Gagueira e testosterona (I)

maio 10, 2016 | por Sandra Merlo | Fisiologia, Gagueira, Hormônios

Ilustração da localização da hipófise no encéfalo. A hipófise é a glândula mais importante do sistema endócrino.

Inicio uma breve série sobre um possível papel da testosterona na gagueira. Alguns fatos clínicos sugerem algumas perguntas:

  • A testosterona poderia explicar, pelo menos parcialmente, a maior incidência de gagueira no sexo masculino em comparação ao feminino? Sabe-se, por exemplo, que a maior incidência de gagueira em meninos e homens não se deve tanto à genética, mas a fatores não genéticos [1].
  • A entrada na puberdade, com o consequente aumento de produção de testosterona, poderia explicar o início, a piora ou a recidiva da gagueira de crianças que, até então, não apresentavam o sintoma, apresentavam-no de forma mais branda ou haviam se recuperado?
  • Sujeitos com gagueira apresentam maior produção de testosterona em relação a seus pares de mesmo sexo e idade?

Antes de entrarmos na relação gagueira-testosterona, alguns conceitos básicos sobre o sistema endócrino e sobre a testosterona.

 

Sistema endócrino

Dois sistemas são os mais importantes para regular as funções corporais: o nervoso e o endócrino [2].

O vocábulo “endócrino” é de origem grega, formado pelo prefixo “éndon” (que significa “dentro, no interior de”) e pela raiz “kríno” (que significa “separar, distinguir”). Assim, “endócrino” significa literalmente “separar internamente”. O vocábulo “separar”, por sua vez, tem relação de sinonímia com “segregar” e este com “secretar”. É por este caminho de significação que se chega à “secreção”.

O sistema endócrino produz e secreta substâncias na corrente sanguínea [2]. O sistema endócrino é principalmente formado por glândulas, que são grupos de células especializadas em produzir determinadas substâncias [2]. Entretanto, os neurônios também agem como glândulas e, de certa forma, também compõem o sistema endócrino [2]. As substâncias que, após a produção, são separadas das glândulas são os hormônios. Por definição, um hormônio é toda substância química que é secretada por uma célula ou por um grupo de células e que exerce controle fisiológico sobre outra célula ou grupo de células [2].

Os neurotransmissores são considerados hormônios locais. A acetilcolina, secretada pelos neurônios motores durante suas sinapses, é um exemplo. Ela é uma substância química liberada por uma célula (o neurônio motor) e que vai exercer controle fisiológico sobre outra célula (contração da fibra muscular esquelética).

Existem outros hormônios que são considerados sistêmicos, ou seja, agem em todas as células do organismo. Os hormônios sistêmicos são sempre produzidos e secretados por glândulas [2]. O hormônio de crescimento e os hormônios da tireoide são exemplos de hormônios sistêmicos.

Também existem hormônios secretados por glândulas que possuem efeitos locais, agindo somente em tecidos que possuem receptores específicos para esses hormônios [2]. É o caso dos hormônios sexuais, por exemplo, como o estrógeno, a progesterona e a testosterona.

O sistema endócrino está relacionado ao controle do metabolismo corporal [2]. O termo metabolismo se refere ao conjunto de reações químicas que liberam energia para a manutenção das funções corporais. O termo “metabolismo basal” se refere especificamente à manutenção de funções básicas para a vida, como a cardiovascular e a respiratória. É principalmente o sistema endócrino, portanto, que controla o metabolismo corporal, induzindo a síntese de substâncias (como glicose e proteínas), a retenção de substâncias (como água, sódio e cálcio), a degradação de substâncias (como proteínas, carboidratos e gorduras), a regulação da taxa de metabolismo e a síntese celular.

