Começa aqui uma série específica sobre a língua humana.
Na minha experiência como fonoaudióloga, este é o órgão mais diretamente relacionado à fala pelos pacientes. Penso que este raciocínio também se aplica para a população em geral. Antes de as pessoas pensarem que a fala é resultado de ações conjuntas de diversos órgãos e sistemas, elas atribuem à língua a habilidade de fala.
De fato, a língua é o órgão mais claramente envolvido com a produção da fala. Qualquer pessoa se dá conta de que, para falar, é necessário abrir a boca e movimentar a língua. A participação de outros órgãos é muito menos evidente para a maioria das pessoas.
A própria língua portuguesa induz que a ênfase recaia sobre o órgão língua. Em português, existe polissemia da palavra “língua”. O significante “língua”, dependendo do contexto, pode adquirir o significado de órgão muscular e também de fala, linguagem, idioma. O significante para os dois significados provêm da mesma origem, a palavra latina “lingua”.
O mesmo ocorre em outras línguas românicas, como o espanhol (“lengua”), o italiano (“lingua”) e o francês (“langue”): o mesmo significante pode adquirir os dois significados, a depender do contexto.
Em inglês, o mais comum é utilizar a palavra “tongue” para se referir ao órgão muscular e as palavras “language” para se referir a idioma e “speech” para se referir à fala. Entretanto, em certos contextos, “tongue” também é utilizada como significando idioma ou fala.
Assim, a polissemia do respectivo significante “língua” parece ser um recurso frequentemente empregado pelas línguas naturais. Penso que a polissemia de “língua” tanto simboliza a relação entre o órgão língua e a produção da fala, quanto reforça essa relação para os falantes.
Funções da língua
A língua, enquanto órgão, participa de diversas funções orgânicas.
A respiração é uma delas. A musculatura extrínseca deve posicionar a língua adequadamente na cavidade oral. Se a língua for posicionada posteriormente, ela vai ocluir parcial ou totalmente a cavidade faríngea. A obstrução da faringe pela língua é um dos fatores que ocasiona apneia obstrutiva do sono [1].
A gustação é outra função em que a língua participa. O principal propósito da gustação é distinguir alimentos adequados de inadequados em relação ao estado de conservação e em relação a preferências pessoais [2].
A deglutição é outra função em que a língua participa. A contração dos músculos intrínsecos e extrínsecos da língua deve ser suficiente para impulsionar o bolo alimentar em direção à faringe e ao esôfago. Alterações na movimentação da língua, seja de origem muscular ou de origem neurológica, podem ocasionar disfagia [1].
A fala, claro, é outra função. Cada consoante e cada vogal exige um formato e uma posição diferentes da língua no interior da cavidade oral. Em português brasileiro, a duração média de um fone é de 100 ms na taxa habitual de elocução [3]. Isso significa que, durante a fala, a língua está em constante movimento na cavidade oral e deve ter agilidade e precisão suficientes para tal. Alterações na movimentação da língua durante a fala podem causar ou se relacionar com uma gama muito variada de distúrbios [1]: imprecisão articulatória, ceceios, gagueira, disartrias.
A sexualidade também é outra função em que a língua participa. Das diversas manifestações orais da sexualidade, destacam-se os contatos puramente orais (como o beijo) e os contatos orogenitais. A impossibilidade de usufruir da sexualidade oral está relacionada a distúrbios da esfera sexual.
Conhecimento científico sobre a língua
Fica evidente que a língua humana é de importância crucial para a nossa espécie. Entretanto, existe uma discrepância entre a importância que a língua apresenta e a compreensão sobre sua estrutura e função [1]. Como há poucos estudos que analisam a atividade dos músculos intrínsecos da língua, a ação desses músculos são suposições baseadas no arranjo anatômico de cada músculo e em extrapolações de experimentos com outros animais (pássaros, anfíbios, répteis e mamíferos) [1].
Os próximos textos da série vão abordar aspectos anatômicos, histológicos, fisiológicos e neurológicos da língua. Vamos comparar informações disponibilizadas em livros e também em artigos mais recentes da área.
Referências
[1] Sanders, I. & Mu, L. (2013). A three-dimensional atlas of human tongue muscles. The Anatomical Record, 296 (10), 1102-14.
[2] Guyton, A. C. & Hall, J. E. (1996). The chemical senses – taste and smell. In: Textbook of medical physiology (pp. 675-682). 9th ed. Philadelphia: W. B. Saunders Co.
[3] Barbosa, P. A. (2006). Do acoplamento entre prosódia e segmentos. In: Incursões em torno do ritmo da fala (pp. 291-352). Campinas: Pontes.