Este último texto da série aborda a evolução do órgão língua no reino animal. Nós estamos habituados à estrutura e às funções da nossa língua, que é utilizada para alimentação, fala e atos afetivo-sexuais. Entretanto, outros animais podem apresentar estruturas e funções distintas para a língua.
O conteúdo a seguir versa sobre três pontos principais (que, a meu ver, são instigantes para fonoaudiólogos):
- Nem todos os animais possuem língua.
- Nem toda língua é intraoral.
- Nem toda língua é utilizada para alimentação.
A emergência do órgão “língua” em animais vertebrados
Vamos começar pela superclasse dos peixes por um simples fato: eles não possuem língua. A superclasse dos peixes é dividida em ágnatos, peixes ósseos e peixes cartilaginosos.
Os ágnatos são um grupo de animais vertebrados que não possuem mandíbula [1]. O próprio nome do grupo ilustra isso: o prefixo “a-” significa não e o radical “gnáthos” significa mandíbula (do grego). Os ágnatos são considerados os vertebrados mais primitivos. Os únicos animais desta classe existentes atualmente são as feiticeiras e as lampreias [1]. As feiticeiras vivem em águas profundas e são necrófagas (ou seja, alimentam-se de animais mortos). As lampreias vivem em oceanos e grandes lagos e são parasitas externas de peixes. As lampreias possuem um órgão similar à língua em sua cavidade oral: é um órgão em formato cilíndrico com dentes anexos (bem diferente do que ocorre em animais com mandíbula, nos quais os dentes se localizam na maxila e/ou na mandíbula e não sobre a língua). O órgão em forma de cilindro das lampreias apresenta mobilidade e serve para posicionar os dentes sobre o tecido do peixe hospedeiro, mas esse órgão não é considerado uma língua verdadeira, porque evoluiu de forma independente da língua de anfíbios, répteis, aves e mamíferos. No vídeo abaixo, são exibidas diversas lampreias, inclusive podendo-se visualizar sua cavidade oral.
Ainda na superclasse dos peixes, estão os peixes ósseos e os cartilaginosos, os quais também não possuem uma língua verdadeira [2]. Esses peixes possuem mandíbula, fazendo parte dos animais gnatostomados, como indica o nome: o radical “gnáthos” significa mandíbula e o radical “stoma” significa boca (do grego). A presença de uma mandíbula movimentada por músculos representa uma vantagem evolutiva, porque possibilita a preensão mais firme de alimentos [1]. Peixes ósseos e cartilaginosos possuem uma elevação no assoalho da boca, mas que não apresenta movimento. Essa elevação não é considerada uma língua verdadeira, porque a definição de língua é ser um órgão muscular com mobilidade voluntária [2]. Como os peixes não têm língua, onde estão as papilas gustativas? Na espécie humana e em muitas outras, as papilas gustativas se localizam justamente no epitélio lingual. No caso dos peixes, as papilas gustativas se localizam no epitélio de toda a cavidade oral [2].
Então, quando o tubarão abre a boca, é uma boca sem língua. Há muitas fotos na internet exibindo a abertura bucal de tubarões e não há nenhuma língua para ser vista (aqui e aqui, por exemplo). Exceto quando é feita uma ilustração e o desenhista antropomorfiza o personagem (aqui, por exemplo).
Portanto, a língua não está presente nos peixes, que são vertebrados exclusivamente aquáticos. A língua passa a ser um órgão universal apenas para vertebrados que não vivem em ambientes exclusivamente aquáticos. Uma hipótese é que a língua tenha surgido com os vertebrados tetrápodes: o radical “tetra” significa quatro e o radical “podos” significa pés (do grego) [2]. Os tetrápodes compreendem anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Assim, a língua parece ter evoluído com o movimento dos vertebrados do meio aquático para o terrestre e sua principal função é facilitar a alimentação em ambiente terrestre [2].
