A língua humana (VI)

fev 09, 2015 | por Sandra Merlo | Fisiologia, Língua humana

Língua-alimentação-2Este texto compara os movimentos da língua durante a fala e a alimentação. Existe a hipótese de que os movimentos da fala evoluíram a partir dos movimentos de mastigação e deglutição. Para isso, vou utilizar um artigo de revisão escrito pela dentista e anatomista Karen Hiiemae em conjunto com Jeffrey Palmer (artigo na íntegra disponível aqui) [1].

 

Visualização da língua por videofluoroscopia

Para o modelamento dos movimentos de língua durante a fala, um método importante e muito usado é o ultrassom (ver texto anterior desta série). O ultrassom exige que o movimento seja sustentado por certo tempo (10 s, por exemplo) para que as dezenas de imagens em sequência possam ser captadas. A necessidade de movimento sustentado impõe problemas para o uso desta ferramenta no estudo dos movimentos de língua durante a alimentação. Assim, o método mais utilizado no estudo da alimentação é a videofluoroscopia (ou videodeglutograma).

A videofluoroscopia é utilizada no estudo da alimentação desde a década de 1980 [1]. As imagens são captadas por ondas eletromagnéticas, especificamente raios-X [1, 3]. O uso não se restringe à pesquisa, mas também é uma ferramenta clínica para diagnóstico radiológico de disfagia [3].

Durante o exame clínico, a intenção é acompanhar o trajeto do alimento, principalmente para verificar se ocorre aspiração (ou seja, entrada de alimento na via aérea). Para isso, o sujeito mastiga e/ou engole alimentos nos quais foi injetado um contraste radioativo (como o sulfato de bário). É necessário utilizar um contraste, porque é esse elemento que irá absorver os raios-X [2]. Segue abaixo um vídeo explicativo sobre a videofluoroscopia com demonstração das imagens produzidas (em inglês):

 

No caso da pesquisa dos movimentos de língua, a intenção não é acompanhar o fluxo do alimento, mas a língua em si. Então não é necessário injetar contraste nos alimentos, porque não são eles que precisam estar realçados. Neste caso, pequenos discos de chumbo são cimentados na língua e em alguns dentes das arcadas superior e inferior [1]. As imagens por raios-X irão captar os movimentos dos discos de chumbo e os movimentos da língua são reconstruídos a partir desses dados.

A videofluoroscopia é adequada para analisar movimentos rápidos como os da mastigação e da deglutição, porque produz dezenas a centenas de quadros por segundo [1, 3]. O ultrassom produz poucas imagens por segundo, porque a velocidade do som é pequena (344 m/s no ar a 20º C). Por outro lado, os raios-X apresentam velocidade muito maior, porque são ondas eletromagnéticas (3 x 108 m/s no vácuo) [2].

 

Movimentos da língua durante a mastigação e a deglutição

O processo de mastigação e deglutição de alimentos sólidos pode ser descrito em quatro fases. Os dados sintetizados a seguir foram retirados do artigo [1].

 

Fase 1: transporte inicial

O primeiro movimento é a abertura da boca, ocasionada pelo abaixamento da mandíbula. A abertura da boca não é apenas um movimento automático: exige um cálculo mental, porque o sujeito precisa adaptar o grau adequado de abaixamento mandibular ao volume do alimento. Isso é uma atividade aprendida, tanto que crianças pequenas podem errar no grau de abertura da boca.

Depois da abertura da boca, o alimento é posicionado sobre a língua. Neste momento, a língua está posicionada no assoalho bucal e assume um formato característico: a lâmina e o corpo formam uma depressão central, enquanto as laterais e a raiz se elevam. Este movimento é muito similar ao padrão de concavidade completa utilizada para a vogal [ɛ] e para a consoante [s].

Após o posicionamento do alimento sobre a língua, a mandíbula começa a se elevar, fechando a boca.

 

Fase 2: processamento

Então se inicia o ciclo mastigatório propriamente dito.

