A língua humana (IX)

jul 06, 2015 | por Sandra Merlo | Anatomia, Fisiologia, Língua humana

SNC-2Os dois textos anteriores abordaram o comando neural inicial e final dos movimentos da língua. Este texto, mais abrangente, aborda as múltiplas vias responsáveis pelos movimentos da língua, através da análise de um artigo de neuroimagem funcional.

 

Comandos corticais e subcorticais dos movimentos da língua humana

O fisiologista inglês Douglas Corfield e colaboradores publicaram um artigo sobre o controle cortical e subcortical dos movimentos da língua humana [artigo na íntegra disponível aqui]. O artigo publicado em 1999, há mais de quinze anos, é referência na área. Os dados relatados abaixo se referem ao artigo, exceto quando for expresso o contrário.

Participaram do estudo oito adultos destros, entre 24 e 47 anos, de ambos os sexos.

Para obtenção das imagens, foi utilizada ressonância magnética funcional (fRMI, “functional magnetic resonance imaging”) associada a variações de concentração de oxigênio no sangue (BOLD, “blood oxygen level dependent”). Quando um determinado grupo de neurônios é ativado, ocorre redução na concentração de desoxiemoglobina nos vasos sanguíneos que irrigam aquele grupo de neurônios. A técnica BOLD-fMRI capta reduções na concentração sanguínea de desoxiemoglobina. O equipamento utilizado no estudo era capaz de produzir voxels com resolução espacial de 3 mm.

Um dos maiores interesses no estudo era captar a ativação do núcleo do hipoglosso no bulbo. Uma grande dificuldade para se detectar a ativação do núcleo do hipoglosso é a ativação simultânea de núcleos bulbares relativos à atividade respiratória e cardíaca. Isso faz com que o imageamento do bulbo seja mais problemático quando comparado a outras regiões encefálicas. No estudo realizado, metade dos sujeitos também foi monitorada com eletrocardiografia e pneumografia. Os dados cardíacos e respiratórios e filtros específicos aplicados às neuroimagens foram utilizados para amenizar a ativação bulbar relativa às funções cardíaca e respiratória, na tentativa de isolar a ativação do núcleo do hipoglosso.

No protocolo de estudo, os sujeitos foram orientados a elevar a língua no interior da cavidade oral, de forma que a ponta tocasse a face lingual dos incisivos centrais superiores e o corpo tocasse o palato duro. Na condição controle, este era o único movimento. Na condição experimental, os sujeitos realizaram contrações sucessivas da musculatura lingual, ao ritmo de uma por segundo. Os sujeitos treinaram os movimentos antes de entrar no scanner para que fossem realizados com o mínimo de ativação de músculos mandibulares, a fim de minimizar a ativação de áreas encefálicas relativas a esses músculos.

Para a coleta dos dados de neuroimagem, os sujeitos elevaram e contraíram ritmicamente a língua durante 31 segundos; em seguida, mantiveram-na apenas elevada por outros 31 segundos. Esta sequência de elevação-contração e apenas elevação foi repetida 12 vezes para a obtenção de 128 imagens de todo o encéfalo para cada sujeito.

Comparado ao movimento de apenas elevação, o movimento de elevação e contração da língua foi associado à ativação bilateral das seguintes áreas (ver Fig. 1 do artigo):

