Respiração intercostal e fluência da fala

ago 26, 2013 | por Sandra Merlo | Fisiologia, Gagueira, Respiração

O maior controle sobre os músculos intercostais está relacionado ao maior fluxo expiratório nos seres humanos e, consequentemente, à fluência da fala.

Estou dando início a uma série para discutir a inter-relação entre gagueira e respiração. Este primeiro texto aborda o aumento do controle respiratório ao longo da evolução dos primatas. Os próximos textos abordarão a dinâmica respiratória durante a fala. Os últimos textos abordarão o que se conhece até agora sobre a dinâmica respiratória específica da gagueira.

 

O aumento do controle respiratório ao longo da evolução das espécies

Quais foram os fatores que propiciaram a fala humana? Fatores neurológicos (como o tamanho do cérebro), fatores esqueléticos (como o reposicionamento do osso hioide) e fatores culturais (como o desenvolvimento de ferramentas) são todos considerados importantes. Um dos fatores que têm sido negligenciados neste debate é o controle dos músculos da respiração, essenciais para a fala. É sobre isso o artigo de Ann MacLarnon & Gwen Hewitt [veja aqui o artigo na íntegra].

As autoras procuraram evidências do aumento do controle respiratório na evolução dos primatas. Quando se estudam fósseis, tudo o que resta são ossos. Por isso, as autoras mediram o canal vertebral torácico de uma série de espécies (vivas e extintas). Especificamente, elas mediram a altura e a largura interna do forame das vértebras torácicas. Com essas duas medidas, a área do canal vertebral foi calculada. Quase 50 espécies de primatas não humanos foram analisadas (dentre elas: gibões, orangotangos, chimpanzés, gorilas, primatas do Velho e do Novo Mundo, lêmures). Também foram analisadas fósseis de hominídeos (são eles: Australopithecus afarensis, Australopithecus africanus, Homo ergaster, Homo neanderthalensis e Homo sapiens). Os dados do tamanho do canal vertebral torácico foram relativizados de acordo com a massa corporal.

Os resultados indicaram que todas as espécies de primatas não humanos apresentaram canal vertebral significativamente menor em comparação às espécies de hominídeos (ver Figuras 1a, 2a e 3a). Dentre os hominídeos, o Australopithecus afarensis, o Australopithecus africanus e o Homo ergaster apresentaram canal vertebral menor em relação ao Homo neanderthalensis e ao Homo sapiens (ver Figuras 1b, 2b e 3b).

E como esses achados se relacionam com o controle respiratório? O tamanho do canal vertebral está diretamente correlacionado com o tamanho da medula espinhal e, especificamente, com a quantidade de substância cinzenta (corpos neuronais). Assim, a medula espinhal apresenta maior área nas espécies Homo neanderthalensis e Homo sapiens em relação às demais. Se a quantidade de corpos neuronais nas vértebras torácicas é maior, a inervação da musculatura torácica também é maior.

Os nervos espinhais torácicos suprem os músculos da caixa torácica (intercostais, levantadores das costelas, subcostais e transverso do tórax), os músculos da coluna vertebral torácica (como os eretores da espinha) e a pele da região torácica. Os nervos espinhais torácicos também suprem os músculos anteriores da parede abdominal (reto abdominal, oblíquos e transverso abdominal). Já o diafragma, em sua função motora, é inteiramente suprido pelo nervo frênico, que se origina na região cervical. Isso é devido a razões embriológicas: a origem do diafragma é mais cranial, havendo migração caudal com o desenvolvimento fetal.

Os músculos torácicos e abdominais supridos pelos nervos espinhais torácicos possuem três funções principais na espécie humana:

  • Manutenção da postura ereta e controle do tronco durante a realização de movimentos;
  • Reflexos de expulsão (como tosse, vômito, defecação e parto);
  • Controle da respiração.

Portanto, o aumento da inervação torácica deve estar relacionado a essas funções.

A aquisição da postura bípede ao longo da evolução das espécies não explica o aumento de inervação torácica. O Homo ergaster era bípede e possuía cintura pélvica flexível. Ou seja, qualquer aumento na inervação torácica necessária ao bipedalismo ocorreu previamente ao Homo ergaster, sendo que esta espécie apresenta inervação torácica similar a outras espécies de primatas não humanos.

Em relação aos reflexos de expulsão, o parto é particularmente importante. O parto humano está entre os mais difíceis entre os primatas. Isso ocorre devido ao tamanho da cabeça do neonato em relação ao canal de parto. A primeira espécie hominídea em que a cabeça do neonato experimentou compressão no canal de parto foi o Homo ergaster. Assim, contrações musculares mais fortes estavam presentes no Homo ergaster em comparação a outras espécies de hominídeos e primatas. Entretanto, o principal músculo envolvido no parto é o uterino, o que não explicaria o aumento da inervação torácica.

