Sono e vocabulário infantil

abr 22, 2019 | por Sandra Merlo | Sono

A maior consolidação do ciclo vigília-sono na primeira infância aumenta o vocabulário da criança.

A psicóloga Ginette Dionne & colaboradores [1] publicaram um artigo muito interessante sobre a influência do sono na aquisição de vocabulário durante a primeira infância. Pesquisas anteriores já haviam demonstrado que o bom sono na primeira infância está associado a um melhor desempenho cognitivo. Mas o estudo de Dionne & colaboradores [1] se destaca por ser longitudinal e por comparar fatores genéticos e ambientais.

 

Aquisição de vocabulário na primeira infância

A aquisição da linguagem inicia desde que a criança nasce. As primeiras palavras costumam ser pronunciadas entre 10 e 12 meses, sendo que uma rápida expansão no vocabulário expressivo ocorre entre 18 e 24 meses: de cerca de 20 palavras aos 18 meses para cerca de 200 palavras aos 24 meses [2]. Aos 2 anos e meio, as crianças conseguem falar cerca de 300 palavras e conseguem entender cerca de 400 palavras. Aos 5 anos, as crianças conseguem falar e entender cerca de 2000 palavras [2].

 

Consolidação do ciclo vigília-sono na primeira infância

Do nascimento até os três meses, o sono do bebê pode ocorrer em qualquer momento do dia ou da noite. Não há qualquer consolidação indicando que o dia é reservado à vigília e a noite é reservada ao sono. Nesta faixa etária, o tempo total de sono por dia chega a 18 horas.

A partir dos três meses de vida, o ciclo vigília-sono começa gradualmente a se consolidar.

Aos seis meses, o tempo de sono noturno é de aproximadamente 8 horas e o tempo de sono diurno é de aproximadamente 4 horas.

Aos 18 meses (1 ano e meio), o tempo de sono noturno é de aproximadamente 10 horas e o tempo de sono diurno é de aproximadamente 2,5 horas.

Aos 60 meses (5 anos), espera-se que o ciclo vigília-sono esteja totalmente consolidado, ou seja, com ocorrência apenas de sono noturno, sem sono diurno. Nesta idade, o tempo de sono noturno é de aproximadamente 10 horas.

Existe um debate na literatura científica sobre quais parâmetros seriam os mais adequados para medir a consolidação do ciclo vigília-sono na primeira infância. Medidas que indicam o aumento gradual do sono noturno e a redução gradual do sono diurno seriam o melhor indicador.

 

O estudo

No estudo de Dionne & colaboradores [1], foram analisados o sono e a linguagem de 1029 gêmeos ao longo de cinco anos. Os dados foram provenientes do “Quebec Newborn Twin Study”, uma amostra epidemiológica canadense. Para serem incluídos nesta amostra, os bebês não podiam apresentar nenhuma grande condição médica no nascimento, precisavam ter dados perinatais completos e serem fluentes em uma das línguas do país (inglês ou francês). A amostra final foi composta por 1029 gêmeos, sendo 506 meninos e 523 meninas, 419 monozigóticos e 610 dizigóticos.

A duração média das gestações foi de 36 semanas, o peso médio ao nascer foi de 2450 gramas e a média do Apgar no 1º e no 5º minuto de vida foi de 8,5 e 10 pontos, respectivamente.

Na primeira avaliação, quando os gêmeos tinham 6 meses de vida, foram feitas perguntas às mães sobre uso de cigarro durante a gestação, grau de escolaridade da mãe, renda familiar e estrutura familiar.

Quando os gêmeos tinham aproximadamente 6, 18 e 30 meses, as mães foram questionadas sobre o sono das crianças. O objetivo era saber o número de horas consecutivas de sono durante a noite e durante o dia para cada criança. A continuidade do sono é um bom indicador das mudanças maturacionais que ocorrem ao longo do desenvolvimento. Crianças com sono muito descontínuo apresentam menor maturidade neurológica.

Quando os gêmeos tinham aproximadamente 18, 30 e 60 meses, a linguagem foi avaliada. Aos 18 e 30 meses, 77 e 100 palavras, respectivamente, foram apresentadas às mães e elas deveriam indicar quais palavras a criança compreendia (vocabulário receptivo) e quais palavras a criança produzia (vocabulário expressivo). Aos 60 meses, o vocabulário receptivo e expressivo foi avaliado com cada criança.

O relato das mães para cada gêmeo não foi coletado no mesmo dia: houve um intervalo de duas semanas entre a coleta dos dados de um gêmeo e de outro. Isso foi feito no intuito de evitar imprecisões ou confusões nos relatos.

