O quanto a forma de falar dos pais prejudica ou ajuda a fala da criança com gagueira? Para responder esta pergunta, vou resumir os pontos principais de dois artigos de revisão publicados na literatura especializada da área de gagueira. Um dos artigos foi escrito pela fonoaudióloga americana Nan Bernstein Ratner e foi publicado em 2004 [1]. O outro artigo foi escrito pela fonoaudióloga americana Marilyn Nippold (em parceira com Mishelle Rudzinski) e foi publicado em 1995 [2].
Existe uma preocupação dos profissionais que trabalham com gagueira sobre o quanto a forma como os pais falam com a criança pode prejudicar ou pode auxiliar na melhora da gagueira. Falar rápido com a criança faz a gagueira piorar? Fazer muitas perguntas pode fazer a gagueira da criança piorar? Falar de forma mais complexa faz a gagueira da criança piorar? São questões como estas que motivaram as duas revisões de literatura citadas.
Além de pesquisar sobre gagueira, Nan Bernstein Ratner e Marilyn Nippold também pesquisam a aquisição de linguagem (tanto em crianças com desenvolvimento típico, quanto em crianças com distúrbios de comunicação). Por isso, elas têm familiaridade com a literatura de aquisição de fala e linguagem de maneira geral e não apenas restrita à gagueira. Segundo Ratner [1], as pesquisas sobre aquisição de linguagem procuram confirmar ou refutar a premissa chomskyana de que a aquisição de linguagem pela criança é pouco influenciada pela forma de falar dos pais. Noam Chomsky é linguista e professor aposentado do MIT (Massachusetts Institute of Technology). Ele é tido como “O Pai da Linguística Moderna”. Dentre suas proposições, está o postulado de que as crianças possuem um “dispositivo de aquisição de linguagem” em seus cérebros, o qual permitiria que elas fizessem a análise gramatical das falas produzidas pelos adultos à sua volta [3]. Assim, para Chomsky, as crianças têm uma predisposição inata para adquirir linguagem [3]. Neste sentido, a fala dos adultos pouco influenciaria no processo de aquisição de linguagem infantil. Existem pesquisadores que elaboram experimentos e esperam demonstrar que Chomsky estava correto e outros que procuram demonstrar que ele estava errado na premissa de que a forma de falar dos pais pouco influencia a aquisição de fala e linguagem da criança.
Segundo Ratner [1] e Nippold & Rudzinski [2], na literatura específica da área de gagueira, a hipótese de que a forma de falar dos pais interfere na gagueira da criança é antiga, datando de Wendell Johnson e Charles Van Riper (dois fonoaudiólogos historicamente relevantes na área, ambos já falecidos). Neste sentido, os fonoaudiólogos que trabalham com gagueira não seriam chomskyanos. Wendell Johnson propôs a teoria diagnosogênica da gagueira, na qual a atenção dos pais para as disfluências normais presentes durante a aquisição de linguagem transformaria o que é normal em gagueira [1, 2]. Provém da teoria diagnosogênica a orientação para os pais não darem atenção para a gagueira da criança, para fazerem de conta que nada está acontecendo [1]. Segundo essa teoria, não dar atenção à gagueira faz com que ela passe. Se der atenção à gagueira, ela continua e se cronifica. Acontece que a teoria diagnosogênica está incorreta. Já sabemos disso há mais de 30 anos. Entretanto, mesmo assim, como observa Ratner, a teoria diagnosogênica pode ainda continuar presente em livros-texto de gagueira, em websites sobre o assunto e nos consultórios (embora com frequência bem menor do que há algumas décadas) [1].
Van Riper, por outro lado, não acreditava que prestar atenção à fala da criança transformaria disfluências comuns em gagueira. Mas acreditava que a forma de falar dos pais poderia causar gagueira na criança [1]. Assim, pais que falassem rápido ou de muito complexa fariam com que seus filhos estivessem em grande risco para desenvolver distúrbios de comunicação [1]. Se a criança tentasse imitar a rapidez de fala dos pais, ela começaria a gaguejar, porque não teria habilidade motora e linguística para se sair bem nesta tarefa. Já se a criança tentasse imitar a fala complexa dos pais (em relação ao vocabulário, por exemplo), ela teria distúrbio articulatório, porque, novamente, não teria habilidade motora para tal [1]. Segundo cita Ratner [1], Van Riper acreditava que, se os pais falassem de forma lenta e simplificada com seus filhos, os fonoaudiólogos não teriam mais trabalho (risos?). Conforme frisa Ratner, a hipótese de Van Riper, sobre a criança tentar imitar a fala dos pais, é bastante presente em livros-texto de gagueira, em websites sobre o assunto e nos consultórios [1].
