O texto anterior abordou o comando neural final dos movimentos da língua, via núcleo e nervo hipoglosso. Este texto aborda o comando neural inicial dos movimentos da língua, via córtex motor primário e trato corticobulbar.
Córtex motor primário
O córtex cerebral possui representações de todos os grupos musculares do corpo. Essas representações estão no córtex motor primário, localizado no giro pré-central do lobo frontal [1, 2]. O giro pré-central é assim chamado porque se localiza imediatamente antes do sulco central (imagem aqui).
Na região medial do giro, estão localizadas representações de grupos musculares dos pés, do tornozelo e do joelho. Na região lateral superior do giro, estão as representações de grupos musculares do quadril, do tronco, do ombro, do cotovelo e do pulso. Na região lateral média, estão localizadas as representações dos músculos das mãos. E na região lateral inferior, estão localizadas as representações dos músculos do pescoço e da cabeça, inclusive os da língua. Imagem aqui. Essa representação é frequentemente chamada de “homúnculo cerebral” [2].
Quanto maior for a precisão necessária para os movimentos, maior será a representação de um grupo de músculos no giro pré-central [2]. É por isso que o tamanho das representações “não respeita” o tamanho dos músculos corporais. Isso faz com que os músculos da cabeça, do pescoço e das mãos ocupem dois terços (!) de todo o córtex motor primário, sendo que a representação dos músculos da língua é uma das maiores. Imagem aqui. Não são músculos individuais que estão representados no córtex motor primário, mas grupos musculares, responsáveis por padrões distintos de movimentos [2].
O córtex motor primário é responsável por iniciar movimentos voluntários, inclusive os que envolvem a língua [2]. A premissa de que esses neurônios são responsáveis pelo início do movimento decorre do fato de eles começarem a disparar logo antes do início efetivo do movimento. Quanto maior a frequência de disparo desses neurônios, maior será a força de contração muscular resultante [2].
Algumas notas históricas
Quem primeiro sugeriu, ainda no século XIX, que o córtex cerebral possui uma representação completa dos músculos corporais foi o neurologista britânico John Hughlings Jackson [2, 3]. Essa representação é chamada de somatotópica (do grego, “soma” = corpo e “topos” = lugar). O desenvolvimento da noção de somatotopia ocorreu ao longo de todo um ano de trabalho de Hughlings Jackson, entre dezembro 1867 e dezembro de 1868, devido a observações clínicas sistemáticas de crises epilépticas unilaterais. Foi a progressão ordenada dos movimentos involuntários originados pelas crises epilépticas que sugeriu a Hughlings Jackson que o córtex motor humano era organizado somatotopicamente [3].
Em 1901, o neurocirurgião inglês Charles Scott Sherrington e o neurocirurgião americano Harvey William Cushing publicaram o mapeamento do córtex motor de gorilas e chimpanzés, os primatas mais próximos aos seres humanos [2, 4]. Esse mapeamento foi construído com o uso de estimulação elétrica intracraniana. Pelo seu trabalho na área de neurofisiologia, Sherrington recebeu o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1932.
Em 1937, o neurocirurgião americano Wilder Graves Penfield, aluno de Sherrington, demonstrou a existência do mesmo mapa motor em seres humanos. O mapeamento foi construído com o uso de estimulação elétrica intracraniana em pacientes neurocirúrgicos: o artigo publicado por Penfield & Edwin Boldrey tornou-se um clássico na neurociência [2]. Ao longo de vinte anos, Penfield coletou dados sobre a organização cortical de mais de 400 pacientes neurocirúrgicos [2]. Em 1950, o trabalho produziu um livro clássico (“The cerebral cortex of man”, em conjunto com Theodore Rasmussen), com o mapeamento detalhado de todo o córtex cerebral, inclusive das áreas relacionadas à fala. Devido à sua importância no mapeamento do córtex cerebral humano, o homúnculo cerebral é também chamado de “homúnculo de Penfield”.
Trato corticobulbar
O giro pré-central é formado por corpos celulares de formato piramidal [1]. Por isso, diz-se que esses corpos celulares e os axônios que deles se originam formam o chamado “trato piramidal”. Para descer ao longo do SNC, as fibras do trato piramidal se agrupam em dois tratos distintos: o corticonuclear (que se dirige para os núcleos dos nervos cranianos motores do tronco encefálico) e o corticoespinhal (que se dirige para a medula espinhal) [1, 2].
No prosencéfalo, o agrupamento descendente de fibras é chamado de “cápsula interna” [2]. A cápsula interna desce entre o tálamo (medialmente) e os núcleos da base (lateralmente). Imagem aqui. Costuma se dividir em três porções: ramo anterior, joelho e ramo posterior. Cada porção contém fibras que se dirigem para regiões específicas do SNC. As fibras que irão se dirigir para os núcleos dos nervos cranianos motores estão localizadas no joelho da cápsula interna. No trato corticonuclear, também existem mais dois agrupamentos de fibras: as corticopontinas (que se dirigem para núcleos da ponte) e as corticobulbares (que se dirigem para núcleos do bulbo, como é o caso do hipoglosso).
No mesencéfalo, o agrupamento descendente das fibras é chamado de “pedúnculo cerebral” [2]. Na ponte, a descida das fibras continua, embora sem um nome específico. No bulbo, o agrupamento descendente das fibras é chamado de “pirâmides bulbares” [2] (ver texto anterior desta série). Ao chegar no bulbo, cada fibra do trato piramidal inerva diversos neurônios [2].
O trato piramidal faz parte do grupo de “neurônios motores superiores”, enquanto o hipoglosso faz parte do grupo de “neurônios motores inferiores” [2]. Importante salientar que os movimentos da língua não são executados apenas pelo trato piramidal e pelo hipoglosso, ou seja, não é uma via com apenas duas estações. Outras estruturas (como o córtex sensorial primário, o córtex pré-motor, os núcleos da base e o cerebelo) auxiliam no planejamento, no início e no monitoramento dos movimentos [2].
Referências
[1] Spence, A. P. (1991). Sistema nervoso central. In: Anatomia humana básica (pp. 379-417). 2ª ed. São Paulo: Manole.
[2] Purves, D. et al. (Eds). Upper motor neuron control of the brainstem and spinal cord. In: Neuroscience (393-416). 3rd ed. Sunderland: Sinauer.
[3] York III, G. K. & David A. Steinberg, D. A. (2011). Hughlings Jackson’s neurological ideas. Brain, 134, 3106-13 [artigo na íntegra disponível aqui].
[4] Sabbatini, R. M. E. (2004). A história da estimulação elétrica cerebral. Revista Cérebro & Mente. Disponível aqui.