Neste texto, vamos discutir sobre o uso da eletroterapia nos distúrbios de voz.
Considerações históricas sobre eletroterapia e disfonias
A fonoaudióloga Marina Gilman e o médico Sander Gilman publicaram um artigo sobre o uso da eletroterapia no tratamento das disfonias. As informações desta seção foram retiradas desse artigo.
No século XIX, o médico inglês Morell MacKenzie foi quem mais utilizou a eletroterapia no tratamento das disfonias. Em 1859, MacKenzie conheceu o laringoscópio, o qual havia sido inventado cinco anos antes. Com o laringoscópio, MacKenzie passou a fazer diagnósticos mais precisos das afecções laríngeas. Por exemplo, ele diagnosticava “paralisia dos músculos adutores” quando visualizava pregas vocais muito alongadas e que não apresentavam fechamento durante a fonação.
MacKenzie foi o laringologista mais famoso da Europa em sua época. Ele recebeu um prêmio pelo tratado “Patologia e tratamento dos distúrbios da laringe”, que foi o primeiro livro do mundo a apresentar ilustrações laríngeas. Ele também ajudou a fundar um hospital especializado no tratamento de “problemas de garganta”. Em 1863, ele começou a aplicar eletroterapia para tratar disfonias.
O próprio MacKenzie desenvolveu os eletrodos para eletroterapia laríngea. Ele posicionava um eletrodo na região anterior do pescoço, sobre a pele. O outro eletrodo era inserido na laringe, na região da glote. Ele utilizava corrente alternada e não contínua no tratamento. Ele utilizava descargas elétricas breves, as quais eram aplicadas três vezes por sessão. Os pacientes necessitavam de diversas semanas de tratamento para recuperação total. Em 1868, ele havia tratado 200 casos de disfonia com eletroterapia e alegava sucesso em 196 casos.
Em 1869, MacKenzie apresentou seus resultados para colegas médicos. Uma de suas maiores preocupações era o posicionamento dos eletrodos: quais seriam as regiões em que os eletrodos deveriam ser posicionados para se obterem os melhores resultados? Ele considerava que a introdução de um dos eletrodos na laringe era essencial para se obter bons resultados.
A eletroterapia como tratamento das disfonias também foi utilizada nos Estados Unidos a partir de 1870. O médico americano William King, ao contrário de MacKenzie, considerava que não era necessário introduzir um eletrodo na laringe para tratar paralisia de prega vocal. Ele posicionava os dois eletrodos na região do pescoço, próximos à traqueia, e referia bons resultados no tratamento. King entendia que a eletroterapia fortalecia os músculos laríngeos e que era isso que devolvia a voz aos pacientes.
Tendo em vista que os distúrbios vocais respondiam favoravelmente à eletroterapia, os laringologistas do século XIX entenderam que, então, os distúrbios vocais eram causados por mau funcionamento dos músculos e dos nervos periféricos (nesta época, já se sabia que nervos e músculos conduziam eletricidade). Assim, a eletroterapia tornou-se o tratamento padrão para todo e qualquer distúrbio de voz.
Na verdade, a eletroterapia foi aplicada quase que indiscriminadamente para a grande maioria das doenças (diabetes, reumatismo, paralisias, distúrbios mentais, etc.), porque se entendia que o corpo era uma fonte natural de eletricidade. Esta compreensão deveu-se às descobertas relativas à eletricidade e, particularmente, à eletricidade no corpo humano ocorridas no século XVIII (para breves considerações históricas, veja o primeiro texto desta série).
No final do século XIX, os hospitais europeus possuíam departamentos inteiros dedicados à eletroterapia. Havia livros especificamente dedicados ao tratamento eletroterápico das doenças. Entretanto, por mais que a eletroterapia fosse o método padrão de tratamento das doenças, não se compreendia por que ela era efetiva, ou seja, quais eram os efeitos diretos e indiretos no corpo humano (para os efeitos relativos às fibras nervosas e musculares, veja o segundo e o terceiro textos desta série, respectivamente).
Entretanto, a efetividade da eletroterapia não era tão alta como se costumava dizer. Prova disso é que, pouco a pouco, a partir de 1890, os médicos foram abandonando a eletroterapia e buscando outros métodos terapêuticos. Um desses dissidentes foi Sigmund Freud, que utilizou eletroterapia para tratar doenças neurológicas até 1897. Aproximadamente em 1915, a eletroterapia estava esquecida e seus aparelhos já eram exibidos em museus.