A transição de animais de vida exclusivamente aquática para animais de vida exclusivamente terrestre ocorreu ao longo de 400 milhões de anos [3]. A vida necessita de água em abundância: todos os animais apresentam grandes quantidades de água em sua composição e todas as atividades celulares ocorrem em meio aquoso [3]. Foram necessárias adaptações em quase todos os órgãos dos animais para que a transição de habitat pudesse ocorrer. Essas mudanças incluem a transformação do tegumento (para evitar a perda de água pela pele), a transformação do sistema respiratório de brânquias para pulmões (para ser possível extrair oxigênio do ar), a transformação do sistema esquelético (para ser possível sustentar o corpo contra a força da gravidade) e adaptações para a regulação da temperatura corpórea (porque a temperatura do ar varia mais do que a da água) [3]. Os anfíbios são os vertebrados que mais claramente demonstram essas adaptações, porque, no início do seu ciclo de vida, são exclusivamente aquáticos e somente depois de sua metamorfose podem viver em meio terrestre [3]. O ambiente terrestre, portanto, é considerado mais inóspito do que o aquático [3].
No reino animal, conseguir alimento e conseguir se alimentar são os principais quesitos para a sobrevivência [4]. Para conseguir se alimentar, os animais lançam mão de uma gama variada de estratégias: sugar, morder, rasgar, raspar, filtrar, mastigar, pastar, engolir, absorver [4]. Neste sentido, o órgão língua é um ganho evolutivo dos vertebrados terrestres [2, 4]. Possuir uma língua facilita a ingestão do alimento, contribuindo para a obtenção de energia. Como a obtenção de energia é um fator crucial para a sobrevivência do animal, uma adaptação que se mostre vantajosa para a alimentação será assimilada pela seleção natural [4]. É neste contexto que o órgão língua se mostrou uma adaptação vantajosa para a ingestão de alimentos em meio terrestre e foi assimilado.
Funções da língua em vertebrados
Ingestão do alimento
A ingestão do alimento é apenas o passo inicial da nutrição [4]. Após a ingestão do alimento, ele é digerido, ou seja, reduzido a compostos mais simples, capazes de serem absorvidos e transportados para tecidos do corpo. Esses compostos podem ser assimilados pelas células que compõem os tecidos ou podem ser oxidados para a produção de energia. Os compostos que não forem utilizados podem ser armazenados para utilização futura. Os resíduos provenientes das reações oxidativas são excretados, enquanto os compostos que não puderam ser digeridos ou absorvidos são evacuados. Assim, a nutrição é uma longa função, formada por múltiplos passos: ingestão, digestão, absorção, transporte, assimilação, oxidação, armazenamento, excreção e evacuação [4]. Se o primeiro passo, o da ingestão, não for executado de forma satisfatória, todos os passos subsequentes estarão comprometidos. É justamente por auxiliar na ingestão dos alimentos, que a língua é um órgão vantajoso para os animais tetrápodes.
A língua pode auxiliar na ingestão de alimentos de quatro formas distintas.
1. Captura do alimento
A língua pode ser utilizada para a captura do alimento em si. São as chamadas “línguas extraorais”, que apresentam comprimento muito maior do que a largura e, por isso, são capazes de grande protrusão para fora da cavidade oral [5].
É o caso do pangolim, um mamífero típico da Ásia e da África. É o único mamífero coberto por escamas. Um pangolim adulto pode medir cerca de 1,5 m e sua língua, cerca de 75 cm. Proporcionalmente ao corpo, não há animal que apresente língua mais longa. O pangolim se alimenta de formigas e cupins e é justamente para isso que ele utiliza sua grande língua: para inseri-la nos ninhos e capturar os insetos. Como o pangolim não possui dentes, os alimentos são engolidos sem processamento. Outro mamífero que também possui língua extraoral e a utiliza para captura do alimento é o tamanduá [4]. Abaixo um documentário sobre o pangolim.