Ratner [1] cita um estudo publicado em 1996, de Cooper & Cooper, que analisou as práticas de centenas de fonoaudiólogos americanos que trabalhavam com gagueira em 1973, 1983 e 1991. Os resultados indicaram que a percepção dos fonoaudiólogos de que os pais transformam a fluência da criança em gagueira decaiu enormemente nesse período de quase 20 anos (apenas 10% dos fonoaudiólogos concordavam com essa hipótese em 1991). Por outro lado, cerca de 90% dos fonoaudiólogos, em 1991, concordavam que as atitudes dos pais, incluindo aí sua forma de falar com a criança, seriam o fator mais importante para a remissão da gagueira em crianças pré-escolares. Para esses fonoaudiólogos, orientar os pais sobre como eles devem agir e falar com a criança que gagueja é crucial.
Ratner cita diversas orientações presentes em livros-texto sobre gagueira e que os pais podem ouvir de fonoaudiólogos [1]:
- Pais que falam muito aceleram a aquisição de linguagem da criança para além da capacidade da criança de produzir enunciados mais longos e complexos. Este estilo de fala dos pais favoreceria o aparecimento e a cronificação da gagueira. Assim, pais que falam muito são orientados a falar menos para não sobrecarregar o sistema linguístico da criança com gagueira.
- Pais que falam de forma muito complexa em termos sintático-semânticos (por exemplo, que utilizam vocabulário mais rebuscado ou fazem construções gramaticais mais complexas) também estariam sobrecarregando o sistema linguístico da criança com gagueira. A criança tentaria imitar o padrão de linguagem mais complexo dos pais e, como não conseguiria atingir o mesmo nível de linguagem, estaria mais propensa a desenvolver gagueira. Pais que apresentam padrões mais rebuscados de linguagem seriam aconselhados, então, a simplificar sua linguagem ao conversar com a criança com gagueira.
- Pais que falam rápido acelerariam a criança, fazendo com que ela tentasse falar igualmente rápido. Como a capacidade motora da criança está aquém dessa capacidade, isso também favoreceria o aparecimento e a cronificação da gagueira. Pais que falam rápido são então aconselhados a falar devagar com a criança que gagueja. Meu acréscimo à discussão: vale lembrar que, da mesma forma que a gagueira pode ter predisposição hereditária, a taquifemia (fala rápida) também pode. Então, um pai ou uma mãe que fale rápido pode ter taquifemia, o que, aliás, faz muito sentido, porque tanto a gagueira quanto a taquifemia são distúrbios de fluência e podem, ambas, estarem presentes em uma mesma família. Da mesma forma que não se pede para uma pessoa que gagueja falar sem gaguejar, também não faz sentido pedir para uma pessoa com taquifemia falar mais lentamente, porque a taquifemia, assim como a gagueira, é involuntária.
Nos três exemplos citados acima, a criança estaria em vulnerabilidade para desenvolver gagueira porque ela tentaria imitar o padrão de fala dos adultos e, não tendo capacidade motora e linguística para tal, exibiria quebras de fluência. Entretanto, como Ratner [1] e Nippold & Rudzinski [2] demonstram, poucas pesquisas, de fato, estudaram a influência do estilo de fala dos pais na fluência das crianças. Assim, as orientações para os pais modificarem sua forma de falar são muito mais conselhos do que prática clínica baseada em evidências [1, 2].
Pais de crianças com gagueira falam muito ou de forma muito complexa com seus filhos que gaguejam?
É correto afirmar que enunciados mais longos e complexos produzidos pelas crianças realmente eliciam mais gagueira [1, 2, 4]. Há uma vasta literatura sobre o assunto. O mesmo é válido para crianças que estão em processo normal de aquisição de linguagem: enunciados mais longos e complexos eliciam maior número de disfluências comuns [1].
A criança com gagueira produziria enunciados mais longos e complexos por que seus pais falam com ela com uma linguagem muito complexa? Ratner cita diversas pesquisas experimentais que demonstram que não [1]: pais de crianças com gagueira não falam mais, não usam enunciados mais longos, não usam vocabulário mais rebuscado e não produzem enunciados mais complexos em termos sintáticos ao interagir com seus filhos com gagueira em comparação a pais de crianças sem gagueira. Isso indica que não é a maior complexidade da linguagem dos pais que coloca a criança em risco para a gagueira. Ratner frisa que, na literatura sobre aquisição normal de linguagem, não há a preocupação de que o excesso de complexidade da linguagem dos pais possa prejudicar a aquisição de linguagem pela criança [1]. Esta preocupação parece ser específica de profissionais que trabalham com gagueira.
