Gagueira em meninas e meninos

nov 08, 2021 | por Sandra Merlo | Comorbidades, Gagueira, Últimas descobertas

Há muito tempo se sabe que a gagueira é mais frequente em meninos do que em meninas. Mas não se sabe se o curso temporal da gagueira é o mesmo nos dois sexos. Além disso, também não se sabe se meninos e meninos apresentam tendência para as mesmas comorbidades. Para responder a estas perguntas, eu e mais dois colegas fonoaudiólogos americanos (Patrick Briley e Charles Ellis) analisamos dados epidemiológicos de 1.231 crianças e adolescentes com gagueira. Os resultados sugeriram que a gagueira tem um curso temporal diferente em meninas e meninos, além de apresentar comorbidades diferentes de acordo com o sexo [1].

O estudo

Os dados são provenientes do maior censo de saúde realizado nos Estados Unidos, o “National Health Interview Survey” (NHIS). Todos os anos, são visitadas cerca de 37.000 residências, onde são colhidas informações relativas à saúde de crianças e adultos. O NHIS utiliza como definição de “criança” todas as pessoas entre 3 e 17 anos de idade.

Para o nosso estudo, foram analisados dados coletados entre 2010 a 2015. Foram considerados como crianças ou adolescentes com gagueira, todos aqueles cujos pais e/ou responsáveis responderam “sim” à pergunta: “Nos últimos 12 meses, seu filho (ou sua filha) apresentou gagueira?”.

Em relação às comorbidades, os pais e/ou responsáveis deveriam responder “sim” ou “não” às seguintes perguntas:

  1. “Um médico ou outro profissional de saúde alguma vez já disse que seu filho (ou filha) apresenta transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH)?”
  2. “Um médico ou outro profissional de saúde alguma vez já disse que seu filho (ou filha) apresenta transtorno do espectro autista (TEA?)”
  3. “Um médico ou outro profissional de saúde alguma vez já disse que seu filho (ou filha) apresenta deficiência intelectual?”
  4. “Um profissional da área da educção ou um profissional de saúde alguma vez já disse que seu filho (ou filha) apresenta transtorno de aprendizagem?”
  5. “Nos últimos 12 meses, seu filho (ou filha) apresentou convulsões?”.

 

Resultados

Ao todo, houve 62.450 crianças e adolescentes entre 3 e 17 anos na amostra. Destes, 1.231 (2,0%) foram identificados por seus pais e/ou responsáveis como tendo apresentado gagueira nos últimos 12 meses. Não significa que a gagueira destas crianças e adolescentes tenha sido constante ao longo dos últimos 12 meses e nem que todos sejam casos de gagueira persistente. Também não estão incluídas neste cômputo crianças que gaguejaram há mais de 12 meses e já se recuperaram. Este percentual de 2,0% indica, portanto, a prevalência de gagueira em crianças e adolescentes nos últimos 12 meses na amostra analisada.

Das 1.231 crianças e adolescentes com gagueira, 379 eram meninas e 852 eram meninos. A frequência ponderada de gagueira na amostra total, ou seja, quando se igualou os grupos de meninas e meninas em relação às variáveis demográficas (idade, etnia, região de residência, grau de escolaridade dos pais e nível socioeconômico) foi de 1,3% de meninas e 2,6% de meninos. Pode-se dizer, portanto, que a gagueira atingiu o dobro de meninos em comparação com as meninas na faixa etária de 3 a 17 anos. Este percentual se manteve mesmo quando se comparou meninas e meninos com gagueira em três faixas etárias distintas: dos 3 aos 5 anos, dos 6 aos 10 anos e dos 11 aos 17 anos. Ou seja, a maior prevalência de gagueira em meninos esteve presente desde a idade pré-escolar, não sendo algo que ocorreu apenas em idades mais tardias, conforme a gagueira passou a ser persistente. Por isso, pode-se dizer que a desproporção sexual é inerente à gagueira.