Os lagartos também são animais que utilizam a língua para captura de alimentos. Os lagartos fazem parte da classe dos répteis, a qual também inclui serpentes, tuataras, crocodilos e tartarugas [6]. Os camaleões são um grupo de lagartos arborícolas e vivem principalmente na África e em Madagascar [6]. Como todos os répteis, os camaleões são ectotérmicos, ou seja, a temperatura do corpo é determinada pela temperatura do ambiente externo. Como todos os animais ectotérmicos, os lagartos são bem adaptados a regiões de clima quente [6]. Entretanto, para sobreviver em regiões quentes, os lagartos precisam de adaptações como, por exemplo, a presença de lipídeos na pele a fim de criar uma barreira para minimizar a perda de água corporal [6]. Dentre as características mais marcantes dos camaleões estão a capacidade de se camuflar ao ambiente, a visão binocular e o controle da língua. A captura da presa é realizada com uma sequência prototípica de ações: aproximação lenta em direção à presa, utilização das patas posteriores e da cauda para se fixar adequadamente a um galho da árvore, projeção do corpo para frente e, finalmente, o lançamento da língua em direção à presa [6]. A língua do camaleão é capaz de movimento rápido e preciso e sua ponta é dotada de uma substância pegajosa [6]. Ele se alimenta basicamente de insetos, o que é condizente com sua característica ectotérmica, uma vez que a ectotermia requer menos energia do que a endotermia [6]. Abaixo uma matéria sobre a língua do camaleão.
Anfíbios (como sapos e rãs) também possuem língua extraoral e a utilizam para a captura dos alimentos [3, 4]. A mobilidade da língua dos sapos é oposta à língua humana: a parte anterior da língua é fixa na região anterior da boca, enquanto a parte posterior é livre [3]. Assim, para capturar a presa, é a parte posterior da língua do sapo que é projetada para fora. A extremidade livre da língua apresenta muitas glândulas, que produzem uma substância pegajosa, capaz de capturar a presa [3]. Algumas espécies de sapos apresentam dentes, mas eles não têm função de mastigação, servindo para evitar que a presa escape [3].
As aves também podem utilizar a língua para a captura do alimento, porém, de duas maneiras diferentes. Uma delas é a forma utilizada pelo pica-pau (imagem aqui) e similar à forma como o pangolin, o tamanduá, os lagartos e os sapos utilizam a língua. O pica-pau se ancora em árvores principalmente com os membros inferiores, mas a cauda também oferece suporte [7]. O bico do pica-pau é retilíneo e muito resistente, sendo capaz de resistir aos golpes fortes e rápidos contra o tronco das árvores [7]. Esses golpes podem ter duas funções: preparar cavidades que servirão de ninho e procurar insetos para alimentação [7]. O crânio do pica-pau é especialmente adaptado para resistir aos constantes impactos dos golpes, sem que ocorra trauma cranioencefálico [7]. Após se fixar à arvore e conseguir encontrar alimento, o pica-pau usa sua língua para retirar insetos do interior da árvore [7]. A língua do pica-pau é bem mais longa do que seu bico (imagem aqui). Durante o repouso, indivíduos humanos mantém a língua posicionada no interior da cavidade oral, com a ponta da língua tocando a papila palatina. Com o pica-pau, é bem diferente. O pica-pau mantém somente a parte anterior da sua língua dentro da cavidade oral. A parte posterior da língua é posicionada no interior da cabeça, repousando em cavidades entre os olhos ou em torno dos olhos (esquema aqui).
