Gagueira e fonologia (I)

fev 18, 2013 | por Sandra Merlo | Fonologia, Gagueira

A Hipótese do Reparo Encoberto (“Covert Repair Hypothesis – CRH”) postula que a gagueira é a consequência fonética de reparos fonológicos subjacentes.

Gagueira como consequência fonética de reparos fonológicos subjacentes

Dois psicólogos experimentais holandeses (Herman Kolk & Albert Postma) levantaram a hipótese de que a gagueira não é o problema em si: é apenas a consequência do reparo de outro problema linguístico. As manifestações concretas da gagueira (repetições, alongamentos e bloqueios em nível sublexical) seriam consequências fonéticas de reparos fonológicos subjacentes. Esta é a Hipótese do Reparo Encoberto (“Covert Repair Hypothesis – CRH”). Os pesquisadores utilizam o modelo de produção falada de outro pesquisador holandês, Willem Levelt [3], para embasar sua Hipótese.

Ao final deste texto, há um pequeno glossário com alguns termos linguísticos utilizados ao longo do texto, os quais podem não ser familiares a alguns leitores.

 

Por que “reparo” e por que “subjacente/implícito/encoberto”?

Durante a fala espontânea, diversos erros linguísticos podem ocorrer (lexicais, sintáticos, morfológicos, fonológicos, fonéticos ou prosódicos). Esses erros exigem reparo imediato. O reparo, por sua vez, pode ser explícito ou implícito. Os reparos explícitos são aqueles em que o erro foi de fato produzido na superfície textual. Seguem alguns exemplos, todos retirados de [2]:

  • Reparo lexical: “I want a cup of – uh – a glass of wine”.
  • Reparo sintático: “Why he did – why did he leave?”
  • Reparo morfológico: “My mother call me – calls me every day”
  • Reparo fonológico: “I want a ga- a glass of wine”

Os reparos implícitos são aqueles que foram corrigidos antes de se manifestarem na superfície textual. Mas como saber então que houve reparo? Herman Kolk & Albert Postma assumem que todo reparo, explícito ou implícito, é marcado por hesitação. Exemplos de reparos implícitos (retirados de [2]):

  • “I want a – uh – glass of wine”.
  • “I want a – a glass of wine”.

A regra geral seria: interromper a fala assim que o erro for detectado [3]. As hesitações apareceriam após a interrupção, sinalizando que o processo de correção está em curso. Se os erros ocorrerem com muita frequência, haverá muitas interrupções e retomadas, fazendo com a fala se torne lenta, trabalhosa e pouco fluente.

No caso do reparo explícito, o monitoramento é feito pelo feedback auditivo. No caso do reparo implícito, entra em cena o monitoramento da fala interna, que é anterior à articulação propriamente dita [3].

 

Por que “fonológico”?

A resposta para esta pergunta estaria na própria sintomatologia que acompanha a gagueira, uma vez que sempre estão em nível sublexical (fones e sílabas). Herman Kolk & Albert Postma analisam todas as possibilidades: lexicais, sintáticas, morfológicas, fonológicas e motoras.

Os erros envolvidos na gagueira não seriam lexicais. Por exemplo, no enunciado “I want a cu-cu-cu- cup of coffee”, o problema parece estar na palavra “cup”, mas não no sentido de que seria outra palavra a pretendida [2].

Os erros não seriam sintáticos, porque as ocorrências de gagueira não envolvem revisão da estrutura sintática. Por exemplo, “Why he d- did he leave?” [2].

Os erros também não seriam morfológicos (por exemplo, de escolha de morfemas de plural ou de tempo e modo verbal). Se o problema fosse morfológico, a gagueira afetaria apenas palavras com flexão morfológica (no caso do inglês, substantivos e verbos) e não outras classes morfológicas (como adjetivos, artigos e preposições, que são invariáveis em inglês) [2].