A elevação da mandíbula também eleva a língua e a posiciona levemente para trás. O movimento para trás da língua coloca o alimento sobre os dentes molares. É neste momento que podem ocorrer doloridas mordidas na língua: em macacos, foi verificado que a língua para de se movimentar quando as arcadas superior e inferior estão prestes a ocluir, prensando apenas o alimento sobre os molares. O movimento de elevação da mandíbula com consequente elevação e retração da língua corresponde ao período de fechamento do ciclo mastigatório. O grau de elevação da mandíbula e da língua é maior no período de fechamento do ciclo mastigatório do que na fala: as arcadas dentárias chegam à oclusão total, o que nunca ocorre na fala.

Em seguida a mandíbula volta a abaixar, o que movimenta a língua para frente e depois para baixo. O movimento de abaixamento da mandíbula com consequente anteriorização e abaixamento da língua corresponde ao período de abertura do ciclo mastigatório. O grau de abaixamento da mandíbula e da língua também é maior no período de abertura do ciclo mastigatório do que na fala.

Os períodos de abertura e fechamento do ciclo mastigatório se intercalam até que o alimento esteja satisfatoriamente triturado e pronto para a deglutição. O período de fechamento é diretamente responsável pela trituração do alimento, enquanto o período de abertura posiciona e reposiciona o alimento sobre os dentes molares. O posicionamento adequado do alimento sobre os molares também é feito com a ação do músculo bucinador: enquanto a língua empurra o alimento lateralmente, o bucinador empurra o alimento medialmente. É a ação conjunta das laterais da língua e do bucinador que faz com que o alimento seja mantido sobre os molares.

Conforme a trituração do alimento aumenta, a posição da língua vai se modificando. No período de abertura, a língua se posiciona cada vez mais para cima, próxima ao palato duro. Esse movimento tem o efeito de posicionar o alimento mais anteriormente.

O processamento do alimento progressivamente gera menor amplitude de movimentos, porque menos força vai sendo necessária.

 

Fase 3: transporte final

Quando o alimento está finalmente triturado, o bolo alimentar é confinado na superfície da língua. A ponta e as laterais da língua se elevam e tocam as margens externas do palato duro. A língua também se eleva na intersecção entre palato duro e mole, impedindo engasgos pela queda prematura do bolo alimentar para a faringe. Esse movimento de elevação das regiões anterior e posterior da língua, com a existência de uma concavidade central é semelhante ao padrão de dupla elevação utilizado na produção da consoante [l].

 

Fase 4: deglutição

A fase oral da deglutição consiste no movimento do bolo alimentar da cavidade oral para a faringe. A língua vai progressivamente empurrando o alimento para trás devido à elevação sequencial de regiões da lâmina e do corpo. A língua em si não se movimenta para trás: são os movimentos consecutivos de elevação da lâmina ao corpo que encaminham o alimento para a faringe. Esse movimento de elevação das regiões anteriores da língua é similar ao padrão de elevação frontal utilizado para vogais como [i] e consoantes como [n].

A fase faríngea da deglutição consiste na chegada do bolo alimentar na faringe. Neste momento, é necessário proteger a via aérea. O palato mole se eleva, evitando entrada do bolo no nariz. A epiglote se abaixa, evitando entrada do bolo na laringe. O esfíncter esofágico superior, por outro lado, se abre. A parte posterior da língua se eleva e se posiciona para trás, chegando a tocar as paredes da faringe. Além disso, os músculos constritores da faringe contraem. A elevação e retração da língua e a constrição da faringe empurram o bolo para baixo em direção ao esôfago. O movimento de elevação da língua é similar ao padrão de elevação posterior utilizada para vogais como [ͻ] e para consoantes como [ŋ].

Portanto, as diversas semelhanças sugerem que os movimentos que a língua produz na articulação da fala podem ter evoluído a partir dos movimentos de língua durante a mastigação e a deglutição.

 

Referências

[1] Hiiemae, K. M. & Palmer, J. B. (2003). Tongue movements in feeding and speech. Critical Reviews in Oral Biology & Medicine, 14 (6), 413-429.

[2] Okuno, E.; Caldas, I. & Chow, C. (1982). Raios X. In: Física para ciências biológicas e biomédicas (pp. 49-54). São Paulo: Harper & Row do Brasil.

[3] Costa, M. M. B. (2010). Videofluoroscopia: método radiológico indispensável para a prática médica. Radiologia Brasileira, 43 (2), p. VII-VIII.