Para análise dos resultados, foram feitas correções estatísticas relativas ao sexo, peso ao nascer, duração da gestação, pontuação do Apgar ao nascer, dias de permanência no hospital após o nascimento e temperamento da criança.

 

Resultados

Os resultados referentes ao sono indicaram que as crianças entre 6 e 30 meses vão progressivamente aumentando o número de horas de sono noturno e reduzindo o número de horas de sono diurno, conforme mostra a tabela abaixo:

6 meses18 meses (1,5 ano)30 meses (2,5 anos)
n = 977n = 881n = 797
Duração do sono noturno8h, em média10h, em média10h, em média
Duração do sono diurno2,5 horas, em média2,5 horas, em média2h, em média
Consolidação do ciclo vigília-sono (= razão sono diurno/noturno)0,320,260,23

Aos 6 meses, 64% da variabilidade do sono das crianças podia ser explicada apenas por fatores genéticos e 36% apenas por fatores ambientais. Ou seja, aos 6 meses, a maior parte do sono das crianças segue as tendências hereditárias que elas apresentam, sendo que gêmeos idênticos apresentam sono muito mais parecido do que gêmeos fraternos. Entretanto, aos 18 meses, apenas os fatores genéticos já não explicam mais o sono das crianças: nesta idade, 58% da variabilidade do sono é explicada por fatores genéticos e ambientais somados e 42% apenas por fatores ambientais. Portanto, na idade de 18 meses (1 ano e meio), os fatores ambientes (ou seja, as rotinas domésticas) interferem muito mais no sono das crianças do que as tendências genéticas. Conforme os autores ressaltaram, muitas vezes é próximo da idade de 1 ano e meio que as crianças começam “a dar trabalho” para dormir, principalmente quando as rotinas domésticas não são favoráveis ao descanso noturno.

Um resultado bem interessante foi que os gêmeos que dividiam a mesma cama dormiam, em média, 1h a menos do que aqueles que dormiam sozinhos. Este resultado indica que compartilhar a cama (seja com irmãos ou com os pais) tende a reduzir o número de horas de sono. Esta é, muitas vezes, uma orientação importante na prática clínica quando é necessário aumentar o número de horas de sono noturno das crianças.

Em relação à interação entre sono e linguagem, os resultados indicaram correlações modestas, mas significativas:

  • Quanto mais consolidado estava o ciclo vigília-sono aos 6 meses (ou seja, quanto maior foi o número de horas de sono noturno e menor o número de horas de sono diurno), maior foi o vocabulário aos 18, aos 30 e aos 60 meses. A consolidação do ciclo vigília-sono aos 6 meses foi responsável por 15% do vocabulário aos 18, 30 e 60 meses. A modelagem estatística indicou que a interferência do sono aos 6 meses no vocabulário aos 18 e 30 meses pode ser inteiramente explicada por fatores genéticos.
  • Quanto mais consolidado estava o ciclo vigília-sono aos 18 meses, maior foi o vocabulário aos 30 e aos 60 meses. A consolidação do ciclo vigília-sono aos 18 meses também foi responsável por 15% das pontuações de vocabulário aos 30 e aos 60 meses. A modelagem estatística indicou que a interferência do sono aos 18 meses no vocabulário aos 60 meses é explicada pela interação entre fatores genéticos e ambientais.
  • Não houve correlação entre a consolidação do ciclo vigília-sono aos 30 meses e as pontuações de vocabulário aos 60 meses.

Assim, os resultados mostraram que o bom sono aos 6 meses e 1 ano e meio afeta o vocabulário das crianças até os 5 anos! Mas o sono não afeta imediatamente o vocabulário da criança, ou seja, o bom sono com 1 ano e meio não melhora o vocabulário da criança já na idade de 1 ano e meio, mas somente aos 2,5 anos e aos 5 anos. Ou seja, para se colher os frutos do bom sono no vocabulário da criança, rotinas favoráveis de sono devem ser prática constante. Os autores do estudo interpretaram que o intervalo entre a consolidação do ciclo vigília-sono e o aumento do vocabulário da criança é indicativo de um efeito causal do sono na aprendizagem de linguagem pela criança.

