nível lexical. Foneticamente, a palavra “mapa” pode ser produzida de forma fluente ([‘mapɐ]), com alongamento do fone inicial ([‘m::apɐ]), com repetição do fone inicial ([‘m-m-mapɐ]) ou com bloqueio do fone inicial ([‘^mapɐ]). Nenhuma dessas realizações é fonologicamente relevante, porque não contrasta significados distintos. Sendo assim, a principal característica do sistema fonológico, que é o estabelecimento de contrastes, é violada. Portanto, enfocar as características suprassegmentais da gagueira pelo ponto de vista fonológico não é produtivo.

A segunda relação que se pode pensar entre fonologia e gagueira é no nível segmental. Tanto a gagueira, quanto a alteração fonológica ocorrem ao nível do segmento (a gagueira também pode ocorrer no nível silábico, mas, mesmo assim, é nível sublexical). Boa parte das crianças com gagueira apresenta alteração fonológica. Isso levanta algumas questões:

  • A gagueira e a alteração fonológica tendem a iniciar simultaneamente? Isso poderia indicar que ambas apresentam a mesma base etiológica.
  • A gagueira e a alteração fonológica tendem a iniciar em momentos diferentes? Isso poderia indicar que um problema facilita o outro.
  • Crianças com alteração fonológica gaguejam mais em comparação a crianças sem alteração fonológica?
  • A gravidade da alteração fonológica influencia a gravidade da gagueira?
  • Crianças que apresentam alteração fonológica têm maior chance de apresentar gagueira de forma persistente?
  • A memória fonológica de pessoas com gagueira é igual à de pessoas sem gagueira?
  • A gagueira pode ser entendida como consequência fonética de reparos fonológicos subjacentes?

São questões como essas que serão abordadas nos próximos posts.

 

(*) De maneira geral, o prefixo “alo-” é utilizado para se fazer referência a variações da forma de uma unidade linguística, sem que ocorra mudança na identidade funcional desta unidade [2]. Assim, os alofones são diferentes realizações físicas de um mesmo fonema (condicionadas pelo contexto linguístico ou sociolinguístico).

Da mesma maneira, é possível fazer referência a variações de um mesmo morfema, que são os alomorfes. Por exemplo, o morfema indicador de feminino pode ser realizado como “-a” (filho/filha), “-ã” (irmão/irmã), “-oa” (patrão/patroa), etc.

Também é possível fazer referência a variantes de grafemas, que são os alografes. Por exemplo, a letra A pode ser grafada de diversas formas: a, a, A, etc.

 

 

Referências

[1] Berti, L. C. (2006). Aquisição incompleta do contraste entre /s/ e /∫/ em crianças falantes do português brasileiro. Tese de doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas.

[2] Crystal, D. (2000). Dicionário de linguística e fonética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

[3] Souza, P. C. & Santos, R. S. (2005). Fonética. In: Fiorin, J. L. (Org.). Introdução à linguística. Vol II: Princípios de análise (pp. 9-31). 4ª ed. São Paulo: Contexto.

[4] Souza, P. C. & Santos, R. S. (2005). Fonologia. In: Fiorin, J. L. (Org.). Introdução à linguística. Vol II: Princípios de análise (pp. 33-58). 4ª ed. São Paulo: Contexto.