A outra forma de captura de alimento pelas aves é a utilizada por patos, gansos e cisnes. Nem todas as aves possuem uma língua bem desenvolvida (como o avestruz), indicando que ela não é utilizada para a ingestão de alimentos [8]. Aves que vivem tanto em meio aquático quanto terrestre (como gansos, patos e cisnes) utilizam o bico para cortar alimentos, para a preensão de alimentos sólidos e para filtrar alimentos da água [4, 8]. A língua humana apresenta diversas similaridades com a língua dos gansos, por exemplo. A língua dos gansos apresenta geometria cilíndrica, sendo o comprimento maior do que a largura, apresenta três regiões bem delimitadas (ápice, corpo e raiz), além de ser fixada no assoalho do bico por um frênulo lingual [8]. A maior diferença da língua humana para a língua dos gansos é a presença da “unha lingual” (tradução livre de “lingual nail”) na face anterior do órgão [8]. A Fig. 2 deste artigo ilustra bem essa região da língua de gansos. A unha lingual é uma região intensamente queratinizada que contorna o ápice da língua de aves como gansos, papagaios, galinhas e águias [8]. A unha lingual tem função semelhante a de uma colher: ela serve para coletar grãos e levá-los para o interior da cavidade oral [8]. Como as aves não possuem dentes [4], o alimento é deglutido inteiro ou, no máximo, tendo sido rasgado pelo bico. Devido à ausência de mastigação, as aves possuem um estômago revestido por placas queratinizadas (moela), que funcionam como um triturador de alimentos [7].
Portanto, para muitos animais, a língua é essencial para a captura do alimento. Nos primatas, a função de captura do alimento não é desempenhada pela língua, mas pelas mãos e, no caso de seres humanos, esta função ainda é complementada pelo uso de talheres [2].
2. Gustação
Outra função da língua é o sentido da gustação.
A gustação e o olfato são classificados como sentidos químicos, ou seja, sentidos ativados pela presença de determinadas substâncias químicas (em oposição aos sentidos ativados pela presença de fatores mecânicos, luminosos ou térmicos) [9]. Gustação e olfato são os sentidos mais antigos e mais universais no reino animal [9].
Nos animais vertebrados, os receptores da gustação sempre estão localizados na cavidade oral [9]. Se o animal possuir uma língua, esses receptores estão localizados nela. Na ausência de uma língua, como é o caso dos peixes, os receptores gustativos estão distribuídas ao longo do epitélio bucal.
Os receptores da gustação são papilas especializadas, compostas por um aglomerado de células [9]. Quando uma determinada substância química, presente no alimento que está sendo ingerido, consegue interagir com sítios específicos das células receptoras, são disparados potenciais de ação, que são transmitidos ao encéfalo [9].
A gustação também depende do olfato, sendo que alimentos diferentes tendem a possuir odores diferentes [9]. Quando o odor atinge as células olfatórias localizadas na cavidade nasal, também ocorre o disparo de potenciais de ação, que são enviados ao encéfalo [9].
As sensações gustativas básicas são classificadas como doce, salgado, azedo, amargo [9]. A função mais importante da gustação é estimar a qualidade do alimento que está sendo ingerido: por exemplo, se a água apresenta condições satisfatórias de oxigenação e pode ser ingerida [9]. Alimentos que não são julgados como saborosos pelo animal geralmente são considerados perigosos e não são ingeridos.
3. Auxílio na mastigação
A língua também pode ser utilizada como auxílio na mastigação. A mastigação é definida como o ato de triturar alimentos com os dentes [4]. Logo, o primeiro requisito para mastigar é que o animal possua dentes. A língua auxilia neste processo.
Os peixes possuem dentes, mas não possuem língua. As aves possuem língua, mas não possuem dentes. Os anfíbios e os répteis possuem dentes e língua, mas não mastigam. Para peixes, anfíbios e répteis, os dentes não servem para a mastigação, mas para agarrar a presa, que é engolida inteira [4].
No caso de animais que possuem dentes e os utilizam para mastigar (ou seja, somente os mamíferos [4]), a língua auxilia no transporte do alimento para dentro da cavidade oral e auxilia a manter o alimento sobre os dentes durante a trituração. Para maiores detalhes sobre os movimentos da língua durante a mastigação na espécie humana, ver o texto VI desta série.
4. Deglutição
Ainda, a língua pode ser utilizada na deglutição do alimento, mas isso não é obrigatório [4]. Os répteis, por exemplo, apesar de possuírem língua, não a utilizam para a deglutição. No caso de aves e mamíferos, após a captura e/ou mastigação do alimento, ele está pronto para continuar seu caminho no trato digestivo. O movimento de propulsão do bolo alimentar da boca para o esôfago é realizado pela língua. Para maiores detalhes sobre os movimentos da língua durante a deglutição na espécie humana, ver o texto VI desta série.
