Eletroterapia e configuração da corrente elétrica

jun 02, 2014 | por Sandra Merlo | Eletroterapia, Gagueira

ElectrodesOs aparelhos de eletroterapia não invasiva apresentam diversos parâmetros de configuração. A configuração depende do objetivo a ser atingido. Neste texto, vamos discutir quais são esses parâmetros e como eles se relacionam com a fisiologia.

 

Eletrodos de superfície

São a interface entre o aparelho de eletroterapia e os tecidos humanos. É através dos eletrodos que a corrente elétrica produzida pelo aparelho será transmitida aos tecidos [1, 3].

Existem diversos tipos de eletrodos: de superfície, internos ou implantados. Na eletroterapia não invasiva, são utilizados eletrodos de superfície, os quais são fixados diretamente sobre a pele do paciente [3]. Também existem diversos tipos de eletrodos de superfície: em forma de caneta, para iontoforese, de borracha, de borracha autoadesivo, de metal, de metal autoadesivo [3]. Eletrodos de metal são mais eficientes para transmitir corrente elétrica, mas são menos maleáveis e, portanto, mais difíceis de se adaptarem ao corpo [1]. Para o uso que se faz na fonoaudiologia, que requer o posicionamento de eletrodos na face e no pescoço, eletrodos de borracha são mais indicados, porque se adaptam mais facilmente às irregularidades dessas regiões.

É necessário utilizar um meio que facilite a passagem da corrente elétrica do eletrodo para os tecidos humanos [1, 3]. No caso dos eletrodos de borracha, é utilizado gel condutor. Existem duas possibilidades: colocar gel no eletrodo e fixá-lo com fita adesiva ou utilizar eletrodos que já vem com gel condutor e são autoadesivos [1, 3] (como os que ilustram este texto). Para aplicação em face e pescoço, eletrodos autoadesivos são mais confortáveis e mais seguros, embora de custo mais elevado. São mais seguros porque o gel não tenderá a escorrer e a perda de adesão é menos provável, principalmente no caso de o paciente praticar exercícios em conjunto com a eletroestimulação.

Os eletrodos também apresentam formatos (redondos, quadrados ou retangulares) e tamanhos diferentes. O formato e o tamanho do eletrodo devem ser escolhidos de acordo com a área a ser estimulada [1, 3].

Importante lembrar que a área do eletrodo afeta a densidade da corrente [1, 3]. Quanto menor o eletrodo, maior a densidade da corrente e maior a probabilidade de queimaduras. A intensidade máxima de corrente que pode ser aplicada é de 2mA/cm2. Por exemplo, um eletrodo com 3 cm de largura e 4 cm de altura apresenta 12 cm2 de área e a intensidade máxima que corrente que pode ser transmitida é de 24 mA.

A adesão dos eletrodos à pele deve ser bem feita e checada periodicamente durante o procedimento. Se a adesão dos eletrodos se perde, a densidade de corrente aumenta sobre os pontos dos eletrodos que ainda mantêm contato com a pele, podendo ocasionar queimaduras localizadas [1].

Antes de fixar os eletrodos, é necessário limpar a pele a fim de retirar substâncias isolantes (como gordura) que estejam sobre ela [1]. Quanto mais higienizada estiver a pele, menor será a resistência à passagem da corrente e menor será a intensidade utilizada.

 

Polos elétricos

Conforme discutido no primeiro texto desta série, corrente elétrica é o movimento ordenado de cargas elétricas em um condutor. O movimento é originado pela diferença na concentração de cargas elétricas entre dois pontos. A diferença de concentração de cargas elétricas é geralmente chamada de diferença de potencial ou tensão (popularmente, “voltagem”). Os dois pontos são chamados de polos. O ponto com maior concentração de cargas é o polo negativo, enquanto o com menor concentração de cargas é o positivo. O fluxo de cargas sempre ocorre do polo negativo para o positivo.

