Postura corporal, respiração e fala

set 02, 2013 | por Sandra Merlo | Fisiologia, Gagueira, Respiração

Ilustração do suposto insight de Isaac Newton sobre a existência da força da gravidade.

Este texto aborda a dinâmica respiratória em duas posições corporais distintas: ereta (em pé ou sentado) e supina (deitado de costas).

A fonoaudióloga Jeannette Hoit publicou um artigo de revisão sobre a influência da postura corporal na respiração. Ela também publicou outro artigo especificamente sobre a influência dos músculos abdominais na respiração.

 

Exemplo clínico

Uma das estratégias clínicas mais utilizadas para se modificar o padrão respiratório de pessoas com distúrbios de fala é a exemplificada a seguir. Inicialmente, o paciente é colocado em posição supina (deitado em uma maca ou em um colchonete). Em seguida, ele é orientado a movimentar intensamente o abdômen durante o ciclo respiratório, movimentando o mínimo possível a caixa torácica. O abdômen deve expandir na inspiração e retrair na expiração. Em um primeiro momento, a respiração é apenas de repouso. Em um segundo momento, associam-se vocalizações variadas (vogais alongadas e sequências automáticas, por exemplo), sempre mantendo a movimentação abdominal. Na sequência, o paciente é colocado em posição ereta (em pé ou sentado) e é solicitado a manter o mesmo padrão de movimentação abdominal durante o ciclo respiratório, com ou sem fala. A meta final é que o paciente transfira esse padrão respiratório para seu dia-a-dia.

Como veremos a seguir, os estudos científicos da fonoaudióloga Jeannette Hoit (e também de outros pesquisadores) indicam que esta estratégia é totalmente equivocada, porque não leva em consideração as mudanças que ocorrem na fisiologia respiratória de acordo com a posição corporal (ereta ou supina) e de acordo com a atividade (repouso ou fala).

 

Força gravitacional e dinâmica respiratória

É a força gravitacional que faz com que os padrões respiratórios se modifiquem de acordo com a postura corporal.

Diz a lenda que, no século XVII, Isaac Newton estava sentado embaixo de uma macieira e, ao ser atingido por uma maçã, perguntou-se por que os objetos caem. Dito de outra forma: por que os objetos sempre são atraídos para baixo, em direção ao centro da Terra? Ele concluiu que existe uma força de atração entre os corpos. Essa força, que Newton chamou de gravidade, é diretamente proporcional à massa dos corpos e inversamente proporcional à distância que os separa (Lei da Gravitação Universal).

Na posição ereta, a gravidade puxa a caixa torácica para baixo (o que facilita a expiração), além de também puxar o diafragma para baixo (o que, neste caso, facilita a inspiração).

Na posição supina, a gravidade puxa a caixa torácica para baixo (novamente facilitando a expiração), além de puxar o abdômen para baixo (o que posiciona o diafragma em sentido cranial, também facilitando a expiração). Com a dupla tendência à expiração, o volume de ar nos pulmões é menor em comparação à posição ereta.

 

Respiração de repouso

Na posição ereta, a inspiração é realizada pelo diafragma. A expiração é realizada pela retração elástica dos pulmões. Os músculos abdominais (oblíquos e transverso abdominal) tendem a permanecer contraídos durante todo o ciclo respiratório. Quanto mais os músculos abdominais estiverem contraídos, menos o abdômen expande e mais o conteúdo abdominal é pressionado para dentro e o diafragma, para cima.

Por que a contração dos músculos abdominais é importante durante a respiração de repouso na posição ereta? Quando os músculos abdominais estão relaxados, o abdômen expande e o diafragma reduz sua curvatura (devido à tendência gravitacional à inspiração), o que encurta suas fibras. Por outro lado, quando os músculos abdominais estão contraídos, diminuindo a protrusão abdominal, o diafragma é elevado. Isso alonga as fibras do diafragma, maximizando seu funcionamento.