Os erros na gagueira também não seriam de programação ou de execução motora [2]. A programação motora é composta pela pauta gestual, que especifica os movimentos necessários para a articulação de cada fone. Entretanto, estudos da área mostraram que a programação motora não é monitorada por falantes sem distúrbios de comunicação, então este não poderia ser o erro reparado na gagueira. A execução motora, por outro lado, refere-se aos movimentos articulatórios propriamente ditos, que poderiam ser monitorados por propriocepção e feedback tátil. Entretanto, estudos da área mostraram que a propriocepção e o feedback tátil não desempenham função significativa no monitoramento prévio dos movimentos articulatórios.

Os erros reparados na gagueira seriam fonológicos [2]. Um argumento a favor desta hipótese é o fato de a gagueira diminuir quando a taxa de elocução diminui. A redução da taxa de elocução propiciaria mais tempo para a codificação fonológica. Especificamente, a seleção de fonemas seria lentificada e mais sujeita a seleções incorretas em pessoas com gagueira em comparação a pessoas sem gagueira. Assim, o plano fonético conteria mais fonemas incorretos do que habitualmente ocorre com falantes sem gagueira, o que exigiria reparos com maior frequência. O monitoramento da fala interna detectaria esses erros e daria início aos processos de reparo. O processo de reparo seria feito através do reinício da codificação fonológica para a sílaba em que o erro foi detectado. Modelos computacionais indicam que a probabilidade de erro na seleção fonológica é de 10% para a primeira tentativa, 1% para a segunda tentativa e 0,1% para a terceira tentativa.

O que é e como ocorre a codificação fonológica durante a fala? A codificação fonológica é o processo de gerar o plano fonético a partir da estrutura superficial. A estrutura superficial é formada por uma série de lemas, os quais estão estruturados em sintagmas. A codificação fonológica tem a função de recuperar o lexema de cada lema. O resultado final é o plano fonético, estruturado em sílabas. Cada sílaba tem sua pauta gestual armazenada na memória, a qual especifica as tarefas motoras a serem realizadas por cada articulador [3].

É devido ao envolvimento do sistema fonológico que a gagueira surgiria geralmente em idade pré-escolar, época da aquisição de linguagem relacionada fortemente à aquisição fonológica. Uma consequência desta Hipótese é que crianças com distúrbio fonológico apresentariam gagueiras mais graves, porque o sistema fonológico seria mais afetado.

A Hipótese do Reparo Encoberto também se propõe a explicar os tipos de hesitações existentes na gagueira [2]. A premissa básica é que os falantes interrompem a fala assim que detectam um erro.

  • Bloqueio fônico: o erro ocorreria logo no primeiro segmento da palavra. A codificação fonológica da primeira sílaba seria reiniciada, ocasionando interrupção no fluxo da fala. Enquanto o processo não terminar, os articuladores ficariam imóveis.
  • Alongamento ou repetição de fone: o erro de codificação ocorreria na primeira sílaba da palavra, mas não no primeiro segmento (ou seja, no segundo segmento do ataque complexo ou no núcleo). O reinício da codificação fonológica do segundo segmento seria marcado pela repetição ou alongamento do primeiro segmento.
  • Repetição de parte de palavra: o erro estaria localizado na coda da primeira sílaba, resultando na repetição de quase toda a primeira sílaba.

É por isso que a fala gaguejada seria o resultado da aplicação de estratégias de reparo aos erros fonológicos e não o erro em si. A fala gaguejada seria o resultado fonético de uma adaptação a um déficit fonológico.

Segundo Herman Kolk & Albert Postma, situações que tipicamente melhoram a fluência confirmariam a Hipótese do Reparo Encoberto, porque seriam situações que melhorariam a codificação fonológica: condições que lentificam a taxa de elocução (como feedback auditivo atrasado, canto e fala sincronizada com metrônomo) e condições que fornecem pré-ativação (como sombreamento e leitura em uníssono).

As premissas da Hipótese do Reparo Encoberto costumam acompanhar muitos estudos sobre gagueira e fonologia (em geral) e sobre gagueira e alteração fonológica (em particular). Por isso está sendo citada antes dos outros estudos serem discutidos.

 

Comentários adicionais:

A Hipótese do Reparo Encoberto é fortemente linguística, uma vez que o déficit é localizado em um ponto específico de um modelo de produção de linguagem falada [3].

