Neste segundo texto da série, vamos abordar a anatomia macroscópica da língua no que diz respeito à musculatura.
Grandes divisões anatômicas da língua
A língua é dividida em três grandes partes [1] [veja a figura 2C deste artigo, pág. 1106]:
- A lâmina, que se estende da ponta ao frênulo.
- O corpo, que se estende do frênulo ao sulco terminal.
- A base ou raiz, que é posterior ao sulco terminal.
A lâmina e o corpo são as regiões mais relacionadas à fala.
Nesta série, não vamos abordar o frênulo lingual. Esta estrutura, (apenas) aparentemente simples, tem grandes implicações na fala. O frênulo lingual será abordado com detalhes em uma série específica.
Músculos da língua
A musculatura da língua é alvo de grandes controvérsias. Vou comparar algumas fontes e isso vai ficar claro. A comparação não tem a intenção de ser exaustiva. As fontes utilizadas são as que mais facilmente tenho acesso.
Nos livros de anatomia, o trato vocal não é abordado como entidade única, mas como parte do sistema respiratório e do sistema digestivo. Estruturas como nariz, laringe e pulmões são estudadas como sistema respiratório, enquanto estruturas como lábios, dentes e língua são estudadas como sistema digestivo. Até onde sei, o trato vocal é estudado de forma mais unificada apenas em livros de linguística ou fonoaudiologia.
Em um livro de anatomia humana básica [2], localizando a palavra “língua” no índice remissivo, há três citações:
“Língua, 541
face dorsal da, 540-f
músculos extrínsecos da, 204, 208-f, 208-t
sensações do gosto na, 482-f, 483”
[“f” refere-se à figura e “t” refere-se à tabela]
A pág. 204 pertence ao capítulo “Sistema Muscular”. Neste capítulo, há uma seção chamada “Músculos da cabeça e do pescoço”, a qual apresenta a subseção “Músculos da língua”. Há breves explicações sobre as diferenças funcionais entre músculos intrínsecos e extrínsecos da língua, mas sem citar o nome de nenhum músculo específico. O texto remete para uma tabela e uma figura que apresentam, respectivamente, os nomes de três músculos extrínsecos (genioglosso, hioglosso e estiloglosso) e ilustrações desses mesmos músculos. Não há nenhuma menção sobre quais seriam os músculos intrínsecos. Na figura, os músculos intrínsecos são coletivamente chamados apenas de “língua”.
Em um livro de anatomia odontológica [3], há o capítulo “Miologia”. Este capítulo possui uma seção específica chamada “Músculos da língua”. Como músculo intrínseco, apresenta apenas o transverso. Apresenta oito músculos como sendo extrínsecos: genioglosso, estiloglosso, hioglosso, palatoglosso, faringoglosso, amigdaloglosso, longitudinal superior e longitudinal inferior. Na figura apresentada, há alguns músculos extrínsecos; a musculatura intrínseca é apresentada coletivamente apenas como “língua”. Esta classificação diverge bastante das demais apresentadas aqui.
Em um atlas de anatomia humana [4], a palavra “língua” no índice remissivo indica:
“Língua 70-78
– músculos 72-75”
Nas páginas correspondentes (71-78), são apresentadas 14 figuras dos músculos da língua, da vascularização e da inervação, bem como da relação da língua com outras estruturas (nariz, faringe, laringe). Apresenta quatro músculos como sendo os intrínsecos: longitudinal inferior, longitudinal superior, transverso e vertical. Apresenta cinco músculos como sendo os extrínsecos: genioglosso, hioglosso, condroglosso, estiloglosso e palatoglosso.
Para finalizar, uma referência online: o site “Aula de Anatomia”. Na seção “Sistema muscular”, os músculos da língua não são encontrados em lugar nenhum. Na seção “Sistema digestório”, há a subseção “Língua”, a qual apresenta quatro músculos como sendo os intrínsecos (longitudinal superior, longitudinal inferior, transverso e vertical) e apresenta cinco músculos como os extrínsecos (genioglosso, hioglosso, condroglosso, estiloglosso e palatoglosso). A única figura apresentada concentra-se nos músculos extrínsecos. Os músculos intrínsecos são coletivamente chamados apenas de “língua”.
Como é possível perceber, há muitas divergências em relação à musculatura da língua entre as quatro fontes citadas. O atlas de anatomia [4] é a fonte que apresenta informações e ilustrações mais detalhadas. Nas outras três fontes, ilustrações dos músculos intrínsecos da língua permanecem em total mistério.
Atlas anatômico tridimensional dos músculos da língua
Os otorrinolaringologistas Ira Sanders e Liancai Mu publicaram em 2013 o primeiro atlas tridimensional da língua humana [artigo completo aqui].
Os músculos da língua da maioria dos mamíferos são divididos em dois grupos: intrínsecos e extrínsecos. Os extrínsecos têm origem óssea e inserção na língua. Os intrínsecos têm origem e inserção na língua. Existe uma grande diferença funcional entre os músculos extrínsecos e intrínsecos: os extrínsecos modificam a posição da língua na cavidade oral, enquanto os intrínsecos modificam o formato da língua [1].