Olfato
A língua das serpentes e de muitos lagartos é utilizada para o olfato e não para alimentação [4].
O olfato é o principal sentido para muitos animais, sendo muito mais importante em ambiente terrestre do que no aquático [3]. O olfato pode auxiliar na alimentação, na marcação de território, nas reações ao perigo e na seleção de parceiros sexuais [9].
As serpentes são répteis com involução dos membros e das cinturas escapular e pélvica [6]. Para a captura das presas, as serpentes utilizam principalmente os sentidos do olfato, da percepção de temperatura e da vibração do solo [6]. A visão e a audição são sentidos pouco desenvolvidos nas serpentes [6]. As narinas das serpentes possuem áreas olfatórias, mas que também são pouco desenvolvidas [6]. O olfato das serpentes é realizado principalmente pela língua e pelos órgãos vomeronasais, que são reentrâncias com epitélio olfatório localizadas no assoalho bucal [6]. A língua das serpentes apresenta as típicas proporções das línguas extraorais, ou seja, comprimento muito superior à largura, além de apresentar ponta bífida [6]. As constantes protrusões da língua para fora da cavidade oral tem a função de sentir os odores do ambiente [6]. Para isso, as serpentes possuem um epitélio lingual especialmente adaptado para captar substâncias odoríferas [6]. Após a protrusão, a língua é retraída para a cavidade oral e posta em contato com os órgãos vomeronasais que, estimulados, enviam potenciais de ação ao encéfalo [6].
A utilização conjunta dos sentidos de olfato, percepção de temperatura e vibração do solo permite às serpentes localizar suas presas [6]. Quando uma presa é capturada, a deglutição é feita sem o auxílio da língua. A mandíbula das serpentes não é um osso único: são dois ossos (direito e esquerdo) unidos na região anterior por músculos [6]. Além disso, diversos ossos do crânio apresentam articulação frouxa [6]. Devido a essas características da mandíbula e de outros ossos do crânio, a cabeça das serpentes é capaz de uma grande expansão e, por isso, consegue ingerir presas de grande tamanho [6]. As serpentes possuem dentes não apenas na maxila e na mandíbula, mas também no palato; todos os dentes são curvados para trás [6]. Após a captura da presa, a deglutição é realizada com movimentos alternados entre os lados da boca: enquanto os dentes da maxila, mandíbula e palato de um dos lados da boca estão fixos na presa, os dentes do outro lado são movimentados para frente [6]. Vai ocorrendo alternância de movimentos e essa é a maneira como as serpentes deglutem suas presas, sem que a língua participe [6]. A glote das serpentes se localiza no assoalho bucal, posterior à união muscular dos dois ramos da mandíbula. Essa localização permite que as serpentes continuem respirando normalmente enquanto deglutem suas presas [6].
Limpeza do corpo
Em mamíferos, a língua também pode ser utilizada para a limpeza dos pelos. Isso é feito pelos felinos. A família dos felinos é composta por gatos domésticos, tigres, leões, pumas e linces [10].
Os pelos são exclusivos dos mamíferos e não há um único mamífero que não os possua (mesmo que não seja aparente, como no caso das baleias, que apresentam pelos apenas em seu focinho) [10]. A ubiquidade dos pelos nos mamíferos deve-se a um ancestral comum [10].
O pelo cresce continuamente a partir do folículo piloso, presente na derme. A célula do pelo é típica por possuir grandes quantidades de queratina. A queratina é uma proteína densa e fibrosa, presente em pelos, cabelos, unhas, garras, cascos e penas. Conforme novas células são produzidas pelo folículo, as células anteriores se afastam da sua fonte de nutrição e morrem. Os pelos que emergem da epiderme, portanto, são células mortas preenchidas por queratina [10].