  1. Região lateral inferior do córtex somatossensorial primário, compatível com a região de representação da língua. O córtex somatossensorial primário localiza-se no giro pós-central e está relacionado à sensibilidade geral de todo o corpo. Da mesma forma que no córtex motor primário, a extensão de representação depende do grau de refinamento da sensibilidade de uma determinada região. Sendo assim, a língua é uma das regiões com maior representação. A ativação desta região está relacionada com a sensibilidade geral da língua durante a execução do movimento solicitado no estudo. Nota: a sensibilidade geral dos dois terços anteriores da língua é mediada pelo nervo trigêmeo, cujo núcleo sensitivo principal situa-se na ponte. Não foi detectada ativação deste núcleo no estudo.
  2. Região lateral inferior do córtex motor primário, com extensão para a região superior do opérculo e para a ínsula. A representação dos músculos da língua no córtex motor primário localiza-se na região lateral inferior do giro pré-central, próximo à fissura lateral (ver texto anterior desta série). A ativação desta região está relacionada ao início do movimento solicitado no estudo.
  3. Área motora suplementar, com extensão para o giro do cíngulo. A área motora suplementar localiza-se no lobo frontal, anteriormente ao córtex motor primário. A ativação desta região está relacionada ao planejamento do movimento solicitado no estudo. Importante destacar que a área motora suplementar planeja movimentos a partir de pistas internas, ou seja, quando são autoiniciados [2]. Diferente do córtex pré-motor lateral, também localizado anteriormente ao córtex motor primário, que planeja movimentos a partir de pistas externas, ou seja, movimentos heteroiniciados [2]. No estudo realizado, os sujeitos foram instruídos a elevar e contrair a musculatura da língua, que são movimentos autoiniciados. Se os sujeitos tivessem sido instruídos a sincronizar o movimento da língua com um estímulo externo (por exemplo, com as batidas de um metrônomo), teria sido ativado o córtex pré-motor lateral e não a área motora suplementar [cf. 2].
  4. Putâmen, um dos núcleos da base. O putâmen, junto com o caudado, é a via de entrada dos núcleos da base [3]. O putâmen recebe aferências do córtex somatossensorial primário e da área motora suplementar [3]. A função principal dos núcleos da base é facilitar movimentos já aprendidos através da inibição de movimentos indesejados [3]. Assim, a ativação desta região está relacionada à facilitação dos movimentos pretendidos (elevação e contração da língua) pela inibição de movimentos competitivos. Para maiores informações sobre os núcleos da base, ver “Gagueira e doença de Parkinson (I)”.
  5. Tálamo, cujos núcleos ventral lateral e ventral anterior funcionam como estações intermediárias entre o córtex motor e os núcleos da base. A ativação desta região é posterior à via de saída dos núcleos da base [3].
  6. Cerebelo, estrutura encefálica relacionada à aprendizagem motora e à correção de movimentos. A ativação desta região está relacionada a processos constantes de monitoramento e eventuais correções dos movimentos solicitados no estudo.
  7. Núcleo do hipoglosso, localizado na região póstero-superior do bulbo, ao longo da linha média. O núcleo do hipoglosso não foi ativado em toda sua extensão, mas apenas em parte. Levando em consideração que o núcleo do hipoglosso é organizado de forma somatotópica (ver texto VII desta série), deduz-se que a ativação foi relativa à musculatura utilizada para a contração da lâmina e do corpo da língua. A ativação deste núcleo está relacionada ao comando neural final para os movimentos da língua.

 

Como visto, uma extensa rede neural é necessária para realizar “simples” movimentos de elevação e contração da língua. Disfunções em qualquer uma das vias irão produzir alterações específicas no movimento. Por exemplo, a hipertonia é típica de acometimento dos neurônios motores superiores [2]; a hipotonia é típica de acometimento dos neurônios motores inferiores [2]; movimentos involuntários, diferentes dos movimentos pretendidos, são típicos de acometimento dos núcleos da base; dificuldades de coordenação e aprendizagem motora são acometimentos típicos do cerebelo. Ou seja, a integridade dos movimentos da língua depende da integridade das múltiplas vias neurais necessárias.

 

Referências

[1] Corfield, D. R. et al. (1999). Cortical and subcortical control of tongue movement in humans: a functional neuroimaging study using fMRI. Journal of Applied Physiology, 86, 1468-1477. [Artigo na íntegra disponível aqui].

[2] Purves, D. et al. (Eds). Upper motor neuron control of the brainstem and spinal cord. In: Neuroscience (393-416). 3rd ed. Sunderland: Sinauer.

[3] Barbosa, E. R.; Haddad, M.S. & Gonçalves, M. R. R. (2005). Distúrbios do movimento. In: Nitrini, R. & Bacheschi, L. A. A neurologia que todo médico deve saber (297-321). 2ª ed. São Paulo: Atheneu.