(Agora um parêntese. Os músculos intrínsecos da língua não se encaixam em nenhuma das três classificações musculares tradicionais, a saber: músculo estriado esquelético, músculo estriado cardíaco e músculo liso. Os músculos intrínsecos da língua são estriados, mas não são esqueléticos, porque não se originam e nem se inserem em nenhum osso do esqueleto. São apenas músculos estriados).
O estudo de Sanders & Mu teve dois grandes objetivos [1]. O primeiro objetivo foi construir um atlas em 3D com a indicação de cada músculo lingual. O segundo objetivo foi produzir reconstruções desses músculos nas três dimensões anatômicas: sagital, coronal e axial (veja as diferenças entre cada tipo de corte na Fig. 1, pág. 1104).
O atlas foi construído através de imagens axiais em série de um cadáver congelado de uma mulher de 59 anos. Foram utilizadas 70 imagens deste cadáver; cada imagem resultava de cortes a cada 0,33 mm (ou seja, havia três cortes por milímetro) [1]. Além disso, também foram utilizados cortes maiores (de 1 a 3 mm) de outras três línguas (de um homem de 55 anos, de um homem de 75 anos e de uma mulher de 60 anos) [1].
Os resultados do estudo indicaram quatro músculos intrínsecos e três músculos extrínsecos. O leitor é convidado a explorar todas as ilustrações apresentadas no artigo.
Tendo em vista que a língua humana é única entre os mamíferos, serão apontadas as distinções da língua humana sempre que estes dados estiverem disponíveis.
Músculos intrínsecos da língua [1]
O longitudinal superior é o único músculo ímpar. Todos os demais são pares (direito e esquerdo).
Longitudinal superior
É basicamente este músculo que forma todo o dorso da língua. É também o músculo mais superficial da língua, estando logo abaixo da mucosa do dorso. A Fig. 4A, pág. 1108, ilustra bem este músculo.
É mais largo na região posterior do corpo, estreitando-se conforme se dirige para a ponta da língua. Também se estreita conforme se dirige em direção à base da língua.
Origina-se na base da língua. Insere-se na ponta da língua e no tecido conjuntivo circundante.
É o músculo que mais apresenta tecido conjuntivo entre seus fascículos.
É separado do músculo transverso por uma fina camada de tecido conjuntivo.
A contração do longitudinal superior diminui o comprimento da língua. A diminuição do comprimento simultaneamente causa aumento da largura e da altura da língua.
Se a contração do longitudinal superior for restrita à região da lâmina, a ponta da língua é curvada para cima.
Transverso
Origina-se no septo mediano, que é uma grossa fáscia de tecido conjuntivo na linha média da língua. (A foto que ilustra este texto demonstra claramente a presença do septo mediano: o sulco central, que parece dividir a língua do modelo ao meio, é causado pelo septo mediano).
A partir do septo mediano, o transverso se dirige para as laterais da língua.
Os fascículos superiores se inserem no tecido conjuntivo acima do longitudinal superior e também no tecido conjuntivo das laterais da língua.
Os fascículos inferiores se inserem no tecido conjuntivo acima do longitudinal inferior, do hioglosso e do longitudinal combinado.
Em comparação com outros mamíferos, o transverso humano apresenta maior número de fascículos.
A contração do transverso diminui a largura da língua. A diminuição da largura simultaneamente causa aumento da altura e do comprimento da língua.
Vertical
Este músculo apresenta duas origens. Posteriormente, origina-se na transição entre base e corpo a partir do genioglosso. Lateralmente, origina-se do tecido conjuntivo acima do longitudinal inferior, do hioglosso e do longitudinal combinado.
Seus fascículos atravessam os fascículos do longitudinal superior para se inserir no tecido conjuntivo do dorso da língua.
A contração do vertical diminui a altura da língua. A diminuição da altura simultaneamente causa aumento da largura e do comprimento da língua.
A Fig. 4C, pág. 1108, apresenta uma ilustração combinada do transverso e do vertical.
Longitudinal inferior
Origina-se na base e insere-se na lâmina. Está logo acima da mucosa do ventre da língua. A Fig. 4B, pág. 1108, ilustra bem este músculo.
É um músculo que apresenta duas partes distintas. A parte mais anterior é menor, está situada apenas na lâmina e está orientada de forma paralela ao músculo longitudinal superior. A parte mais posterior se origina no osso hioide e no tecido conjuntivo circundante, estando orientada de forma oblíqua da base à lâmina.
Este músculo está envolvido pelo septo lateral, que é uma fáscia de tecido conjuntivo.
Em comparação com outros mamíferos, o longitudinal inferior humano apresenta menor número de fascículos, sendo de difícil identificação.
A contração do longitudinal inferior como um todo diminui o comprimento da língua. A diminuição do comprimento simultaneamente causa aumento da largura e da altura da língua.
A contração da parte anterior do longitudinal inferior faz com que a ponta da língua curve para baixo. A contração da parte mais posterior do longitudinal inferior causa elevação da base e depressão do corpo da língua.
Músculos extrínsecos da língua [1]
Todos os músculos são pares (direito e esquerdo).