A função mais importante dos pelos é o isolamento térmico, que auxilia na manutenção da temperatura corporal [10]. Mamíferos apresentam temperaturas internas elevadas e que devem ser mantidas constantes. Isso é necessário para poder sustentar o alto consumo energético do corpo [10]. Além do isolamento térmico, os pelos dos mamíferos também servem para camuflagem, para flutuar na água, como vibrissas sensoriais (no caso dos focinhos) ou como espinhos pontiagudos [10].
A superfície dorsal da língua dos felinos é recoberta por papilas com estrutura similar aos pelos (fotos aqui). Os felinos também apresentam papilas gustativas, mas as papilas semelhantes a pelos não tem função gustativa. Essas papilas, que funcionam como espinhos pontiagudos, tanto podem servir como auxílio na alimentação (raspando alimentos), quanto podem servir para limpeza dos pelos corpóreos do animal. Neste último caso, a coleção de papilas espinhosas sobre a superfície da língua age como um pente que retira partículas presas na pelagem (deve vir daí a expressão “banho de gato”). Neste processo, os felinos engolem parte de seus pelos, os quais podem ser regurgitados posteriormente.
Atividades sexuais
O uso da língua para atividades sexuais só ocorre em hominídeos. Os hominídeos atualmente existentes são os orangotangos, gorilas, chimpanzés, bonobos e seres humanos. Chimpanzés e bonobos são as espécies mais próximas aos seres humanos, embora exibam comportamentos muito diferentes entre si: os chimpanzés podem ser descritos como agressivos, com sede de poder e vivem em grupos liderados por machos, enquanto os bonobos podem ser descritos como pacíficos, eróticos e vivem em grupos liderados por fêmeas [11].
Especificamente em relação às atividades sexuais, o comportamento de bonobos e de seres humanos apresenta várias semelhanças [12]. A língua é utilizada para contatos puramente orais (o beijo com língua) e para contatos orogenitais (o sexo oral). Além dos seres humanos, pelos menos os bonobos também praticam beijo com língua e sexo oral [12]. Acredita-se que o beijo de língua evoluiu a partir da alimentação: mães primatas podem mastigar alimento e passá-lo ao filhote por meio da língua [12]. Bonobos e seres humanos podem praticar beijo de língua e sexo oral com parcerias homo ou heterossexuais e com parceiros de idades semelhantes ou diferentes.
O uso da língua para atividades sexuais de bonobos e seres humanos podem ter as funções de proporcionar prazer, de apaziguar tensões e de expressar afeto [12].
Fala
O uso da língua para fala só ocorre em seres humanos. Mas antes de falar em seres humanos, um pouco de aves e de grandes primatas, tendo em vista que eles vocalizam. Não há evidências de que a língua seja utilizada para modulação da vocalização das aves e dos grandes primatas.
A presença de penas é uma característica diagnóstica para as aves atuais: se um animal existente atualmente tem penas, ele com certeza é uma ave [7]. Além disso, os membros anteriores das aves sempre são transformados em asas, embora nem sempre as asas sejam capazes de voo [7]. Todas as aves possuem membros inferiores capazes de realizar os atos de andar, nadar e pousar em galhos [7]. Todas as aves possuem bico queratinizado e língua, mas não possuem dentes [7].
As aves também são descritas como os animais mais melodiosos atualmente existentes [7]. As vocalizações das aves são classificadas de duas formas. Existe o canto, caracterizado por serem sons longos e melodiosos. O canto geralmente é emitido pelos machos com o intuito de atrair fêmeas para acasalar. Também existe o chamado, caracterizado por sons curtos e repetitivos. O chamado é emitido por machos e fêmeas e tem a função de comunicação entre os membros da espécie. O site do Museu Escola do Instituto de Biociências da UNESP disponibiliza diversos cantos de aves para apreciação (aqui). Não encontrei referências que indicassem que a língua das aves é importante para modular os sons produzidos pela siringe.
