A língua humana (IV)

dez 15, 2014 | por Sandra Merlo | Fisiologia, Língua humana

Cilindro-2Este texto da série explora os princípios que governam todos os movimentos da língua humana.

Um livro de referência de fisiologia humana [1] não dedica nenhuma seção específica para os movimentos da língua. Buscando a palavra “tongue” no índice são encontradas duas citações:

Tongue,
in articulation, 489
in taste signal transmission, 677-678

Reproduzo abaixo na íntegra o trecho relacionado à participação da língua na articulação da fala (grifos originais dos autores):

ARTICULATION AND RESONANCE. The three major organs of articulation are the lips, tongue, and soft palate. They need not be discussed in detail because we are all familiar with their movements during speech and other vocalizations.
The resonators include the mouth, the nose and associated nasal sinuses, the pharynx, and even the chest cavity. Again, we are all familiar with the resonating qualities of these structures. For instance, the function of the nasal resonators is demonstrated by the change in the quality of the voice when a person has a severe cold that blocks the air passages to these resonators”.

[ARTICULAÇÃO E RESSONÂNCIA. Os três órgãos mais importantes da articulação da fala são os lábios, a língua e o palato mole. Eles não precisam ser discutidos em detalhes, porque todos estamos familiarizados com seus movimentos durante a fala e outras vocalizações.
Os ressonadores incluem a boca, o nariz e os seis nasais, a faringe e até mesmo a caixa torácica. Novamente, todos estamos familiarizados com as características de ressonância dessas estruturas. Por exemplo, a função dos ressonadores nasais pode ser demonstrada pela mudança na qualidade da voz quando uma pessoa está com um resfriado grave, o qual bloqueia as passagens de ar para os ressonadores]. (Tradução minha).

A edição consultada é a 9ª (ano de 1996), mas infelizmente este trecho continua idêntico na 11ª edição do livro (ano de 2006).

Uma digressão (e talvez uma piada): seguindo o raciocínio dos autores, todo o livro de fisiologia seria dispensável, certo? Porque facilmente poderíamos concluir algo como: “O coração é um dos órgãos mais importantes do corpo humano. Ele não precisa ser discutido em detalhes, porque todos estamos familiarizados com seus movimentos de contração e relaxamento durante o repouso e outras atividades diárias. Por exemplo, a função do coração pode ser demonstrada pela mudança na qualidade de vida quando uma pessoa está com uma doença grave, que bloqueia o funcionamento do coração”. (Risos?)

Felizmente os autores que serão citados a seguir não pensam como Guyton & Hall [1] e consideraram que não estamos todos familiarizados com os movimentos da língua durante a fala e a deglutição.

 

Movimentos básicos da língua humana

A língua possui sete movimentos básicos [2] [ver Figura 5 deste artigo, pág. 1109]:

  1. A protrusão é o movimento da língua para frente. O músculo mais importante são os fascículos posteriores do genioglosso.
  2. A retrusão é o movimento da língua para trás. Os músculos mais importantes são o hioglosso e o estiloglosso.
  3. O alongamento é o aumento do comprimento da língua com redução da largura. Os músculos mais importantes são o transverso e o vertical.
  4. O encurtamento é a redução do comprimento da língua com aumento da largura. Os músculos mais importantes são o longitudinal superior e o inferior.
  5. A dorsoflexão é o movimento de arquear a ponta da língua para cima. Os músculos mais importantes são o longitudinal superior e o transverso.
  6. A ventroflexão é o movimento de arquear a ponta da língua para baixo. Os músculos mais importantes são o longitudinal inferior e o transverso.
  7. A retroflexão é o movimento simultâneo de elevação da base, depressão do corpo e elevação da lâmina. O músculo mais importante para a elevação da base é o estiloglosso, para a depressão do corpo são os fascículos verticais do genioglosso e para a elevação da lâmina é o longitudinal superior.

Esses são os padrões básicos de movimento da língua. Durante a deglutição e a fala, esses padrões podem ocorrer de forma isolada ou combinada.

Na seção seguinte, vamos explorar o princípio físico que está por trás de todos os movimentos da língua: a manutenção constante do volume do órgão.

