Gagueira encoberta

fev 03, 2018 | por Sandra Merlo | Gagueira

Algumas pessoas com gagueira conseguem passar por fluentes. Elas apresentam gagueira encoberta.

Existem pessoas com gagueira que são tidas como fluentes pelos seus interlocutores. Quando estas pessoas dizem que gaguejam, o interlocutor costuma não acreditar. Quando estas pessoas procuram tratamento, o profissional de saúde (médico, psicólogo ou fonoaudiólogo) diz que sua fala é normal. Quando estas pessoas se referem à gagueira, costumam ouvir: “Você não tem nada. Isso é coisa da sua cabeça”. Entretanto, a gagueira pode estar presente, mesmo que o interlocutor não ouça traços típicos de gagueira.

A gagueira geralmente se manifesta de forma explícita na fala, através de sinais bem específicos (como repetições de parte de palavras ou prolongamentos e bloqueios em início de palavras). Entretanto, algumas pessoas com gagueira conseguem ocultar esses sinais típicos de gagueira e “passam” por fluentes. Devido ao fato de a gagueira permanecer oculta, diz-se que estas pessoas apresentam gagueira encoberta. Christopher Constantino, que é uma pessoa com gagueira e também fonoaudiólogo, em conjunto com outros dois colaboradores, publicou um artigo sobre gagueira encoberta [1].

Porque procuram esconder a gagueira a todo custo, as pessoas com gagueira encoberta são vistas como muito ansiosas, envergonhadas ou com baixa autoestima. As pessoas que passam por fluentes teriam uma visão muito negativa sobre sua própria gagueira, teriam altos níveis de ansiedade social e gastariam muita energia para tentar esconder a gagueira. A fluência conseguida desta forma seria falsa, obtida às custas de truques e dissimulações. Essas pessoas não seriam autênticas, mas sim impostoras. Constantino & colaboradores partiram de outro princípio: as pessoas que passam por fluentes podem fazer isso não devido à fraqueza, vergonha ou baixa autoestima, mas porque estão tentando resistir ao preconceito social que envolve a gagueira.

 

O estudo

Nove sujeitos com gagueira, que passam por fluentes, foram submetidos a entrevistas semiestruturadas. Seis eram mulheres e três eram homens. Todos os participantes eram adultos, com idades entre 19 e 73 anos. Foram selecionados sujeitos que referiram ser capazes de esconder a gagueira de forma que os interlocutores não os reconheciam como pessoas com gagueira. As entrevistas duraram, em média, 1 hora e meia.

A seguir, alguns resultados do estudo.

 

O ato de gaguejar

Para os participantes, o ato de gaguejar explicitamente e a sensação de gaguejar são coisas distintas. O ato de gaguejar seria a manifestação explícita da gagueira, que é tida como algo muito ruim. A sensação de gaguejar se refere à perda de controle da fala, que é algo subjetivo. Para os sujeitos do estudo, embora a sensação de gaguejar seja impossível de ser evitada, o ato de gaguejar pode ser encoberto.

 

A identificação como pessoa que gagueja

Cinco participantes contaram que não mantêm segredo sobre o fato de gaguejarem, ou seja, eles dizem para as pessoas com quem convivem que têm gagueira.

Por outro lado, três participantes mantêm segredo sobre sua gagueira. Isso não quer dizer que eles nunca falaram com ninguém sobre a gagueira, mas que este tema não é de domínio público. Para estes sujeitos, a exposição pública da gagueira é vista como uma ameaça à imagem social que eles desejam projetar.

 

Deslegitimação direta

A deslegitimação direta envolve atos de punição pela gagueira. A punição tomou forma através do bullying durante a infância ou vida adulta. Por exemplo, um dos participantes referiu que, durante o ensino fundamental, os professores disseram que sua fala era muito ruim e que havia algo de errado com ele. Esta foi uma das situações que ensinaram a ele que a gagueira deveria ser escondida.

Outras formas de punição que foram citadas incluem:

  • Familiares disseram para a pessoa não falar se perceber que vai gaguejar.
  • Familiares disseram que, apesar de ele(a) ser adulto(a), ainda falava como criança.
  • Empregadores disseram que não poderiam contratá-lo(a) por causa da gagueira.
  • Empregadores disseram para a pessoa não utilizar o telefone por causa da gagueira.
  • Potenciais parceiros(as) amorosos(as) ridicularizaram a forma como a pessoa falava.

Para os participantes do estudo, a vivência deste tipo de situação ensinou que a gagueira não podia ser mostrada publicamente.