Ratner e Nippold citam estudos na área de aquisição de linguagem para demonstrar que a quantidade e a complexidade da linguagem dos pais se correlacionam fortemente com a riqueza da linguagem da criança [1, 4]. Assim, pais que falam pouco, que apresentam menor vocabulário ou que produzem textos falados mais simples fazem com que seus filhos também tenham linguagem mais simples [1, 4]. Essas crianças geralmente apresentam aquisição mais lenta de linguagem (medida por testes de vocabulário e sintaxe) e falam mais lentamente [1].
Como dito anteriormente, quando a criança com gagueira produz enunciados mais curtos e simples realmente ocorre redução na frequência da gagueira. Segundo Ratner, existe um programa que faz exatamente isso: é o Programa Lidcombe [1]. Este programa é um tratamento para gagueira que envolve condicionamento operante. Os pais são orientados a elogiar enunciados fluentes produzidos pelo filho e a solicitar repetição de enunciados com gagueira [1]. Este programa já é estudado há mais de uma década e há evidências de que ele pode trazer bons resultados. Análises das produções linguísticas das crianças antes e depois do programa indicam que, no início do programa, quando a gagueira está mais acentuada, os enunciados produzidos pelas crianças são mais longos e complexos [1]. No final do programa, quando a gagueira reduziu, os enunciados produzidos pelas crianças são mais curtos e simples [1]. Portanto, segundo Ratner, os elogios dos pais à fala fluente faz com que, em longo prazo, a criança produza enunciados mais fluentes, mas que também são enunciados mais simples e curtos [1].
Pais de crianças com gagueira fazem muitas perguntas a seus filhos?
Não há evidências de que pais de crianças com gagueira façam um maior número de perguntas a seus filhos em comparação a pais de crianças sem gagueira [1, 2]. Ou seja, não seria o grande número de perguntas dos pais que excederia a capacidade motora e linguística da gagueira e a colocaria em risco para gagueira [1].
Ratner aponta que a frequência de perguntas que os pais dirigem às crianças (com ou sem gagueira) se correlaciona com o desenvolvimento de linguagem das crianças: quanto mais perguntas, mais estímulo para a aquisição de linguagem e melhor o desempenho da criança em testes padronizados de linguagem [1]. Outro dado importante é que as crianças tendem a gaguejar mais ao fazer perguntas do que ao responder perguntas [1, 2]. Ou seja, orientar os pais a reduzir o número de perguntas ao filho com gagueira não apenas não reduz a gagueira, como também reduz o ritmo de aquisição de linguagem [1].
Pais de crianças com gagueira falam mais rápido com seus filhos em relação a pais de crianças sem gagueira?
Diversas pesquisas experimentais que demonstram que não [1, 2]: pais de crianças com gagueira apresentam valores semelhantes de taxa de elocução ao falar com seus filhos em comparação a pais de crianças sem gagueira. Isso é válido tanto antes de a gagueira iniciar, quanto para depois que ela já iniciou. Ou seja, não há evidências científicas que indiquem que as crianças começam a gaguejar ou que continuam a gaguejar por que seus pais falam muito rápido com elas [1, 2].
Entretanto, Ratner também cita diversos estudos que mostram que a redução da taxa de elocução dos pais ajuda, de fato, a reduzir a frequência da gagueira nas crianças [1]. Além disso, a redução do número de interrupções enquanto a criança está falando e a redução de momentos de fala conjunta também podem ajudar a reduzir a gagueira nas crianças [1]. Por outro lado, um dado muito interessante, corroborado por diversas pesquisas citadas por Ratner [1] e Nippold & Rudzinski [2], é que a redução da gagueira da criança quando os adultos falam mais devagar com ela, quando a interrompem menos ou quando respeitam mais seu turno de fala não ocorre porque a criança passou a falar mais devagar. Ou seja, embora a criança apresente redução na frequência da gagueira, não é porque ela passou a imitar o padrão de fala mais lento do adulto. Ratner frisa que as crianças não imitam a taxa de elocução dos pais e que isso é válido para todas as crianças e não apenas para as com gagueira [1].
O que explicaria a redução da gagueira então? Mais uma vez citando diversos estudos, Ratner indica que as modificações na forma de falar dos pais (falar mais devagar com a criança, interromper menos a criança ou reduzir os momentos de fala conjunta) fazem com que a criança aumente a latência para iniciar sua fala [1]. Ou seja, a criança passa a fazer pausas mais longas antes de iniciar sua fala. São essas pausas mais longas que reduzem a frequência da gagueira. Embora esse efeito seja significativo, Ratner frisa que é um efeito pequeno, ou seja, traz apenas uma leve melhora da gagueira [1].
Pais de crianças com gagueira têm expectativas irreais sobre a fala do(a) filho(a)?