 

A língua humana, um hidróstato muscular

A palavra “hidróstato” é de origem grega, formada a partir de dois radicais: “hydro-” e “-statós”.

  • O radical “hydro-” quer dizer “água” e sempre atua como primeiro elemento no processo de formação de palavras. Exemplos: “hidratação”, “hidrogênio”, “hidroginástica”, “hidrografia”.
  • O radical “-statós” quer dizer “suspenso, parado, estacionário” e sempre atua como segundo elemento no processo de formação de palavras. Exemplos: “reostato”, “termostato”. Literalmente, assim como “reostato” significa “manter a corrente” e “termostato” significa “manter a temperatura”, “hidróstato” significa “manter a água”.

Mas que água? Manter qual água se, na língua, não há água? É porque a língua se comporta como se fosse um fluido de volume constante. Então, a designação “hidróstato muscular” se refere a qualquer órgão muscular cujos movimentos obedeçam ao princípio físico de manutenção de volume constante. Embora haja tecido conjuntivo, vasos sanguíneos e fibras nervosas, esses órgãos são basicamente musculares [3]. Por isso a ênfase no tecido muscular.

Portanto, os movimentos da língua são melhores descritos como um sistema hidráulico do que como uma máquina simples do tipo alavanca. A seguir, vamos explorar os elementos que caracterizam um hidróstato muscular e compreender como esses elementos atuam na língua humana. Os movimentos de alongamento e encurtamento são os mais prototípicos do sistema e, por isso, receberão maior ênfase.

 

1) Geometria cilíndrica

Hidróstatos musculares apresentam o formato geométrico de cilindro [3, 4]. Além da língua, a tromba dos elefantes e os tentáculos de polvos também são exemplos de hidróstatos musculares [3, 4]. Isso mostra que os hidróstatos musculares são estratégias de movimento empregadas em diversos ramos do reino animal.

Em termos matemáticos, um cilindro é um corpo que resulta do movimento completo de um retângulo em torno de um de seus eixos. A altura do retângulo corresponde à altura do cilindro. O comprimento do retângulo corresponde ao raio do cilindro.

Utilizando a língua de quatro adultos humanos entre 50 e 60 anos [5] como parâmetro, o comprimento médio da língua é de 9 cm. A largura varia conforme se trata da lâmina, do corpo ou da base: 3, 6 e 5 cm, respectivamente.

Em relação à musculatura intrínseca da língua humana, as fibras dos músculos longitudinal superior e longitudinal inferior estão orientadas paralelamente ao comprimento da língua (correspondente à altura do cilindro). Desta forma, a contração dos músculos longitudinal superior e inferior reduz o maior eixo da língua, encurtando a língua (diminuindo a altura do cilindro).

Por outro lado, as fibras dos músculos transverso e vertical estão orientadas perpendicularmente ao comprimento da língua e ortogonalmente entre si. Assim, a contração dos músculos transverso e vertical reduz o diâmetro da língua (diminuindo o raio do cilindro).

Uma curiosidade que vai interessar aos fonoaudiólogos: no reino animal, nem todas as línguas são classificadas como intraorais. Há animais que apresentam línguas que são classificadas como extraorais [3]. É o caso dos lacertídeos (como lagartos, lagartixas e camaleões), do pangolim e do equidna-ouriço. Esses animais utilizam a língua para captura dos alimentos e geralmente protruem a língua em mais de 100% do comprimento de repouso. Essas línguas apresentam comprimento muito maior do que a largura (a altura do cilindro é muito maior do que o diâmetro). Por outro lado, línguas intraorais (como a humana) são utilizadas na mastigação e na deglutição, mas não para a captura do alimento em si. São línguas que protruem, no máximo, 50% do comprimento de repouso. São línguas que apresentam maior similaridade entre comprimento e largura (matematicamente, aproximam-se de cilindros equiláteros, nos quais a altura e o diâmetro são iguais). Ou seja, a língua humana faz parte das línguas pouco protruíveis. O máximo que conseguimos é fazer com que a ponta da língua toque na ponta do nariz. Há quem queira ensinar esta habilidade (“How to touch your nose with your tongue”).