Na posição supina, o padrão muscular é diferente. A inspiração é realizada pelo diafragma e a expiração, pela retração elástica dos pulmões. Os músculos abdominais não estão mais ativos e esta é a principal diferença entre a respiração de repouso na posição ereta e na posição supina. Os músculos abdominais não precisam estar ativos na posição supina, porque a gravidade se encarrega de executar a mesma função (ou seja, mover o diafragma em sentido cranial). Como os músculos abdominais permanecem relaxados, o abdômen se movimenta com facilidade, acompanhando o funcionamento do diafragma. É por isso que a movimentação abdominal é marcante na posição supina em comparação à posição ereta.

 

Respiração falada

Na posição ereta, a inspiração é realizada pelos músculos da caixa torácica e pelo diafragma. A expiração é realizada pelos músculos da caixa torácica. Os músculos abdominais permanecem contraídos durante todo o ciclo respiratório, o que mantém o abdômen retraído e com pouca movimentação. Além disso, a contração dos músculos abdominais na respiração durante a fala é mais intensa em comparação à respiração de repouso.

Os movimentos mais marcantes na respiração falada são, sem dúvida, os da caixa torácica (e não do abdômen). Os músculos intercostais são mais aptos para fazerem inspirações rápidas do que o diafragma. A caixa torácica cobre 75% da área pulmonar, enquanto o diafragma cobre apenas 25% da área. Assim, a caixa torácica não precisa se mover tanto quanto o diafragma para inspirar o mesmo volume gasoso.

Por que a contração dos músculos abdominais é importante durante a respiração falada na posição ereta?

A contração dos músculos abdominais durante a inspiração falada pressiona a caixa torácica para cima e para frente, o que aumenta a expansão da caixa torácica e a eficiência inspiratória. Uma estratégia usada no canto exemplifica o fato de os músculos intercostais serem mais eficientes do que o diafragma para realizarem inspirações rápidas: cantores geralmente contraem fortemente os músculos abdominais para elevar ao máximo a caixa torácica e, assim, facilitar as inspirações durante o canto.

Se os músculos abdominais não permanecessem contraídos durante a expiração falada, a contração dos músculos expiratórios da caixa torácica iria expandir o abdômen, reduzindo a pressão subglótica e o volume vocal. Ou seja, a contração dos músculos abdominais durante a expiração prolongada da fala fornece uma base de sustentação para a manutenção da pressão subglótica e do volume vocal (exatamente o que outros primatas não conseguem fazer durante suas vocalizações; sobre isso, ver o texto anterior desta série).

Na posição supina, a diferença novamente está nos músculos abdominais, que permanecem relaxados. Os músculos abdominais apenas irão se contrair em condições específicas, como para a fala em alta intensidade (contração dos oblíquos e do transverso abdominal) ou para a fala com pouco volume pulmonar (contração dos oblíquos, do transverso abdominal e do reto abdominal).

 

Retomando o exemplo inicial

Como visto, a dinâmica respiratória se modifica de acordo com a atividade executada (repouso ou fala) e de acordo com a posição corporal (ereta ou supina). É por isso que a estratégia de se solicitar o mesmo padrão respiratório para todas as situações é equivocada. Os diferentes padrões podem ser didaticamente explorados e discutidos, mas a meta principal da terapia fonoaudiológica é o padrão respiratório durante a fala e na posição ereta.

 

Outro exemplo clínico

Há algum tempo, ouvi o seguinte relato da mãe de um adolescente:

“Eu percebo algo na fala de J. que me deixa intrigada. Quando nós estamos sentados à mesa fazendo uma refeição, ele gagueja. Mas, em seguida, quando ele deita no sofá para ver TV, ele fala sem gaguejar. Por que isso acontece?”

Na época, eu não soube responder ao questionamento. Mas os achados sobre as mudanças nos padrões musculares de acordo com a posição corporal podem explicar o relato. A principal diferença entre a respiração falada na posição ereta e na posição supina é a participação dos músculos abdominais, que permanecem relaxados na posição supina. O maior relaxamento muscular na posição supina deve facilitar a fluência de J., que faz menos esforço para falar e experimenta poucas rupturas.