A partir de então, a eletroterapia permaneceu em desuso por 50 anos. Na década de 1960, o interesse pela eletroterapia ressurgiu aliada a novas descobertas sobre a fisiologia (principalmente muscular) e a novos avanços tecnológicos (como os transistores). É assim que a eletroterapia passa a ser largamente utilizada para fortalecimento muscular na fisioterapia e na educação física. É também desta época a invenção do primeiro marca-passo cardíaco, atualmente considerado o método eletroterápico mais conhecido.
Especificamente em relação às disfonias, os médicos David Zealear e Herbert Dedo implantaram eletrodos para tratar paralisia de prega vocal em 1977. Nesta época, já havia maior conhecimento sobre anatomia e fisiologia laríngea, bem como enormes avanços tecnológicos em comparação à época de MacKenzie. Um dos problemas associados à implantação cirúrgica de eletrodos para tratar paralisia das pregas vocais são as sincinesias, ou seja, a ocorrência de movimentos involuntários que interferem com os movimentos voluntários. Em 1990, a eletroterapia não invasiva começou a ser utilizada para tratar paralisia de pregas vocais e disfonia espasmódica.
Eletroterapia e disfonia no Brasil
No Brasil, o fonoaudiólogo Bruno Guimarães é pioneiro no uso da eletroterapia não invasiva para tratamento das disfonias. Há mais de dez anos, ele publicou um estudo pioneiro sobre o uso de corrente elétrica no relaxamento laríngeo (veja artigo na íntegra aqui).
Setenta pacientes participaram do estudo, entre homens e mulheres, todos adultos.
No estudo, foi utilizada eletroterapia de baixa frequência, a qual produzia contração muscular. Foram posicionados dois eletrodos na pele, na região correspondente às laterais da laringe. Tendo em vista a proximidade dos eletrodos ao seio carotídeo, foi realizada medição da pressão arterial antes e depois da eletroterapia.
Os pacientes foram divididos em três grupos: aqueles que fizeram apenas exercícios fonoaudiológicos convencionais, aqueles que fizeram apenas eletroterapia e aqueles que fizeram exercícios associados à eletroterapia.
Os pacientes que fizeram exercícios e eletroterapia apresentaram modificações em diversos parâmetros vocais: aumento da frequência fundamental, diminuição do desvio-padrão da frequência fundamental, diminuição de jitter, diminuição de shimmer e aumento da relação sinal-ruído. Ou seja, a associação dos exercícios fonoaudiológicos convencionais com a eletroterapia melhorou a estabilidade vocal.
Os pacientes que fizeram exercícios e eletroterapia referiram que a sensação de relaxamento laríngeo se prolongou por nove horas após o término da sessão. Os pacientes que fizeram apenas eletroterapia referiram que a sensação de relaxamento se manteve por seis horas após a sessão. Os pacientes que fizeram apenas os exercícios convencionais referiam manutenção do relaxamento por quatro horas.
Mesmo com a aplicação de corrente elétrica próxima ao seio carotídeo, nenhum paciente experimentou mudanças significativas de pressão arterial.
Mais recentemente, o fisioterapeuta Rinaldo Guirro e colaboradores também publicaram um artigo sobre eletroterapia não invasiva no tratamento de disfonia por tensão muscular (veja artigo na íntegra aqui).
As pacientes foram dez mulheres, entre 18 e 50 anos, com diagnóstico de nódulo de pregas vocais ou espessamento mucoso.
Foi utilizada eletroterapia de baixa frequência, a qual produzia contração muscular. Foram feitas dez sessões de eletroterapia, aplicada por 30 minutos, duas ou três vezes por semana. Foram posicionados quatro eletrodos nos músculos esternocleidomastoideo e trapézio bilateramente. O único tratamento empregado foi a eletroterapia; não houve nenhuma orientação quanto à higiene vocal ou prática de exercícios vocais.
O grau de contração muscular foi avaliado com eletromiografia de superfície antes e depois de cada sessão de eletroterapia. Para a eletromiografia, os eletrodos foram posicionados nos músculos supra-hióideos, esternocleidomastoideo e trapézio. A medição foi realizada em três situações: em silêncio, durante a produção da vogal [e] e durante a produção de fala.
Os resultados indicaram que houve redução estatística da tensão muscular para todos os músculos e situações avaliados antes e depois da aplicação da eletroterapia (exceto para o esternocleidomastoideo direito na produção da vogal [e] e para os músculos supra-hióideos na situação de fala).
A análise de oitiva da fala espontânea indicou redução da disfonia, da rouquidão, da soprosidade e da tensão vocal pós-eletroterapia.
Esses são dois estudos brasileiros que indicam que o uso da eletroterapia não invasiva pode auxiliar no tratamento dos distúrbios da voz. A eletroterapia agiria tanto na fisiologia muscular, quanto no sinal acústico.