A glândula mais importante do sistema endócrino é a hipófise. O vocábulo “hipófise” também vem do grego, sendo formado pelo prefixo “hupó” (que significa “debaixo, embaixo”) e pelo radical “phúsis” (que significa “formação, produção”). Assim, hipófise significa literalmente “formação embaixo”. A hipófise é uma glândula que está localizada imediatamente abaixo do cérebro, dentro da sela túrcica do osso esfenoide, um dos ossos que formam o assoalho da cavidade craniana. É ela que produz e secreta hormônios que irão estimular as outras glândulas do organismo (como a tireoide, as adrenais e as gônadas sexuais). A secreção do hormônio luteinizante pela hipófise será essencial para que os testículos produzam e secretem testosterona [2]. A imagem que ilustra este texto mostra a localização da hipófise no interior do crânio.

Assim, além dos sistemas nervoso e endócrino serem os grandes reguladores das funções do corpo, eles também apresentam grande inter-relação entre si [2]. Os próprios neurônios produzem e secretam hormônios (os neurotransmissores), bem como a hipófise está alojada em íntima relação com o encéfalo, principalmente com o hipotálamo, sendo influenciada por ele em seu mecanismo de ação.

 

Testosterona

A testosterona é o principal hormônio masculino. Ainda existem outros dois hormônios tipicamente masculinos (a di-hidrotestosterona e a androstenediona). Coletivamente, esses hormônios são chamados de “andrógenos” [3].

Quimicamente, a testosterona é um esteroide [2]. Os esteroides são substâncias químicas com a estrutura básica de quatro anéis de carbono. Os esteroides são lipídeos, que são substâncias insolúveis em água. São formados a partir do colesterol [2].

A testosterona é formada nas células intersticiais dos testículos. Existem dois períodos da vida de sujeitos do sexo masculino em que a testosterona é fundamental para a indução de características típicas deste sexo [3]:

  • Da 7ª semana de vida intrauterina até o 3º mês de vida extrauterina. Durante a gestação de um feto masculino, o cromossomo Y faz com que a genitália masculina em formação secrete testosterona. É a presença do hormônio que irá induzir a formação da genitália masculina; sua ausência induz a formação de genitália feminina. Assim, injeções de grandes quantidades de testosterona em fêmeas de animais que estão prenhas induz o desenvolvimento de órgãos sexuais masculinos, mesmo que o feto seja feminino. Por outro lado, a remoção dos testículos de fetos animais induz o desenvolvimento de órgãos sexuais femininos.
  • No período entre o 4º mês de vida até os 10-13 anos, a concentração de testosterona é muito baixa. Nesta faixa etária, as células intersticiais regridem.
  • Com o início da puberdade, entre 10-13 anos, as células intersticiais tornam-se abundantes e a produção e a secreção de testosterona aumentam muito. O aumento do hormônio induz a segunda fase de desenvolvimento dos órgãos sexuais masculinos, além do desenvolvimento pleno das características sexuais secundárias. O pico de produção do hormônio ocorre aproximadamente aos 20 anos e depois começa a decair lentamente ao longo da vida. Aos 80 anos, a produção de testosterona corresponde a cerca de 20% daquela produzida aos 20 anos.

Após a secreção pelos testículos, a testosterona combina-se com uma proteína e circula na corrente sanguínea por até uma hora [3]. Parte dessa testosterona circulante vai agir em determinados tecidos (como próstata, ossos e músculos) [3]. A testosterona circulante que não for utilizada pelos tecidos é degradada pelo fígado em androsterona e di-hidroespiandrosterona, que são posteriormente excretadas [3].

 

Mecanismo intracelular de ação da testosterona

A principal ação intracelular da testosterona é aumentar a taxa de formação proteica [3].

A testosterona circulante que entra nas células é convertida em outro hormônio, a di-hidrotestosterona, pela enzima 5-alfa-redutase [3]. Em seguida, a di-hidrotestosterona se combina com um receptor proteico presente no citoplasma celular. A combinação di-hidrotestosterona-receptor consegue entrar no núcleo celular, onde se combina com porções específicas das fitas de DNA nos cromossomos, ativando o processo de transcrição gênica para formar RNA mensageiro [3]. Após cerca de 30 minutos, o RNA mensageiro difunde-se para o citoplasma, promovendo o processo de tradução nos ribossomos, a fim de formar novas proteínas (que podem ser proteínas estruturais, proteínas de transporte ou enzimas, dependendo do tecido) [3].