De acordo com a hipótese das autoras do estudo, a respiração é a função responsável pelo aumento da inervação torácica. Três mudanças funcionais são candidatas para explicar o fenômeno.

A primeira refere-se ao acoplamento rítmico entre postura bípede e respiração. Em animais quadrúpedes, o movimento dos membros anteriores transmite forças intensas e transferência de peso à caixa torácica. Assim, há uma relação unívoca entre movimento dos membros anteriores e ciclo respiratório. Entretanto, essas mudanças já haviam se consolidado no Homo ergaster e o aumento da inervação torácica ocorreu depois desta espécie.

A segunda mudança refere-se à necessidade de nadar e mergulhar para capturar alimento. Essas atividades seriam facilitadas pelo maior controle respiratório, possibilitando um ciclo com inspiração rápida e expiração longa ao invés do ciclo respiratório habitual, em que inspiração e expiração têm aproximadamente o mesmo tempo. Esta hipótese, entretanto, é descartada, porque a espécie humana não é uma espécie com habilidades inatas para nado ou mergulho. Além disso, a fase aquática na evolução das espécies ocorreu muito antes das espécies de primatas ou hominídeos: há aproximadamente 3,7 milhões de anos, enquanto o aumento da inervação torácica ocorreu em algum momento entre 1,6 milhão e 100 mil anos.

A terceira mudança refere-se à fala. Evidências científicas indicam que o controle dos músculos respiratórios (principalmente os intercostais) durante a fala humana é tão fino quanto o controle dos músculos das mãos. Isso justificaria a necessidade de maior inervação torácica.

 

Inervação torácica e sua importância para a fala humana

Os principais músculos envolvidos na respiração são o diafragma, os intercostais (externos e internos), o reto abdominal e os oblíquos (externos e internos). Todos esses músculos, com exceção do diafragma, são supridos por nervos torácicos. Outros músculos (como os escalenos, o esternocleidomastoideo e o peitoral) são apenas acessórios na respiração.

Na inspiração de repouso, o músculo ativo é o diafragma. Se a inspiração for forçada, os intercostais também entram em ação. Na expiração de repouso, não há atividade muscular, ocorre apenas retração elástica dos pulmões. Na expiração forçada, os intercostais também entram em ação. Os músculos abdominais são ativos na respiração de repouso somente se a posição é ereta, mas não são ativos na posição supina.

Durante a fala, os músculos inspiratórios são os intercostais e não o diafragma. Há evidências de que o diafragma permanece relaxado durante a fala. A expiração é inicialmente resultado da retração elástica dos pulmões, mas, em seguida, passa a ser ativamente controlada pelos músculos intercostais e abdominais. Os músculos abdominais são ativos durante a fala apenas na posição ereta; quando a posição é supina, eles permanecem relaxados.

O controle fino dos músculos respiratórios também inclui um sistema de feedback provido pelos fusos musculares e pelos órgãos tendinosos, que estão presentes em abundância nos músculos intercostais e nos abdominais, mas não no diafragma.

A compreensão exata do controle muscular respiratório durante a fala está longe de ser completa. Mas já está claro que os músculos mais importantes (tanto na inspiração, quanto na expiração) são os intercostais e alguns músculos abdominais, todos com inervação torácica.

 

Respiração durante a fala

O controle dos músculos respiratórios durante a fala é bem diferente em comparação ao repouso. As diferenças são tantas que, segundo as autoras do estudo referido anteriormente, seriam a justificativa para o aumento da inervação torácica no Homo neanderthalensis e no Homo sapiens.

Essas diferenças concentram-se muito mais na expiração do que na inspiração. A contração dos músculos expiratórios tem por finalidade controlar a pressão subglótica, ou seja, a pressão na traqueia, brônquios e pulmões. Sem pressão subglótica eficiente, não é possível produzir voz.

Já foram feitos estudos de vocalizações de primatas não humanos em vida selvagem (utilizando-se espectógrafos) e mantidos em cativeiro (utilizando-se espectógrafos e eletromiógrafos). Também já foram feitos estudos com seres humanos utilizando-se aparelhagens diversas (espectógrafos, eletromiógrafos, magnemômetros e pletismógrafos). A seguir, são elencadas diferenças no controle respiratório entre seres humanos e outros primatas durante a fonação.

A primeira diferença diz respeito ao tempo e ao volume de ar inspirado antes da fonação. Nos seres humanos, a inspiração para a fala é mais rápida e com maior volume em relação à inspiração de repouso. Não há evidências de que primatas não humanos façam o mesmo: a inspiração para vocalização e a inspiração de repouso apresentam a mesma duração e o mesmo volume gasoso.