De acordo com as pontuações nos testes de vocabulário, as crianças foram classificadas em três grupos: aquelas sem atrasos em qualquer idade, aquelas com atrasos passageiros (ou seja, baixas pontuações aos 18 ou 30 meses, mas não aos 60 meses) e aquelas com atrasos persistentes (ou seja, baixas pontuações aos 18, 30 e 60 meses). Os resultados indicaram que crianças com atrasos persistentes de vocabulário aos 5 anos apresentaram menor consolidação do ciclo vigília-sono com 1 ano e meio e com 2 anos e meio quando comparadas às crianças sem atraso ou com atraso passageiro. Os autores concluíram que auxiliar na consolidação do ciclo vigília-sono (ou seja, auxiliar a criança a dormir mais à noite e menos durante o dia) é um fator de proteção para evitar atrasos no aumento do vocabulário. Assim, a menor consolidação do ciclo vigília-sono é um fator de risco para atrasos persistentes de vocabulário em idade pré-escolar.

A zigosidade dos gêmeos afetou as pontuações de linguagem apenas na idade de 1 ano e meio, mas não aos 2 anos e meio ou aos 5 anos. Ou seja, o vocabulário da criança expressa bastante as tendências genéticas na idade de 1 ano e meio, mas não mais tarde, quando a estimulação do ambiente tem maior influência.

 

Como o ciclo vigília-sono afeta a aquisição da linguagem na primeira infância?

Os autores do estudo discutiram mecanismos biológicos e/ou ambientais que poderiam explicar a relação entre a consolidação do ciclo vigília-sono e a aquisição do vocabulário na primeira infância. Por exemplo:

  1. As predisposições genéticas interferiram na consolidação do ciclo vigília-sono na idade de 6 meses, mas já se mostraram bem menos importantes na idade de 1 ano e meio em diante. Mesmo assim, o ciclo vigília-sono menos consolidado aos 6 meses de idade ajuda a explicar a aquisição mais lenta do vocabulário até os 5 anos.
  2. Rotinas diárias que propiciem má higiene do sono podem retardar a consolidação do ciclo vigília-sono e a aquisição de vocabulário na primeira infância. Este mecanismo é válido principalmente a partir de 1 ano e meio.
  3. Pais fadigados pela menor consolidação do ciclo vigília-sono do filho também poderiam oferecer menor estimulação de linguagem à criança, retardando a aquisição do vocabulário. Este mecanismo é válido a partir de 1 ano e meio.
  4. Danos perinatais que afetem o neurodesenvolvimento poderiam retardar a consolidação do ciclo vigília-sono e a aquisição de vocabulário na primeira infância. Entretanto, esta hipótese não foi explorada no estudo de Dionne & colaboradores [1].

 

Por que o ciclo vigília-sono afeta a aquisição da linguagem na primeira infância?

Conforme mostraram os resultados do estudo [1], cerca de 15% da aquisição do vocabulário na primeira infância depende da consolidação do ciclo vigília-sono. Duas hipóteses foram cogitadas pelos autores para explicar esta relação causal:

  • A menor consolidação do ciclo vigília-sono pode interferir na consolidação da memória declarativa, necessária à aquisição do vocabulário.
  • O sono, sendo uma função neurológica mais básica, pode ter efeito organizador em funções neurológicas superiores (como a linguagem e a cognição).

 

Portanto, o estudo epidemiológico de Dionne & colaboradores [1] indicou que a boa consolidação do ciclo vigília-sono desde a tenra idade de 6 meses pode aumentar em cerca de 15% o vocabulário que uma criança vai apresentar aos 5 anos de idade. Embora aos 6 meses o ciclo vigília-sono seja basicamente influenciado pelas predisposições genéticas que a criança apresenta, a partir de 1 ano e meio, as práticas domésticas (influências ambientais) começam a ter maior peso. Os resultados do estudo também indicaram que crianças que apresentam retardos persistentes de vocabulário apresentam ciclo vigília-sono menos consolidado desde os 6 meses de vida. Sendo assim, a intervenção clínica para melhor consolidar o ciclo vigília-sono é uma estratégia válida para melhorar o vocabulário das crianças na primeira infância.

 

Referência

[1] Dionne, G.; Touchette, E.; Forget-Dubois, N.; Petit, D.; Tremblay, R. E.; Montplaisir, J. Y. & Boivin, M. (2011). Associations between sleep-wake consolidation and language development in early childhood: A longitudinal twin study. Sleep, 34, 987-995. [Artigo de acesso aberto].

[2] Nicolosi, L.; Harryman, E. & Kresheck, J. (1996). Sequências do desenvolvimento do comportamento da linguagem: panorama. In: Vocabulário dos Distúrbios da Comunicação: fala, linguagem e audição (337-340). 3ª edição. Porto Alegre: Artes Médicas.