 

2) Volume constante

Hidróstatos musculares também são sistemas de volume constante [3, 4]. Assim, a redução de uma dimensão automaticamente aumenta outra dimensão. A Figura 2 deste artigo ilustra bem esta característica.

Quando os músculos longitudinal superior e longitudinal inferior contraem e, portanto, reduzem o comprimento da língua, automaticamente há aumento da largura da língua (ou seja, a redução da altura do cilindro resulta em aumento do diâmetro).

Da mesma forma, quando os músculos transverso e vertical contraem e, portanto, reduzem a largura da língua, automaticamente há aumento do comprimento da língua (ou seja, a redução do diâmetro do cilindro resulta em aumento da altura).

Tendo em vista que o comprimento da língua humana é maior do que sua largura (a altura do cilindro é maior do que o diâmetro) e que é um sistema de volume constante, pequenas mudanças na largura ocasionam grandes mudanças no comprimento [3, 4]. Assim, há um ganho no deslocamento anterior. Uma pequena contração na musculatura transversal e vertical provoca um bom alongamento da língua e, portanto, um impulsionamento em direção aos lábios. Talvez este seja um dos motivos que expliquem a concentração de pontos de articulação na região anterior da boca ([t, d, n, s, z, ∫, Z, r)]. Outro exemplo, os tentáculos das lulas necessitam de apenas 25% de redução no diâmetro para aumentar 80% o comprimento [4].

 

3) Suporte próprio

Os músculos estriados esqueléticos se apoiam em suportes rígidos (ossos do esqueleto). Assim, os ossos fornecem um suporte que estabiliza a musculatura. A contração de uma determinada musculatura movimenta o osso em direção àquela musculatura, enquanto a contração da musculatura oposta (antagonista) faz com que o osso retorne à posição inicial.

A musculatura intrínseca da língua não apresenta suporte ósseo no qual se apoiar e se estabilizar. Mesmo assim, a musculatura da língua não se movimenta de forma caótica e desordenada. O suporte para o movimento é fornecido pelo arranjo tridimensional da musculatura. O fato de os músculos intrínsecos estarem dispostos nas três dimensões do espaço fornece a estabilidade necessária para os movimentos. Assim, a contração de fibras longitudinais é estabilizada por fibras verticais e transversas (e vice-versa). O arqueamento da lâmina é estabilizado pelas fibras do corpo e da base da língua.

No caso da língua humana, as fibras perpendiculares ao maior eixo do órgão são transversais e verticais. Entretanto, estas não são as únicas formas de organização de fibras musculares perpendiculares. As trombas dos elefantes e os tentáculos dos polvos apresentam fibras radiais, ou seja, fibras que partem do centro do órgão e se dirigem à superfície [3]. A língua de lacertídeos (como lagarto e camaleão) e os tentáculos das lulas apresentam fibras circulares, ou seja, fibras que se estendem pela circunferência externa do órgão [3]. A Figura 1 deste artigo esquematiza os arranjos de fibras musculares em hidróstatos musculares.

As fibras longitudinais ao maior eixo do órgão sempre estão localizadas próximas à superfície. Isso ocorre não apenas na língua humana, mas também na língua de outros mamíferos, nos tentáculos de polvos e lulas e nas trombas dos elefantes [3]. A razão pela qual a musculatura longitudinal precisa estar localizada na periferia do órgão é para que seja possível realizar o movimento de arqueamento [3] (no caso da língua humana, dorsiflexão e ventroflexão).

Além da organização tridimensional da musculatura, o tecido conjuntivo, sendo um tecido não contrátil, também limita e dá suporte para a contração da musculatura [4].

 

4) Grande variedade de movimentos

Hidróstatos musculares são capazes de movimentos variados: alongamento-afinamento, encurtamento-alargamento, arqueamento, torção, tensionamento.

Foi descrito “alongamento-afinamento”, porque, para um hidróstato muscular, é impossível alongar sem afinar (porque se trata de um sistema de volume constante). Na prática, porém, o que geralmente ocorre é protrusão-alongamento-afinamento [3]. É este complexo de movimentos que o fonoaudiólogo avalia quando solicita ao paciente para fazer “protrusão em ponta” (“pointed tongue”).