Nos aparelhos de eletroterapia não invasiva, o polo negativo é considerado o polo ativo (pois irá doar elétrons) e é representado pela cor preta [1]. O polo positivo é considerado o polo passivo (pois irá receber elétrons) e é representado pela cor vermelha [1]. Como discutido no segundo texto desta série, é em torno do eletrodo negativo que a despolarização é favorecida. Este é o efeito físico da corrente elétrica: a despolarização de fibras nervosas e/ou musculares.

Entretanto, também há efeitos químicos da corrente elétrica, que serão diferentes de acordo com a polaridade do eletrodo [4].

  • Sob o eletrodo negativo, irão se acumular íons com falta de elétrons, como o íon sódio (Na+). A reação do sódio com a água irá produzir hidróxido de sódio (popularmente, soda cáustica). As reações químicas são: 2Na+ + 2H2O → 2NaOH + H2.
  • Sob o eletrodo positivo, acumularão íons com excesso de elétrons, como o íon cloro (Cl). A reação do cloro com a água irá produzir ácido clorídico (o mesmo ácido do estômago). As reações químicas são: 2Cl + 2H2O → 4HCl + O2.

Assim, sob o eletrodo negativo formam-se bases e sob o eletrodo positivo formam-se ácidos. A formação de bases e ácidos altera o pH local da pele [4]. Devido à mudança de pH, a irrigação sanguínea aumenta, principalmente sob o eletrodo negativo, porque o aumento do pH é mais lesivo para a pele do que a diminuição do pH [4]. Se a mudança de pH for excessiva, o tecido biológico não será capaz de manter a homeostase e ocorrerá queimadura química [4]. A intensidade da corrente, o tempo de aplicação e a reversão da polaridade são medidas importantes para se evitar efeitos lesivos eletroquímicos [4].

 

Intensidade, tensão e resistência elétricas

O conceito de “intensidade” se refere à quantidade de cargas elétricas que transita em um condutor por um período de tempo [2]. Quanto maior a quantidade de cargas, maior a intensidade elétrica.

A intensidade está diretamente relacionada à diferença de potencial entre dois polos, ou seja, à diferença de quantidade de cargas elétricas entre eles [2]. Quanto maior a diferença de potencial (ou tensão) entre eles, maior será o fluxo de cargas elétricas.

A intensidade está inversamente relacionada à resistência do condutor [2]. “Resistência” é a propriedade que qualquer material tem de se opor à passagem da corrente elétrica [1]. Quanto maior for a resistência, menor é o fluxo de cargas e menor é a diferença de potencial entre os polos.

Esses três conceitos são imprescindíveis para a eletroterapia. A pele que não foi adequadamente limpa antes da fixação dos eletrodos apresentará maior quantidade de gordura e sujidades em sua superfície, as quais aumentarão a resistência à passagem da corrente elétrica e dificultarão a adesão dos eletrodos [1]. Nestes casos, para que os efeitos sejam alcançados, será necessário estabelecer uma maior diferença de potencial entre os polos positivo e negativo. Isso é feito com o aumento da intensidade, o que aumenta a probabilidade de queimaduras [1].

A intensidade também está diretamente relacionada ao número de fibras neurais e musculares que são despolarizadas [1]. Quanto maior a intensidade (respeitando-se a densidade de corrente suportada pelo tamanho do eletrodo e o conforto do paciente), maior o número de fibras despolarizadas e, consequentemente, o efeito sensorial e a força de contração muscular [1].

A intensidade do estímulo deve ser regulada gradativamente, de 1 em 1 mA. Subidas e descidas bruscas de intensidade geram sensação de desconforto.

A resistência elétrica varia bastante entre os diversos tecidos biológicos [1, 2]. Tecidos ricos em líquidos e soluções salinas são bons condutores [1, 2]. O sangue, as fibras neurais e as fibras musculares são bons condutores. Por outro lado, a pele e as células adiposas são más condutoras. Como dito anteriormente, uma maneira de reduzir a resistência da pele é limpando sua superfície, com o objetivo de retirar a gordura que está sobre ela. Outra maneira de reduzir a resistência da pele é aumentando sua temperatura [1]. O aumento de temperatura irá dilatar os vasos sanguíneos, aumentando a irrigação da pele. Quanto mais irrigado é um tecido, menor é sua resistência à passagem de corrente.

