O dimorfismo sexual na gagueira é conhecido há muito tempo, mas seus mecanismos fisiológicos ainda não estão bem esclarecidos. A maior prevalência da gagueira no sexo masculino sugere uma influência dos andrógenos, os hormônios sexuais masculinos, na gênese do distúrbio.
O neurocientista iraniano Hiwa Mohammadi & colaboradores publicaram um estudo sobre hormônios esteroides em crianças com e sem gagueira [1].
O estudo
Participaram 85 crianças iranianas, entre três e nove anos, com gagueira. Destas, 63 eram meninos e 22 eram meninas. O grupo controle foi composto por outras 85 crianças sem gagueira, pareadas por sexo e idade.
Os procedimentos incluíram:
- Análise da fala, realizada através da transcrição de 500 sílabas faladas. O diagnóstico de gagueira foi considerado positivo quando o número de sílabas gaguejadas foi de, pelo menos, 3% do total de sílabas.
- Coleta de sangue venoso das crianças, para análise dos níveis séricos de:
- De-hidroepiandrosterona (DHEA), um hormônio precursor da testosterona.
- Testosterona, o principal hormônio masculino, mas também presente no sexo feminino.
- Di-hidrotestosterona (DHT), um hormônio masculino, produzido a partir da testosterona.
- Estradiol, o principal hormônio feminino, mas também presente no sexo masculino.
- Progesterona, outro hormônio feminino.
- Globulina ligadora de hormônios sexuais (SHBG), uma proteína que se liga à testosterona e ao estradiol durante a circulação sanguínea desses hormônios.
- Cortisol, um hormônio sinalizador de estresse fisiológico.
- Medição do comprimento dos dedos indicador (2D) e anular (4D) de ambas as mãos de todas as crianças. A relação 2D:4D é um indício indireto da exposição pré-natal à testosterona.
- Pesquisa do genótipo relativo às enzimas CYP17 e CYP19. A família de enzimas chamada de citocromo P450 (CYP) é reguladora dos esteroides sexuais. A enzima CYP17 tem um papel importante na síntese de esteroides sexuais, gerando compostos que são precursores de testosterona e estradiol. Por outro lado, a enzima CYP19 converte hormônios masculinos em femininos (por exemplo, testosterona em estradiol). Variações genéticas na família do citocromo P450 podem alterar a atividade enzimática e, consequentemente, os níveis de hormônios esteroides.
Os resultados indicaram diferenças hormonais e genéticas entre as crianças com e sem gagueira.
Testosterona e seus derivados
Foram encontrados níveis mais elevados de testosterona (livre e total), DHT e estradiol nas crianças com gagueira em comparação às sem gagueira. Análises mais detalhadas mostraram que estes resultados variaram de acordo com o sexo das crianças.
No caso dos meninos, aqueles com gagueira apresentaram níveis mais elevados de DHT em relação aos sem gagueira (média de 3,3 pg/ml e 1,0 pg/ml, respectivamente).
No caso das meninas, aquelas com gagueira apresentaram níveis mais elevados de testosterona livre em relação às sem gagueira (média de 0,08 ng/dl e 0,04 ng/dl, respectivamente). Além disso, as meninas com gagueira também apresentaram níveis mais elevados de estradiol em relação às sem gagueira (média de 7,8 pg/ml e 3,4 pg/ml, respectivamente).
Houve correlação positiva entre a gravidade da gagueira e os níveis de testosterona (total e livre) e DHEA. Ou seja, quanto maior a concentração de testosterona e DHEA, mais acentuada era a gagueira da criança.
Um estudo anterior (Selçuk et al., 2015) também encontrou maiores níveis de testosterona em crianças com gagueira e correlação positiva entre esses níveis e a gravidade da gagueira (veja aqui).
Uma possibilidade é que os hormônios esteroides alterem o desenvolvimento e o funcionamento do cérebro através da expressão gênica. Neste caso, a maior concentração de esteroides levaria à ativação dos genes relacionados à gagueira.
Outra possibilidade é que os hormônios esteroides interfiram nas sinapses cerebrais, já que eles podem se ligar aos receptores das membranas sinápticas e modificar vias dopaminérgicas. Segundo os autores, estudos com animais já demonstraram que a testosterona e o DHT aumentam o transporte de dopamina na substância negra, além de aumentarem os receptores D2 de dopamina na substância negra e no estriado. Essas informações são importantes, porque diversos estudos anteriores demonstraram hiperativação do sistema dopaminérgico e alteração no funcionamento dos núcleos da base em pessoas com gagueira.
Além disso, níveis elevados de testosterona durante a infância podem afetar o processamento cerebral da linguagem, fazendo com que o processamento se torne lateralizado à direita durante a vida adulta. Estudos anteriores também já demonstraram que adultos com gagueira tendem a processar a fala mais à direita, sendo que a melhora da fluência com a fonoterapia se correlaciona com a mudança do processamento para a esquerda.
Citocromo P450
Houve diferença estatística no genótipo relativo à enzima CYP17 nas crianças com gagueira para as sem gagueira. As crianças com gagueira apresentaram maior incidência dos alelos CC (ao invés de TT ou TC), o que aumentou em cinco vezes o risco para gagueira. [C = citosina, T = timina].
As crianças com gagueira com os alelos TC ou CC no gene relativo à CYP17 foram as que apresentaram maiores níveis de testosterona e estradiol. Este resultado indica que a elevação dos níveis de hormônios esteroides é geneticamente mediada em crianças com gagueira.
[Um estudo posterior não confirmou este achado relativo ao genótipo da enzima CYP17; veja aqui]
Não houve diferenças no genótipo relativo à CYP19 entre crianças com e sem gagueira.
Cortisol
O nível de cortisol foi estatisticamente o mesmo entre as crianças com e sem gagueira. Este é um dado que indica que os maiores níveis de testosterona nas crianças com gagueira não se deve à maior ativação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal. Ou seja, as crianças com gagueira não são fisiologicamente mais estressadas do que as sem gagueira. Por outro lado, houve correlação positiva entre a gravidade da gagueira e os níveis de cortisol, indicando que o estresse é um fator que aumenta a gravidade da gagueira.
Relação 2D:4D
Não houve diferença entre a relação 2D:4D entre crianças com e sem gagueira. A relação 2D:4D também não se correlacionou com a gravidade da gagueira ou com os níveis hormonais. Este resultado é um indício de que não há diferença no grau de exposição pré-natal à testosterona entre crianças que desenvolvem e que não desenvolvem gagueira. O estudo de Montag et al. (2015) também havia chegado à conclusão semelhante (veja aqui).
Para finalizar, a influência dos hormônios esteroides também é um fator que pode ajudar a explicar a variabilidade da gagueira, tendo em vista que esses hormônios variam sua concentração ao longo do dia e ao longo dos anos.
Referência
[1] Mohammadi, H.; Joghataei, M. T; Rahimi, Z.; Faghihi, F.; Khazaie, H.; Farhangdoost, H. & Mehrpour, M. (2017). Sex steroid hormones and sex hormone binding globulin levels, CYP17 MSP AI (-34T:C) and CYP19 codon 39 (Trp:Arg) variants in children with developmental stuttering. Brain and Language, 175: 47-56.