A segunda diferença diz respeito à musculatura respiratória utilizada para a fonação. Nos seres humanos, os músculos respiratórios por excelência são os intercostais (externos e internos). Em primatas não humanos (como o macaco-de-cheiro da Amazônia), o controle muscular respiratório é diferente. As vocalizações recrutam quase que exclusivamente o diafragma. Para esses animais, os intercostais apenas auxiliam no suporte da cavidade torácica, facilitando a ação do diafragma, mas não são os músculos respiratórios por excelência para as vocalizações.

A terceira diferença diz respeito à relação temporal entre inspiração e expiração. Na respiração de repouso, o tempo de inspiração e o de expiração são praticamente idênticos. Na respiração durante a fala, a inspiração é rápida e a expiração é prolongada: em seres humanos, a expiração durante a fala pode chegar a 12 segundos. A máxima fisiológica de que a inspiração é ativa e a expiração é passiva não se aplica quando se trata da respiração falada. Primatas não humanos praticamente não conseguem prolongar a expiração durante as vocalizações. Os bugios (como o Alouatta palliata) estão entre as espécies que mais conseguem prolongar a expiração, mas ela não ultrapassa 5 segundos.

A principal vantagem em conseguir fazer expirações prolongadas é a possibilidade de produzir diversas unidades sonoras (os fones) em sequência. Primatas não humanos são capazes de produzir diversos sons. O macaco-japonês, por exemplo, é capaz de vibrar os lábios e a língua. Mas, diferentemente dos seres humanos, primatas não humanos tendem a produzir um único som em uma única expiração. Quando há mais de um som na mesma expiração, geralmente é a repetição do mesmo som. O gibão-de-mãos-brancas se destaca: consegue produzir duas unidades sonoras em uma mesma expiração, através da abertura e do fechamento da boca. O gibão siamang também se destaca: consegue produzir um grito bitonal em uma mesma expiração, produzido pelo inflar e desinflar dos sacos laríngeos. O padrão humano, entretanto, caracteriza-se por múltiplos fones em uma única expiração prolongada.

A quarta diferença diz respeito às variações coordenadas de pressão subglótica ao longo da fala. Para a produção dos diferentes fones de uma língua, é necessário que a cavidade oral, a faringe e a laringe assumam configurações diferentes (são os gestos articulatórios). Por exemplo, a produção de fones oclusivos não vozeados como [p, t, k] bloqueiam o fluxo aéreo por aproximadamente 100 ms, o que não ocorre com os pares vozeados [b, d, g]. Desta forma, a pressão subglótica é maior em oclusivas não vozeadas em relação às oclusivas vozeadas. Portanto, as diferentes configurações do trato vocal causam diferentes resistências ao fluxo aéreo, fazendo com que a pressão subglótica necessária para produzir uma determinada frequência fundamental ou uma determinada intensidade vocal varie de acordo com o gesto articulatório.

A quinta diferença diz respeito ao controle da pressão subglótica ao longo da expiração. A consequência primeira do esvaziamento progressivo dos pulmões é a diminuição progressiva da intensidade vocal. Isso ocorre nas vocalizações de todos os primatas não humanos. Na fala humana, por outro lado, os músculos expiratórios são ativos, o que mantém a pressão subglótica e evita a diminuição da intensidade vocal.

A sexta diferença diz respeito ao controle da frequência fundamental da voz ao longo da expiração. A frequência fundamental também decai à medida que a pressão subglótica decai. Os seres humanos conseguem controlar a frequência fundamental voluntariamente através do controle da pressão subglótica e do controle laríngeo. Desta forma, um enunciado longo pode ser finalizado com entoação ascendente, plana ou descendente, as quais sinalizam diferentes significados. Este mecanismo está ausente em vocalizações de primatas não humanos: a frequência fundamental necessariamente decai ao longo da expiração. Quando primatas não humanos produzem vocalizações com contorno ascendente de frequência fundamental, elas são muito breves (não mais de 1 segundo).

O controle neurológico central também é diferente para a respiração durante o repouso e durante a fala em seres humanos. A respiração de repouso é controlada pelo rombencéfalo (núcleos da ponte e do bulbo), envolvendo reflexos do nervo vago. A respiração durante a fala é mais complexa, sendo controlada pelo mesencéfalo e pelo prosencéfalo. Na medula espinhal, os tratos descendentes e os reflexos são integrados, em nível cervical e torácico.

Portanto, esse controle respiratório refinado é um dos fatores que levam à fluência da fala, porque permite que os adultos da espécie humana produzam enunciados longos, sem a necessidade de paradas constantes para inspirar e inserindo as pausas inspiratórias rápidas em posições linguisticamente relevantes (ou seja, em fronteiras de sintagmas). Esse controle respiratório foi possível devido ao aumento de inervação dos músculos torácicos (particularmente dos intercostais), ao maior número de corpos neuronais no forame das vértebras torácicas e também ao aumento da área de todo o canal vertebral torácico. Esse salto evolutivo ocorreu em algum momento entre 1,6 milhão e 100 mil anos atrás nas espécies Homo neanderthalensis e Homo sapiens.