 

Tipos de correntes elétricas

Na eletroterapia, as correntes são classificadas em contínua, alternada ou pulsada.

A corrente contínua (ou galvânica) é caracterizada por fluxo contínuo de cargas em apenas uma direção [1, 2]. Assim, um polo sempre é o positivo e o outro sempre é o negativo. Essa corrente é necessária quando se deseja efeitos de polaridade (como na iontoforese, que é a aplicação transdérmica de medicamentos) [1, 2].

A corrente alternada é caracterizada por fluxo contínuo de cargas em duas direções [1, 2]. Assim, em um ciclo um dos eletrodos é o positivo e, no próximo ciclo, esse mesmo eletrodo será o negativo. Exemplo deste tipo de corrente é a interferencial, utilizada para tratar dor [2].

A corrente pulsada é caracterizada por fluxo descontínuo de cargas elétricas em uma ou duas direções [1, 2]. Uma série de ondas é separada de outra por um intervalo em que a corrente é nula. Exemplos deste tipo de corrente são a estimulação elétrica nervosa transcutânea (TENS), para tratar dor, e a estimulação elétrica funcional (FES), para condicionamento muscular [1, 2].

 

Onda e pulso

Quando um meio é perturbado, ele foi atingido por uma onda. No caso da eletroterapia não invasiva, inicialmente a pele e as fibras neurais e musculares não estão perturbadas. A injeção de cargas elétricas é uma onda que modifica o estado dos tecidos [1]. Na eletroterapia, o termo “onda” geralmente se refere a uma única perturbação, que é descrita em termos de forma, fase e simetria (exemplo: onda retangular, bifásica, simétrica). Por outro lado, o termo “pulso” geralmente se refere a um conjunto de ondas separado de outro conjunto de ondas por um intervalo em que a intensidade da corrente elétrica é zero [3]. A onda e o pulso elétrico podem ser configurados de diversas maneiras.

 

Forma

A introdução de cargas elétricas nos tecidos pode ocorrer de diversas formas:

  • A intensidade pode subir lentamente até atingir seu pico quando, então, passa a descer lentamente. É uma onda senoidal ou triangular.
  • A intensidade pode iniciar diretamente em seu pico, manter-se nele por um tempo para, então, cessar. É uma onda quadrada ou retangular.
  • A intensidade pode iniciar diretamente em seu pico e, então, descer lentamente. É uma onda dente de serra.

Formas de ondas que sobem gradualmente até o pico de estimulação costumam ser mais confortáveis para o paciente e simulam melhor o aumento gradativo de força muscular que ocorre na motricidade voluntária [1, 3].

 

Duração

Uma onda também pode apresentar durações diferentes. O conceito de duração é muito importante em eletroterapia não invasiva, porque está diretamente relacionado ao tipo de fibras neurais e musculares que serão estimuladas. Pulsos com duração de até 200 μs quase não estimulam fibras neurais de pressão profunda, tato grosseiro, temperatura e dor (fibras Aδ e C), sendo mais agradáveis para o paciente [1]. Fibras musculares denervadas necessitam de pulsos com duração acima de 1 ms [1]. Fibras neurais lesionadas necessitam de pulsos ainda maiores, com duração acima de 20 ms [1].

 

Fase

Outro conceito importante relacionado à onda é sua fase. A fase se refere à direção do fluxo elétrico.

  • Se o fluxo ocorre em somente uma direção, a onda é monofásica. Na representação gráfica, só haverá a parte positiva da onda. Se a onda é monofásica, um eletrodo sempre é o positivo e o outro sempre é o negativo. Neste caso, a corrente é chamada de polarizada e deve-se ter cuidado com os efeitos químicos de um polo ser sempre o positivo e o outro sempre o negativo.
  • Se o fluxo ocorre em duas direções, a onda é bifásica. Na representação gráfica, haverá a parte positiva e a negativa da onda.