A testosterona, portanto, aumenta a produção de proteínas no corpo como um todo, mas com ênfase em tecidos responsáveis pelos órgãos sexuais e pelas características sexuais secundárias [3].

 

Características sexuais secundárias

As características sexuais secundárias tipicamente masculinas são [3]:

  1. Maior quantidade de pelos: a testosterona induz o crescimento de pelos na face, no tórax, no abdômen e na região pubiana, além de fazer com que os pelos de outras partes do corpo sejam mais abundantes.
  2. Calvície: é a redução no crescimento de cabelos no topo da cabeça. Para que a calvície ocorra são necessários dois fatores: predisposição hereditária e grandes quantidades de testosterona. Sem tendência genética, a calvície não ocorre. Ela também não ocorre em homens que não apresentam produção significativa de testosterona devido a alguma disfunção testicular.
  3. Pele mais grossa: a testosterona induz ao aumento da espessura da pele e da resistência do tecido subcutâneo.
  4. Acne: a testosterona induz ao aumento de secreção das glândulas sebáceas, especialmente as da face, predispondo à acne.
  5. Aumento de massa muscular: a testosterona induz a hipertrofia muscular, ou seja, o número de proteínas contráteis (actina e miosina) nas fibras musculares aumenta muito após a puberdade masculina. Os homens, em geral, apresentam cerca de 50% mais massa muscular do que as mulheres.
  6. Voz grave: ocorre devido ao aumento de massa muscular na laringe. Este será o tópico de outro texto desta série.
  7. Ossos mais fortes: a testosterona induz o aumento da matriz óssea e dos depósitos de cálcio. Assim, os ossos masculinos tendem a ser maiores e mais resistentes do que os femininos. Em homens idosos, por exemplo, a testosterona é usada para tratar osteoporose.
  8. Remodelamento da pélvis: a testosterona induz ao remodelamento da pélvis masculina, fazendo com que se torne mais estreita e alongada. Na ausência de testosterona, a pélvis masculina torna-se mais similar à feminina, ou seja, mais larga.
  9. Maior taxa basal de metabolismo: a testosterona induz ao aumento da taxa basal de metabolismo em até 10%. Este efeito ocorre devido ao aumento no número de enzimas, as quais aumentam as atividades celulares.
  10. Aumento no número de glóbulos vermelhos: acredita-se que este efeito seja indireto, devido ao aumento da taxa metabólica.
  11. Maior retenção de sódio: a testosterona induz à maior retenção de sódio pelos rins, o que aumenta o volume do sangue e dos fluidos extracelulares em relação à massa corporal.

Os homens também produzem estrógenos, que são hormônios tipicamente femininos. Um homem adulto apresenta cerca de 20% de estrógenos em comparação a uma mulher adulta (não gestante) [3]. Neste caso, os estrógenos são formados nos testículos e no fígado, tendo papel importante na espermatogênese [3].

Embora a testosterona seja um hormônio tipicamente masculino, as mulheres também o apresentam. Neste caso, ela é produzida e secretada pelos ovários [3].

 

Referências

[1] Drayna, D.; Kilshaw, J. & Kelly, J. (1999). The sex ratio in familial persistent stuttering. American Journal of Human Genetics, 65, 1473-1475.

[2] Guyton, A. C. & Hall, J. E. (1996). Introduction to endocrinology. In: Textbook of medical physiology (pp. 925-932). 9th ed. Philadelphia: W. B. Saunders Co.

[3] Guyton, A. C. & Hall, J. E. (1996). Reproductive and hormonal functions of the male (and the pineal gland). In: Textbook of medical physiology (pp. 1003-1016). 9th ed. Philadelphia: W. B. Saunders Co.