Entretanto, o papagaio é conhecido como uma ave capaz de “falar”. Para a produção de fala tal qual a concebemos, é necessária a produção de voz (ou seja, de um som periódico que apresente frequência fundamental e harmônicos), a qual é modulada pela função de filtro do trato supraglótico. É na função de filtro que a língua é importante: diferentes posicionamentos da língua no interior da cavidade oral geram tubos de tamanhos diferentes, os quais ressoam frequências diferentes [13]. Um papagaio não produz fala de acordo com essa definição. A análise acústica da vocalização de papagaios evidencia que a produção não tem característica de fala, mesmo que pareça fala na percepção de ouvintes humanos [13]. Como dito, a fala humana é caracterizada por frequência fundamental e frequência de formantes. A vocalização de papagaios, por outro lado, é composta somente por frequências fundamentais [13]. Por exemplo, para a produção de uma vogal como [u], um humano produz um som laríngeo relativamente periódico, dotado de frequência fundamental (a qual irá variar dependendo do sexo e da idade do indivíduo), associado a um posicionamento típico da língua no interior da cavidade oral (elevada e retraída), a qual irá gerar dois primeiros formantes muito baixos (graves). Um papagaio irá gerar dois sons relativamente periódicos, ambos produzidos pela siringe, com duas frequências fundamentais diferentes. Esses dois tons mimetizam os dois primeiros formantes humanos, fazendo com que a vocalização do papagaio se assemelhe à fala humana [13]. É por isso que a vocalização do papagaio não é considerada uma fala verdadeira e que, portanto, não há participação da língua na produção.
Chimpanzés e bonobos também emitem vocalizações claramente distintas. O tom de voz do chimpanzé é mais grave e a onomatopeia de sua vocalização é descrita como “huu-huu” [11]. O tom de voz do bonobo é mais agudo e a onomatopeia de sua vocalização é descrita como “hii-hii” [11]. Porém, são vocalizações produzidas apenas pela laringe, sem movimentação da língua. A ausência de movimentação da língua decorre da anatomia do trato supraglótico desses grandes primatas [13].
Uma das características mais salientes dos chimpanzés é sua grande mandíbula. Acompanhando essa grande mandíbula, há uma grande língua. Além disso, o posicionamento da laringe é distinto: ela não está abaixo da língua, mas atrás dela, sendo que a epiglote quase toca o véu palatino [13]. Essa configuração anatômica gera um longo tubo oral e um diminuto tubo faríngeo (esquema aproximado aqui, enfatizando a posição da laringe e não da língua). Em seres humanos, por outro lado, a mandíbula e a língua são menores e a laringe está localizada abaixo da língua, sendo que a epiglote está próxima da raiz da língua e não do véu palatino [13]. Essa configuração anatômica gera um tubo oral horizontal e um tubo faríngeo vertical de tamanhos similares [13] (esquema aqui). São esses dois tubos supralaríngeos de tamanhos similares que possibilitam grande movimentação da língua na cavidade oral, ora aumentando a área do tubo oral, ora aumentando a área do tubo faríngeo [13]. A mudança da área desses tubos faz com que ressoem frequências diferentes. Por exemplo, para a vogal [i], a língua se posiciona anteriormente na cavidade oral, o que diminui a área do tubo oral e aumenta a área do tubo faríngeo. O longo tubo faríngeo gera um primeiro formante grave e o curto tubo oral gera um segundo formante agudo [13].
A produção das vogais [a, i, u], que compõem os extremos do triângulo vocálico, só é possível em tratos supralaríngeos que apresentem tubos orais e faríngeos de tamanhos similares, como é o caso do trato supralaríngeo humano (exceto o de bebês humanos, que apresenta a laringe em posição similar à dos chimpanzés; durante o crescimento, ocorre descida gradual da laringe no pescoço até os seis anos de idade) [13]. O trato supralaríngeo do chimpanzé, com tubo oral e faríngeo de tamanhos muito díspares, não possibilita movimentação ampla da língua na cavidade oral e, portanto, não possibilita mudanças dinâmicas no tamanho dos tubos de ressonância [13].