Da mesma forma, foi dito “encurtamento-alargamento”, porque, para um hidróstato muscular, é impossível encurtar sem alargar. Entretanto, na prática, geralmente o que ocorre é retrusão-encurtamento-alargamento [3].

Também é possível haver arqueamentos variados. No caso da língua humana, é possível haver arqueamento superior ou inferior da lâmina. No caso da dorsiflexão, ocorre contração do longitudinal superior na região da lâmina (que ocasiona leve diminuição de comprimento) com contração simultânea do transverso (que impede o alargamento) [3].

No caso da ventroflexão, ocorre contração do longitudinal inferior na região da lâmina com contração simultânea do transverso. Na foto abaixo, a garotinha combina os movimentos de protrusão e ventroflexão.

Baby girl with lick sticking out

 

Outra variante é o arqueamento das laterais da língua humana. Para o canolamento (“tongue rolling”), é necessária contração dos músculos transverso e vertical (o que ocasiona redução do diâmetro) com contração simultânea do longitudinal (que impede o alongamento). Veja exemplo aqui.

A língua humana geralmente não é capaz do movimento de torção (“tongue twisting”). Poucas são as pessoas que conseguem torcer a língua para a direita ou para a esquerda. Na foto abaixo, a garotinha faz a torção da língua para a direita. Este não é um movimento utilizado na mastigação, na deglutição ou na fala. Por isso, a capacidade de realizar este movimento não se constitui uma vantagem evolutiva. Para realizar movimentos de torção, é necessário que o órgão apresente fibras musculares de orientação oblíqua (helicoidal) [3, 4].

Torção de língua - tongue twisting-2

 

O tensionamento, por sua vez, é ocasionado pela contração simultânea dos músculos das três dimensões [3].

Também é comum avaliarmos na prática clínica os movimentos de lateralização da língua, rotação da língua no vestíbulo bucal, elevação de toda a língua até o palato duro, vibração continuada da língua.

Além desses movimentos, alguns indivíduos também conseguem dobrar a língua sobre si mesma (“tongue folding”) e outros, ainda, conseguem fazer o trevo de quatro folhas (“clover-leaf tongue”).

Se houvesse um concurso de movimentos de língua, acho que a vencedora seria a moça da foto abaixo. A imagem do quadrante superior esquerdo corresponde ao movimento de dobrar a língua. A imagem do quadrante inferior direito corresponde ao trevo. Não sei o nome dos outros dois movimentos.

Movimentos de língua

 

Como é possível perceber, a variedade de movimentos que um hidróstato muscular é capaz de produzir é muito maior do que de um sistema muscular esquelético. Além disso, nos hidróstatos musculares, os movimentos podem ocorrer em qualquer região ao longo da extensão do órgão (em um sistema muscular esquelético, os movimentos ocorrem apenas em torno da articulação entre os ossos) [4]. Assim, os órgãos que se comportam como hidróstatos musculares (como línguas de vertebrados, tentáculos de polvos e lulas, trombas de elefantes) são órgãos que necessitam executar uma grande variedade de movimentos, não podendo estar restritos por sistemas ósseos.

 

 

Referências

[1] Guyton, A. C. & Hall, J. E. (1996). Pulmonary ventilation. In: Textbook of medical physiology (pp. 477-489). 9th ed. Philadelphia: W. B. Saunders Co.

[2] Sanders, I. & Mu, L. (2013). A three-dimensional atlas of human tongue muscles. The Anatomical Record, 296 (10), 1102-14. [Artigo na íntegra aqui].

[3] Kier, W. M. & Smith, K. K. (1985). Tongues, tentacles, and trunks: the biomechanics of movement in muscular-hydrostats. Zoological Journal of the Linnean Society, 83,307-324. [Artigo na íntegra aqui].

[4] Kier, W. M. (2012). The diversity of hydrostatic skeletons. The Journal of Experimental Biology, 215, 1247-1257. [Artigo na íntegra aqui].

[5] Sanders, I. et al. (2013). The human tongue slows down to speak: muscle fibers of the human tongue. The Anatomical Record, 296 (10): 1615-27. [Artigo na íntegra aqui].