Ratner também mostra que algumas pesquisas correlacionaram a avaliação subjetiva dos pais de crianças com gagueira sobre a capacidade linguística de seus filhos com o desempenho dessas mesmas crianças em testes padronizados de linguagem (articulação, vocabulário e gramática) [1]. Os resultados indicam que a avaliação dos pais de crianças com gagueira se correlaciona muito bem com os desempenhos das crianças nos testes [1].
O mesmo não acontece com os pais de crianças sem gagueira, os quais tendem a não saber avaliar tão bem a linguagem do filho [1]. Penso que isso se explica pelo fato de que os pais de crianças com gagueira passam a observar melhor como seu filho(a) fala depois que a gagueira inicia. Isso não acontece com os pais de crianças que não gaguejam, porque seus filhos não apresentam um distúrbio que chame sua atenção para a fala do filho(a).
Ratner conclui, portanto, que pais que apontam deficiências linguísticas nos seus filhos com gagueira geralmente estão corretos quanto às observações, não devendo ser rotulados como “exigentes demais” [1].
Lista de orientações aos pais
Ratner [1] e Nippold & Rudzinski [2] também dizem que é muito típico que os fonoaudiólogos entreguem uma lista de orientações para os pais de crianças com gagueira, principalmente quando se trata de intervenção precoce. A lista de orientações geralmente traz diversos conselhos sobre como os pais devem falar com seus filhos que gaguejam. Mas não há, de fato, estudos controlados que demonstrem a eficácia dessas listas de orientações [1, 2].
Outro ponto importante levantado por Ratner é que os fonoaudiólogos podem ter a falsa impressão de que a lista de recomendações é muito eficaz devido à alta taxa de recuperação espontânea da gagueira na infância [1]. Há mais de 20 anos, sabe-se que 80% dos casos de gagueira regridem em até dois anos após seu início [1]. Assim, não se pode afirmar que uma determinada intervenção foi bem sucedida, se ela ocorreu dentro desse período de dois anos após o início da gagueira, porque o sucesso pode ter sido devido à recuperação espontânea e não à intervenção em si [1].
Ratner também observa que o foco para mudar o padrão de fala dos pais como forma de tratamento da gagueira pode induzi-los a acreditar que é a forma como eles falam com a criança que a faz gaguejar, sendo que não há dados científicos que indiquem isso [1].
Nippold & Rudzinski concluem [2]: “É importante que os fonoaudiólogos clínicos estejam cientes de que, mesmo com décadas de pesquisas, as evidências disponíveis que corroboram a relação de causa e efeito entre a forma de falar dos pais e a gagueira das crianças são extremamente limitadas. Este conhecimento precisa fazer com que os fonoaudiólogos questionem a adequação de métodos de tratamentos para crianças disfluentes que são baseados na modificação da forma de falar dos pais. Materiais clínicos como livros, artigos e capítulos (…) geralmente contém recomendações para que os pais falem mais devagar com a criança, para que evitem interromper a fala da criança e para que mudem sua forma de falar ao interagir com crianças disfluentes. Entretanto, os fonoaudiólogos precisam saber que há poucas evidências objetivas que demonstrem a eficácia dessas recomendações” (p. 986, tradução minha).
Ratner conclui [1]: “Uma recomendação que parece relativamente segura de ser feita neste momento é que os fonoaudiólogos clínicos atuem com cautela, compreendendo que as modificações de taxa de elocução e de trocas de turno podem ter um efeito pequeno, mas não conseguem, por si só, resolver a gagueira” (p. 53, tradução minha). Além disso, caso algumas famílias não consigam aderir às recomendações, elas não podem ser culpabilizadas por um eventual fracasso terapêutico [1].
Uma das revisões citadas [2] foi publicada há 23 anos. A outra [1] foi publicada há 14 anos. Desde então, não foram publicadas outras revisões sobre a influência da forma de falar dos pais sobre a gagueira da criança. A não ser que novas pesquisas sejam publicadas, com dados que modifiquem substancialmente as conclusões anteriores, as orientações para os pais modificarem sua forma de falar com as crianças que gaguejam devem ser vistas com cautela. Além dessas orientações, de forma geral, não serem eficazes para reduzir a gagueira, elas também podem limitar o desenvolvimento de linguagem da criança [1, 4].
Referências
[1] Ratner, N. B. (2004). Caregiver-child interactions and their impact on children’s fluency: implications for treatment. Language, Speech, and Hearing Services in Schools, 35: 46-56.
[2] Nippold, M. A. &, Rudzinski, M. (1995). Parents’ speech and children’s stuttering: a critique of the literature. Journal of Speech and Hearing Research, 38: 978-89.
[3] Crystal, D. (2000). Dicionário de Linguística e Fonética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
[4] Nippold, M. A. (2018). Language development in children who stutter: A review of recent research. International Journal of Speech-Language Pathology. DOI: 10.1080/17549507.2018.1457721