Assim, o controle dos movimentos da língua é muito refinado na espécie humana, que a utiliza para falar. Técnicas de ultrassom já registraram diversas configurações que a superfície da língua pode assumir durante a produção da fala humana (quinto texto desta série), sendo que essas configurações parecem ter evoluído a partir das configurações que a língua assume durante as funções alimentares (sexto texto desta série). Essas configurações são possíveis graças à musculatura intrínseca e extrínseca da língua (segundo texto desta série), às fibras musculares da língua (terceiro texto desta série), ao princípio geral de funcionamento da língua, que é ser um hidróstato muscular (quarto texto desta série), à inervação motora periférica da língua (sétimo texto desta série) e ao controle neurológico central da língua (oitavo e nono textos desta série).
Referências
[1] Uieda, V. S. & Uieda, W. Agnatos e gnatostomados. Zoologia, IB, UNESP. Slides de aulas disponíveis aqui.
[2] Iwasaki , Shin-ichi. (2002). Evolution of the structure and function of the vertebrate tongue. Journal of Anatomy, 201, 1-13. [Artigo disponível na íntegra]
[3] Hickman, C. P.; Roberts, L. S.; Keen, S. L.; Eisenhour, D. J.; Larson, A. & l’Anson, H. (2013). Primeiros tetrápodes e anfíbios atuais. In: Princípios integrados de Zoologia (pp. 573-593). 15ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan.
[4] Hickman, C. P.; Roberts, L. S.; Keen, S. L.; Eisenhour, D. J.; Larson, A. & l’Anson, H. (2013). Digestão e nutrição. In: Princípios integrados de Zoologia (pp. 747-765). 15ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan.
[5] Kier, W. M. & Smith, K. K. (1985). Tongues, tentacles, and trunks: The biomechanics of movement in muscular-hydrostats. Zoological Journal of the Linnean Society, 83,307-324. [Artigo disponível na íntegra]
[6] Hickman, C. P.; Roberts, L. S.; Keen, S. L.; Eisenhour, D. J.; Larson, A. & l’Anson, H. (2013). A origem dos amniota e os répteis. In: Princípios integrados de Zoologia (pp. 594-617). 15ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan.
[7] Hickman, C. P.; Roberts, L. S.; Keen, S. L.; Eisenhour, D. J.; Larson, A. & l’Anson, H. (2013). Aves. In: Princípios integrados de Zoologia (pp. 618-645). 15ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan.
[8] Jackowiak, H.; Skieresz-Szewczyk, K.; Godynicki, S.; Iwasaki, S-I. & Meyer, W. (2011). Functional morphology of the tongue in the domestic goose (Anser Anser f. Domestica). The Anatomical Record, 294, 1574-1584. [Artigo disponível na íntegra]
[9] Hickman, C. P.; Roberts, L. S.; Keen, S. L.; Eisenhour, D. J.; Larson, A. & l’Anson, H. (2013). Coordenação nervosa: sistema nervoso e órgãos dos sentidos. In: Princípios integrados de Zoologia (pp. 766-794). 15ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan.
[10] Hickman, C. P.; Roberts, L. S.; Keen, S. L.; Eisenhour, D. J.; Larson, A. & l’Anson, H. (2013). Mamíferos. In: Princípios integrados de Zoologia (pp. 646-677). 15ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan.
[11] De Waal, F. (2005). Família antropoide. In: Eu, primata: por que somos como somos (pp. 11-56). São Paulo: Companhia das Letras.
[12] De Waal, F. (2005). Sexo: doutores no Kama Sutra. In: Eu, primata: por que somos como somos (pp. 110-160). São Paulo: Companhia das Letras.
[13] Lieberman, P. (2002). The evolution of the functional language system. In: Human language and our reptilian brain: The subcortical bases of speech, syntax, and thought (pp. 124-156). 2nd ed. Cambridge (MA) e Londres: Harvard University Press.