As Fig. 3H e 3I, pág. 1107, exemplificam didaticamente os três músculos extrínsecos e a relação espacial entre eles.
Genioglosso
Está localizado lateralmente à linha média da língua. Lateralmente ao genioglosso, está o longitudinal inferior. Os dois músculos são separados pelo septo paramediano, uma fáscia de tecido conjuntivo.
Está ausente na lâmina. No corpo, há poucos fascículos e eles estão orientados verticalmente. Na base, o número de fascículos aumenta e eles estão orientados horizontalmente. Uma fina camada de tecido conjuntivo separa o genioglosso do corpo do genioglosso da base.
O genioglosso do corpo da língua (fibras oblíquas e verticais) se origina na linha média da mandíbula. Seus fascículos atravessam os fascículos do vertical, do transverso e do longitudinal superior para se inserir no tecido conjuntivo do dorso. A contração dos fascículos mais anteriores ocasiona curvatura para baixo da ponta da língua. A contração dos fascículos mais posteriores deprime o corpo da língua. Além disso, a contração das fibras do genioglosso que estão em torno da linha média da língua faz com que o dorso da língua assuma o formato côncavo.
O genioglosso da base da língua (fibras horizontais) origina-se na mandíbula e insere-se no osso hioide e no tecido conjuntivo circundante. A contração desta parte move a língua e o hioide anteriormente, abrindo a via aérea durante a respiração. O genioglosso é, portanto, o músculo respiratório da língua. Outra forma de descrever a contração do genioglosso é dizer que ele realiza a anteriorização da língua.
Em comparação com outros mamíferos, o genioglosso humano é o músculo que mais difere. O genioglosso humano apresenta maior número de fascículos e se estende para a base.
Hioglosso
O genioglosso e o longitudinal inferior estão localizados medialmente, enquanto o estiloglosso está localizado lateralmente ao hioglosso.
Origina-se do corpo e do corno maior do osso hioide. Na origem, é um músculo fino e de um único fascículo. Mas, conforme se dirige para a língua, separa-se em diversos fascículos.
Os fascículos mais posteriores cursam superiormente e inserem-se na superfície posterior da base da língua. É nesta inserção do hioglosso que irão se originar alguns fascículos do longitudinal superior.
Os fascículos medianos cursam superiormente e se inserem nas margens laterais da língua.
Os fascículos anteriores cursam anteriormente pelas laterais da língua para se inserir no longitudinal combinado.
A contração do hioglosso causa posteriorização e depressão das laterais da língua.
Estiloglosso
É o músculo mais lateral da língua.
Origina-se no processo estiloide do osso temporal.
Os fascículos musculares cursam inferiormente e se inserem na base da língua, fundindo-se com a lateral do hioglosso. Esta é a parte mais posterior do estiloglosso.
Da base da língua, os fascículos musculares cursam anteriormente e se inserem nas laterais da língua. Esta é a parte mais anterior do estiloglosso.
A Fig. 2B, pág. 1106, exemplifica de forma bastante didática as duas partes do estiloglosso.
A contração do estiloglosso ocasiona posteriorização e elevação das laterais da língua.
Outros músculos [1]
Longitudinal combinado
Este não é um músculo único, mas a combinação de outros três músculos na região da lâmina: longitudinal inferior, hioglosso e estiloglosso.
Palatoglosso, condroglosso e glossofaríngeo
Esses músculos se inserem nas laterais da língua, mas não contribuem para o movimento da língua. Eles são mais corretamente compreendidos como músculos faríngeos.
Revisitando as grandes divisões anatômicas da língua
A tabela a seguir retoma as três grandes divisões anatômicas da língua, mas, desta vez, sinalizando quais são os músculos que compõem cada região. A tabela não faz parte do artigo de Sanders & Mu, mas foi elaborada a partir dos dados do artigo.
Lâmina |
Corpo |
Base |
||
Medial |
Lateral |
|||
Longitudinal superior |
X |
X |
X |
|
Transverso |
X |
X |
X |
X |
Vertical |
X |
X |
X |
|
Longitudinal inferior |
X |
X |
X |
|
Genioglosso |
X |
X |
||
Hioglosso |
X |
X |
X |
|
Estiloglosso |
X |
X |
X |
Segundo Sanders & Mu, uma das melhores descrições anatômicas da língua data de 1938 (!): “Observation on the morphology of the human tongue”, feita pelo anatomista egípcio Shafik Abd-El-Marek. Para os leitores que estiverem interessados, o artigo completo encontra-se aqui.
Referências
[1] Sanders, I. & Mu, L. (2013). A three-dimensional atlas of human tongue muscles. The Anatomical Record, 296 (10), 1102-14.
[2] Spence, A. P. (1991). Anatomia humana básica. 2ª ed. São Paulo: Manole.
[3] Figún, M. E. & Garino, R. R. (1994). Anatomia odontológica funcional e aplicada. 3ª ed. São Paulo: Panamericana.
[4] Staubesand, J. (1988). Sobotta: atlas de anatomia humana. 19ª ed. Vol. 1: cabeça, pescoço, membros superiores, pele. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara Koogan.