 

Deslegitimação indireta

A deslegitimação indireta se refere a atitudes que não tinham o objetivo de humilhar a pessoa com gagueira, mas que, por fim, acabaram por fazê-lo. Exemplos incluem:

  • Terminar a frase pela pessoa.
  • Oferecer instruções que não foram solicitadas: “Fale devagar”, “Respire antes de falar” ou “Não precisa ficar nervoso(a)”.
  • Olhar para a pessoa demonstrando pena, inquietação ou desconforto.

Os participantes referiram que estas atitudes fizeram com que se sentissem inferiores perante o interlocutor. Para eles, essas vivências também foram estímulos que os fizeram concluir que a gagueira deveria ser escondida.

Outra forma de deslegitimação indireta é o silêncio a respeito da gagueira. Embora os participantes do estudo sejam adultos com gagueira encoberta, nem sempre a gagueira esteve oculta. Isso implica que os pais ou outros membros da família têm conhecimento de que aquele adulto foi uma criança com gagueira explícita. O silêncio em torno da gagueira também mostrou aos participantes do estudo que a gagueira é um tabu, um assunto sobre o qual não se deve falar.

Ainda outra forma de deslegitimação indireta referida pelos participantes são os tratamentos que prometem cura. Passar por esses tratamentos e não se curar indicaria, então, que é a própria pessoa que “não está fazendo a coisa certa” e que ela é a culpada por “ainda” gaguejar.

 

Auto-organização

Como os sujeitos fazem, afinal, para passarem por pessoas fluentes? Eles deixaram claro que se passar por fluente não envolve apenas evitar falar. Eles referiram que participam das atividades de vida diária, mas que, diferente de pessoas que não gaguejam, precisam lançar mão de variadas estratégias. Isso indica que passar por fluente é um processo ativo e não passivo.

 

Antecipação da gagueira

Todos os sujeitos relataram conseguir perceber com antecedência quando a gagueira vai ocorrer. É justamente a percepção antecipada que faz com que os sujeitos possam agir para ocultar a gagueira. Tanto esta percepção pode ocorrer milissegundos antes de falar uma determinada palavra, quanto pode ocorrer com mais tempo (como, por exemplo, ao pegar o telefone para ligar para alguém).

 

Modificações na fala

As estratégias utilizadas para modificar o modo de falar em si incluem o controle do fluxo expiratório, o início suave, as pausas e o controle do ritmo de fala.

Todos os sujeitos relataram o uso de disparadores, ou seja, sons ou palavras que ajudam a falar. Em geral, os sons são preenchedores [como “éh” ou “ãh”, em português] ou marcadores discursivos [como “tipo” ou “assim”, em português].

Alguns participantes também referiram ter um amplo vocabulário e que isso facilita a troca de uma palavra por outra similar.

Outros sujeitos relataram planejar o texto a ser falado com antecedência. Por exemplo, antes de uma ligação telefônica, a pessoa ensaia algumas frases que podem ser necessárias.

Ainda outra estratégia é reduzir a extensão de uma explicação ou de um comentário, para reduzir o risco de a gagueira ocorrer.

Achei interessante constatar que diversas estratégias que os sujeitos referiram utilizar são, de fato, estratégias abordadas em fonoterapia (como a modificação do modo de falar, o uso de preenchedores e o planejamento prévio da fala). De certa forma, os sujeitos do estudo me pareceram estar em um nível avançado no uso dessas estratégias.

 

Evitação

Todos os sujeitos relataram evitar palavras, pessoas ou situações em momentos em que julgaram que a gagueira não poderia ser escondida. Por exemplo:

  • Fazendo de conta que esqueceu a palavra ou a informação que gostaria de dizer.
  • Não atendendo ao telefone.
  • Faltando a reuniões de trabalho.
  • Evitando figuras de autoridade.

 

Objetivo

Com todas essas estratégias, os sujeitos têm o objetivo de conseguirem passar por fluentes. E para quê? Para desfrutarem dos benefícios de serem vistos como pessoas “normais”. Isso inclui não correr o risco de os interlocutores pensarem que a gagueira se deve a algum tipo de problema intelectual ou emocional, livrando o sujeito de zombarias e discriminações das mais variadas. Passar por fluente seria, então, uma forma de resistir ao comportamento hostil da sociedade em relação à gagueira.

Constantino & colaboradores argumentam que não há uma forma “autêntica” de gaguejar. A gagueira encoberta não seria uma forma não autêntica de gagueira, seria apenas outro modo de gaguejar.

 

Referência

[1] Constantino, C. D.; Manning, W. H. & Nordstrom, S. N. (2017). Rethinking covert stuttering. Journal of Fluency Disorders, 53, p. 26–40.