O curso temporal da gagueira se mostrou diferente para meninas e meninos. No caso das meninas, a idade de 3 anos foi a que mais apresentou casos. Aos 4 anos, boa parte das meninas pareceu já ter parado de gaguejar, porque a frequência apresentou grande queda, embora ainda um pouco acima da média. Dos 5 aos 14 anos, o percentual de meninas com gagueira se manteve dentro da média. Finalmente, houve uma nova redução na frequência de gagueira nas meninas aos 15 anos, que se manteve aos 16 e 17 anos. Veja o gráfico a seguir com os resultados relativos às meninas. Embora os dados não sejam longitudinais, nossa interpretação é que os resultados sugerem que a gagueira pode ser considerada persistente nas meninas já aos 5 anos. Além disso, parece existir ainda uma idade de recuperação mais tardia da gagueira, antes dos 15 anos.

Gráfico 1: Prevalência de gagueira no sexo feminino dos 3 aos 17 anos.

No caso dos meninos, a idade de 3 anos apresentou frequência muito baixa de casos. O percentual de gagueira nos meninos aumentou abruptamente aos 4 anos e se manteve acima da média até os 7 anos. Dos 8 aos 14 anos, o percentual se manteve relativamente dentro da média. Finalmente, também houve uma nova redução na frequência de gagueira nos meninos aos 15 anos, que se manteve aos 16 e 17 anos. Veja o gráfico a seguir com os resultados relativos aos meninos. Embora os dados não sejam longitudinais, nossa interpretação é que os resultados sugerem que a gagueira deva ser considerada persistente nos meninos somente aos 8 anos. Além disso, parece existir ainda uma idade de recuperação mais tardia da gagueira, antes dos 15 anos.

Gráfico 2: Prevalência de gagueira no sexo masculino dos 3 aos 17 anos.

Estes dados epidemiológicos indicam que, como grupo, as meninas parecem começar a gaguejar mais cedo e também parecem se recuperar mais cedo do que meninos. É possível que diferenças sexuais no desenvolvimento do cérebro expliquem estas diferenças. De maneira geral, o volume de substância cinzenta nos lobos cerebrais e no núcleo caudado atingem seu pico de um a dois anos antes nas meninas [2]. A maturação cerebral mais precoce é uma hipótese para explicar por que as meninas começam a gaguejar e se recuperam mais cedo do que os meninos.

Além disso, os dados também sugeriram uma idade de recuperação tardia da gagueira, antes dos 15 anos, para ambos os sexos. É possível que a influência dos hormônios sexuais tenha um papel nesta possível recuperação tardia. Sabe-se que os hormônios sexuais femininos maximizam as conexões córtico-corticais, enquanto o hormônio sexual masculino maximiza as conexões subcorticais [3]. Entretanto, também há a possibilidade de que não seja, de fato, uma recuperação, mas somente a maior habilidade do adolescente em usar estratégias de fala a ponto de os pais não mais perceberem a gagueira.

Os resultados relativos à razão sexual também reforçam a ideia de que a desproporção sexual é inerente à gagueira. A única idade em que a razão sexual se mostrou equivalente foi aos 3 anos (0,7:1). Entretanto, isso ocorreu, porque a idade de 3 anos é a idade em que as meninas mais gaguejam, enquanto é uma das idades em que os meninos menos gaguejam. A gagueira atingiu os meninos, como grupo, somente aos 4 anos e, nesta idade, a razão sexual se desequilibrou (2,3:1), ficando dentro da média na infância. As faixas etárias em que a razão sexual foi mais desigual, sempre com maior quantidade de meninos, foi dos 5 aos 8 anos e depois aos 16 e 17 anos. Nas idades de 16 e 17 anos, a razão sexual foi de 2,6:1 e 2,7:1, já se aproximando do que ocorre com os adultos. Veja o gráfico a seguir com os resultados relativos à razão sexual.