Herman Kolk & Albert Postma entendem o fonema como unidade abstrata. “Unidade” por ser indivisível e “abstrata” por não ter relação direta com os movimentos articulatórios (cf. primeiro texto desta série). Segundo a Hipótese, os déficits que podem ocorrer são a seleção vagarosa do fonema correto ou a seleção incorreta de um fonema. Mas sempre em relação ao fonema como um todo. Não é aventada a hipótese de o fonema ser uma unidade divisível formada por traços distintivos e que a lentidão ou o erro de seleção seja em relação ao traço. Neste sentido, se uma pessoa com gagueira tem mais dificuldade com palavras iniciadas por oclusivas não-vozeadas, por exemplo, o problema seria a seleção de cada um desses fonemas e não a seleção do ponto de articulação apenas (sendo que os outros traços são iguais). Além disso, a premissa de o fonema ser uma unidade tudo ou nada não explica produções gradientes (cf. segundo texto desta série).

Algo intrigante na Hipótese é o fato de que, em nenhum momento, o caráter fundamental do sistema fonológico (o estabelecimento de contrastes entre significantes) é explicitamente discutido (cf. primeiro texto desta série).

Segundo a Hipótese, não haveria muita diferença entre gagueira e alteração fonológica. A gagueira seria uma alteração fonológica melhorada. Mas, neste caso, seria esperado que toda criança com alteração fonológica passasse por um estágio (temporário?) de gagueira durante seu processo de melhora. O aumento no número de hesitações de fato ocorre com algumas crianças (cf. segundo texto desta série), mas não com todas.

Por fim, o fato de a gagueira melhorar com a lentificação da taxa de elocução não implica, necessariamente, que o déficit seja fonológico. A meu ver, o déficit poderia muito bem ser na elaboração da pauta gestual (programação motora, estágio pré-motor).

 

Pequeno glossário

 

Estrutura da sílaba [1]

A estrutura silábica mais simples é aquela composta apenas por uma rima simples, que é a vogal (também chamada de núcleo). A sílaba, portanto, tem estrutura V (vogal). Exemplo: “A.go.ra”.

A rima também pode ser pesada, ou seja, há a vogal do núcleo e, em seguida, uma semivogal ou uma consoante. A sílaba, então, tem estrutura VC (vogal-consoante). Exemplo: “AR.te”.

Outra estrutura silábica é aquela composta por ataque e rima, ou seja, há uma ou duas consoantes antes do núcleo. Se houver uma consoante, o ataque é simples. Se houver duas, o ataque é complexo. A sílaba, portanto, tem estrutura CV (consoante-vogal) ou CCV (consoante-consoante-vogal). Exemplo: “PA.to” ou “PRA.to”.

Por fim, existem sílabas com ataque complexo e rima pesada, ou seja, estrutura CCVC (consoante-consoante-vogal-consoante). Exemplo: “PLÁS.ti.co”.

As sílabas com ataque complexo e rima pesada são as mais complexas e, portanto, as últimas a serem aprendidas durante a aquisição de linguagem.

 

Estrutura da palavra [3]

A palavra possui dois grandes componentes: o sintático-semântico e o fonológico. O componente sintático-semântico é chamado de lema e contém o significado da palavra (parte semântica) e sua estrutura argumentativa (características morfossintáticas). O componente fonológico é chamado de lexema e contém as especificações fonológicas das palavras (identidade dos segmentos, estruturação de cada sílaba, especificação da sílaba tônica).

 

Pré-ativação [2]

A apresentação de um item (palavra, sílaba, fonema) faz com que ele fique pré-ativado, ou seja, seu nível de ativação é maior em relação a outros itens. A pré-ativação facilita o processamento subsequente daquele item, porque ele é mais facilmente recuperado da memória.

 

 

Referências

[1] Crystal, D. (2000). Dicionário de linguística e fonética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

[2] Kolk, H. & Postma, A. (1997). Stuttering as a covert repair phenomenon. In: Curlee, R. F. & Siegel, G. M. (Eds). Nature and treatment of stuttering: new directions (pp. 182-203). 2n ed. Boston: Allyn and Bacon.

[3] Levelt, W. J. M. (1983). Speaking: from intention to articulation. Cambridge (EUA) e Londres: A Bradford Book e The MIT Press.