Há muito tempo se sabe que a gagueira é mais frequente em meninos do que em meninas. Mas não se sabe se o curso temporal da gagueira é o mesmo nos dois sexos. Além disso, também não se sabe se meninos e meninos apresentam tendência para as mesmas comorbidades. Para responder a estas perguntas, eu e mais dois colegas fonoaudiólogos americanos (Patrick Briley e Charles Ellis) analisamos dados epidemiológicos de 1.231 crianças e adolescentes com gagueira. Os resultados sugeriram que a gagueira tem um curso temporal diferente em meninas e meninos, além de apresentar comorbidades diferentes de acordo com o sexo [1].
O estudo
Os dados são provenientes do maior censo de saúde realizado nos Estados Unidos, o “National Health Interview Survey” (NHIS). Todos os anos, são visitadas cerca de 37.000 residências, onde são colhidas informações relativas à saúde de crianças e adultos. O NHIS utiliza como definição de “criança” todas as pessoas entre 3 e 17 anos de idade.
Para o nosso estudo, foram analisados dados coletados entre 2010 a 2015. Foram considerados como crianças ou adolescentes com gagueira, todos aqueles cujos pais e/ou responsáveis responderam “sim” à pergunta: “Nos últimos 12 meses, seu filho (ou sua filha) apresentou gagueira?”.
Em relação às comorbidades, os pais e/ou responsáveis deveriam responder “sim” ou “não” às seguintes perguntas:
- “Um médico ou outro profissional de saúde alguma vez já disse que seu filho (ou filha) apresenta transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH)?”
- “Um médico ou outro profissional de saúde alguma vez já disse que seu filho (ou filha) apresenta transtorno do espectro autista (TEA?)”
- “Um médico ou outro profissional de saúde alguma vez já disse que seu filho (ou filha) apresenta deficiência intelectual?”
- “Um profissional da área da educção ou um profissional de saúde alguma vez já disse que seu filho (ou filha) apresenta transtorno de aprendizagem?”
- “Nos últimos 12 meses, seu filho (ou filha) apresentou convulsões?”.
Resultados
Ao todo, houve 62.450 crianças e adolescentes entre 3 e 17 anos na amostra. Destes, 1.231 (2,0%) foram identificados por seus pais e/ou responsáveis como tendo apresentado gagueira nos últimos 12 meses. Não significa que a gagueira destas crianças e adolescentes tenha sido constante ao longo dos últimos 12 meses e nem que todos sejam casos de gagueira persistente. Também não estão incluídas neste cômputo crianças que gaguejaram há mais de 12 meses e já se recuperaram. Este percentual de 2,0% indica, portanto, a prevalência de gagueira em crianças e adolescentes nos últimos 12 meses na amostra analisada.
Das 1.231 crianças e adolescentes com gagueira, 379 eram meninas e 852 eram meninos. A frequência ponderada de gagueira na amostra total, ou seja, quando se igualou os grupos de meninas e meninas em relação às variáveis demográficas (idade, etnia, região de residência, grau de escolaridade dos pais e nível socioeconômico) foi de 1,3% de meninas e 2,6% de meninos. Pode-se dizer, portanto, que a gagueira atingiu o dobro de meninos em comparação com as meninas na faixa etária de 3 a 17 anos. Este percentual se manteve mesmo quando se comparou meninas e meninos com gagueira em três faixas etárias distintas: dos 3 aos 5 anos, dos 6 aos 10 anos e dos 11 aos 17 anos. Ou seja, a maior prevalência de gagueira em meninos esteve presente desde a idade pré-escolar, não sendo algo que ocorreu apenas em idades mais tardias, conforme a gagueira passou a ser persistente. Por isso, pode-se dizer que a desproporção sexual é inerente à gagueira.
O curso temporal da gagueira se mostrou diferente para meninas e meninos. No caso das meninas, a idade de 3 anos foi a que mais apresentou casos. Aos 4 anos, boa parte das meninas pareceu já ter parado de gaguejar, porque a frequência apresentou grande queda, embora ainda um pouco acima da média. Dos 5 aos 14 anos, o percentual de meninas com gagueira se manteve dentro da média. Finalmente, houve uma nova redução na frequência de gagueira nas meninas aos 15 anos, que se manteve aos 16 e 17 anos. Veja o gráfico a seguir com os resultados relativos às meninas. Embora os dados não sejam longitudinais, nossa interpretação é que os resultados sugerem que a gagueira pode ser considerada persistente nas meninas já aos 5 anos. Além disso, parece existir ainda uma idade de recuperação mais tardia da gagueira, antes dos 15 anos.
No caso dos meninos, a idade de 3 anos apresentou frequência muito baixa de casos. O percentual de gagueira nos meninos aumentou abruptamente aos 4 anos e se manteve acima da média até os 7 anos. Dos 8 aos 14 anos, o percentual se manteve relativamente dentro da média. Finalmente, também houve uma nova redução na frequência de gagueira nos meninos aos 15 anos, que se manteve aos 16 e 17 anos. Veja o gráfico a seguir com os resultados relativos aos meninos. Embora os dados não sejam longitudinais, nossa interpretação é que os resultados sugerem que a gagueira deva ser considerada persistente nos meninos somente aos 8 anos. Além disso, parece existir ainda uma idade de recuperação mais tardia da gagueira, antes dos 15 anos.