Gráfico 3: Razão sexual na gagueira dos 3 aos 17 anos.

Em relação às comorbidades, meninas e meninos foram igualmente afetados por:

  • TEA (5,7% nas meninas e 9,0% nos meninos);
  • Deficiência intelectual (7,2% nas meninas e 7,8% nos meninos);
  • Transtorno de aprendizagem (31,0% nas meninas e 33,7% nos meninos).

Por outro lado, as meninas foram significativamente mais afetadas por convulsões (9,0% nas meninas e 3,5% nos meninos). As meninas possuíram 2,7 mais chances de apresentar convulsões em comparação aos meninos, sendo que esta tendência se manteve estável dos 6 aos 17 anos. Este achado sugere que o fonoaudiólogo identifique as meninas com gagueira que apresentam familiares com epilepsia diagnosticada. Estas meninas são candidatas à realização de eletroencefalograma para saber se estão em risco para apresentar crises convulsivas. Em caso positivo, medidas preventivas precoces podem ser iniciadas (como a melhora do sono e a evitação de medicações que reduzem o limiar convulsivo) com o objetivo de tentar reduzir as chances de convulsões. Em crianças que já apresentam epilepsia e que fazem uso de medicação anticonvulsivante, é tarefa do fonoaudiólogo procurar compreender o efeito da medicação sobre a fluência e, caso suspeite que está havendo efeito deletério, comunicar suas impressões ao médico assistente.

Já os meninos foram significativamente mais afetados por TDAH (15,8% nas meninas e 30,3% nos meninos). Os meninos possuíram 2,3 vezes mais chances de apresentar TDAH em comparação às meninas, sendo que esta tendência se manteve estável dos 3 aos 17 anos. A presença de TDAH impõe diversos desafios para a fonoterapia de gagueira. Um deles diz respeito à organização do ambiente terapêutico em si, com a necessidade de se propor à criança atividades terapêuticas agradáveis (a fim de que ela consiga manter a atenção e o interesse) e que não sejam tão restritivas fisicamente (a fim de minimizar os efeitos deletérios da agitação). Outro desafio diz respeito à medicação psicoestimulante, a qual pode ter efeito benéfico ou prejudicial na fluência da fala, sendo de responsabilidade do fonoaudiólogo a observação destes efeitos e sua comunicação ao médico assistente.

Para finalizar, gostaria de frisar a utilidade que estudos epidemiológicos podem ter na área da gagueira. Tendo em vista que a gagueira é um distúrbio com baixa prevalência populacional, a observância de padrões apenas pode ser feita com grandes bases de dados, como as oferecidas por estudos epidemiológicos. Para que fossem obtidos dados de 1.231 crianças e adolescentes com gagueira, foi necessário coletar dados de 62.450 crianças e adolescentes. Isso somente é possível com pesquisas epidemiológicas. Somente com dados de 1.231 crianças e adolescentes com gagueira foi possível observar que o curso temporal da gagueira é diferente para cada sexo e que há diferenças no perfil de comorbidades.

 

Referências

[1] Briley, P. M., Merlo, S., & Ellis, C. (2021). Sex differences in childhood stuttering and coexisting developmental disorders. Journal of Developmental and Physical Disabilities, in press.

[2] Lenroot, R. K., Gogtay, N., Greenstein, D. K., Wells, E. M., Wallace, G. L., Clasen, L. S., Blumenthal,
J. D., Lerch, J., Zijdenbos, A. P., Evans, A. C., Thompson, P. M., & Giedd, J. N. (2007). Sexual dimorphism of brain developmental trajectories during childhood and adolescence. NeuroImage, 36,1065-1073.

[3] Peper, J. S., van den Heuvel, M. P., Mandl, R. C. W., Pol, H. E. H., & van Honk, J. (2011). Sex steroids and connectivity in the human brain: A review of neuroimaging studies. Psychoneuroendocrinology, 36, 1101-1113.