Estes dados epidemiológicos indicam que, como grupo, as meninas parecem começar a gaguejar mais cedo e também parecem se recuperar mais cedo do que meninos. É possível que diferenças sexuais no desenvolvimento do cérebro expliquem estas diferenças. De maneira geral, o volume de substância cinzenta nos lobos cerebrais e no núcleo caudado atingem seu pico de um a dois anos antes nas meninas [2]. A maturação cerebral mais precoce é uma hipótese para explicar por que as meninas começam a gaguejar e se recuperam mais cedo do que os meninos.
Além disso, os dados também sugeriram uma idade de recuperação tardia da gagueira, antes dos 15 anos, para ambos os sexos. É possível que a influência dos hormônios sexuais tenha um papel nesta possível recuperação tardia. Sabe-se que os hormônios sexuais femininos maximizam as conexões córtico-corticais, enquanto o hormônio sexual masculino maximiza as conexões subcorticais [3]. Entretanto, também há a possibilidade de que não seja, de fato, uma recuperação, mas somente a maior habilidade do adolescente em usar estratégias de fala a ponto de os pais não mais perceberem a gagueira.
Os resultados relativos à razão sexual também reforçam a ideia de que a desproporção sexual é inerente à gagueira. A única idade em que a razão sexual se mostrou equivalente foi aos 3 anos (0,7:1). Entretanto, isso ocorreu, porque a idade de 3 anos é a idade em que as meninas mais gaguejam, enquanto é uma das idades em que os meninos menos gaguejam. A gagueira atingiu os meninos, como grupo, somente aos 4 anos e, nesta idade, a razão sexual se desequilibrou (2,3:1), ficando dentro da média na infância. As faixas etárias em que a razão sexual foi mais desigual, sempre com maior quantidade de meninos, foi dos 5 aos 8 anos e depois aos 16 e 17 anos. Nas idades de 16 e 17 anos, a razão sexual foi de 2,6:1 e 2,7:1, já se aproximando do que ocorre com os adultos. Veja o gráfico a seguir com os resultados relativos à razão sexual.
Em relação às comorbidades, meninas e meninos foram igualmente afetados por:
- TEA (5,7% nas meninas e 9,0% nos meninos);
- Deficiência intelectual (7,2% nas meninas e 7,8% nos meninos);
- Transtorno de aprendizagem (31,0% nas meninas e 33,7% nos meninos).
Por outro lado, as meninas foram significativamente mais afetadas por convulsões (9,0% nas meninas e 3,5% nos meninos). As meninas possuíram 2,7 mais chances de apresentar convulsões em comparação aos meninos, sendo que esta tendência se manteve estável dos 6 aos 17 anos. Este achado sugere que o fonoaudiólogo identifique as meninas com gagueira que apresentam familiares com epilepsia diagnosticada. Estas meninas são candidatas à realização de eletroencefalograma para saber se estão em risco para apresentar crises convulsivas. Em caso positivo, medidas preventivas precoces podem ser iniciadas (como a melhora do sono e a evitação de medicações que reduzem o limiar convulsivo) com o objetivo de tentar reduzir as chances de convulsões. Em crianças que já apresentam epilepsia e que fazem uso de medicação anticonvulsivante, é tarefa do fonoaudiólogo procurar compreender o efeito da medicação sobre a fluência e, caso suspeite que está havendo efeito deletério, comunicar suas impressões ao médico assistente.
Já os meninos foram significativamente mais afetados por TDAH (15,8% nas meninas e 30,3% nos meninos). Os meninos possuíram 2,3 vezes mais chances de apresentar TDAH em comparação às meninas, sendo que esta tendência se manteve estável dos 3 aos 17 anos. A presença de TDAH impõe diversos desafios para a fonoterapia de gagueira. Um deles diz respeito à organização do ambiente terapêutico em si, com a necessidade de se propor à criança atividades terapêuticas agradáveis (a fim de que ela consiga manter a atenção e o interesse) e que não sejam tão restritivas fisicamente (a fim de minimizar os efeitos deletérios da agitação). Outro desafio diz respeito à medicação psicoestimulante, a qual pode ter efeito benéfico ou prejudicial na fluência da fala, sendo de responsabilidade do fonoaudiólogo a observação destes efeitos e sua comunicação ao médico assistente.
Para finalizar, gostaria de frisar a utilidade que estudos epidemiológicos podem ter na área da gagueira. Tendo em vista que a gagueira é um distúrbio com baixa prevalência populacional, a observância de padrões apenas pode ser feita com grandes bases de dados, como as oferecidas por estudos epidemiológicos. Para que fossem obtidos dados de 1.231 crianças e adolescentes com gagueira, foi necessário coletar dados de 62.450 crianças e adolescentes. Isso somente é possível com pesquisas epidemiológicas. Somente com dados de 1.231 crianças e adolescentes com gagueira foi possível observar que o curso temporal da gagueira é diferente para cada sexo e que há diferenças no perfil de comorbidades.
Referências
[1] Briley, P. M., Merlo, S., & Ellis, C. (2021). Sex differences in childhood stuttering and coexisting developmental disorders. Journal of Developmental and Physical Disabilities, in press.
[2] Lenroot, R. K., Gogtay, N., Greenstein, D. K., Wells, E. M., Wallace, G. L., Clasen, L. S., Blumenthal,
J. D., Lerch, J., Zijdenbos, A. P., Evans, A. C., Thompson, P. M., & Giedd, J. N. (2007). Sexual dimorphism of brain developmental trajectories during childhood and adolescence. NeuroImage, 36,1065-1073.
[3] Peper, J. S., van den Heuvel, M. P., Mandl, R. C. W., Pol, H. E. H., & van Honk, J. (2011). Sex steroids and connectivity in the human brain: A review of neuroimaging studies. Psychoneuroendocrinology, 36, 1101-1113.