Se a onda é bifásica, as fases podem ser simétricas ou assimétricas. Quando a forma de onda é a mesma nas duas fases, a onda é simétrica [1, 3]. Quando a forma de onda é diferente nas duas fases, a onda é assimétrica (exemplo: forma de onda quadrada na parte positiva e senoidal na parte negativa). Se a onda é bifásica, as fases também podem ser balanceadas ou desbalanceadas [1, 3]. Se a intensidade da corrente é igual nas duas fases, a onda é balanceada. Se a intensidade de corrente é maior em uma das fases, a onda é desbalanceada. Se a onda é bifásica simétrica e balanceada não há efeitos de polaridade nos tecidos [1].

 

Frequência

O conceito de frequência se refere ao número de pulsos por segundo. Dependendo do valor, a frequência de disparo das fibras será maior ou menor.

São consideradas como baixa frequência, pulsos de 1 a 1.000 Hz, utilizadas para induzir contração muscular ou analgesia [3]. Importante salientar que frequências de até 20 Hz estimulam fibras musculares tipo I, que são fibras com velocidade mais lenta de contração, que geram menos tensão muscular e que são mais resistentes à fadiga [1]. Por outro lado, a partir de 100 Hz, são estimuladas as fibras musculares tipo II, que são fibras com velocidade mais rápida de contração, que geram maior tensão muscular e que são menos resistentes à fadiga [1]. Na próxima série do blog, discutiremos em detalhes os tipos de fibras musculares e as especificidades dos arranjos das fibras nos músculos relacionados à fala (tanto em seres humanos quanto em outras espécies).

O que é importante assinalar neste momento é que a frequência da estimulação elétrica pode ser utilizada para modificar o tipo de fibra muscular. É a estimulação da fibra neural que faz uma fibra muscular ser lenta ou rápida. A eletroestimulação de baixa frequência mimetiza o padrão lento e a eletroestimulação de alta frequência mimetizam o padrão rápido de disparo das fibras neurais. Assim, se a musculatura está tensionada e o objetivo é o relaxamento, a estimulação de baixa frequência é indicada. Se a musculatura está flácida e o objetivo é o fortalecimento, a estimulação de alta frequência é indicada. A repetição de estimulação elétrica interfere na concentração de íons de cálcio nas fibras musculares. É o cálcio que auxilia na transição de um tipo de fibra muscular para outro.

 

Rampa

Ainda outro conceito é o de rampa, que se refere aos tempos de subida (rise time) e de descida (decay time) do pulso de ondas. Tempos graduais de subida e de descida permitem contração e relaxamento de um número progressivamente maior e menor de fibras musculares, respectivamente, gerando maior conforto durante a eletroestimulação [1, 3]. A configuração dos tempos de subida e descida depende do objetivo [1]. Se o objetivo é o aumento de força muscular, o tempo de subida deve ser maior do que o de descida. Por outro lado, se o objetivo é a redução da força muscular, o tempo de descida deve ser maior do que o de subida.

 

Ciclo de trabalho

Ainda outro conceito relacionado ao pulso de ondas é o ciclo de trabalho. É a relação atividade-repouso, ou seja, entre o tempo em que a corrente não é zero e o tempo em que a corrente é zero [1, 3]. O tempo on é o da contração muscular, enquanto o off é o do relaxamento. É um parâmetro importante no controle da fadiga. Um ciclo de 15% (15% on e 85% off) é indicado para musculaturas menos resistentes à fadiga, um ciclo de 25% para musculaturas intermediárias e um ciclo de 50% para musculaturas resistentes à fadiga.

 

Pelo exposto, fica claro que a configuração dos parâmetros de eletroterapia não invasiva é complexa. É necessário que o profissional tenha clareza de quais são os objetivos clínicos e de como utilizar a corrente elétrica para produzir esses efeitos.

 

Referências

 

[1] Cisneros, L. L. et al. (2006). Conceitos básicos em eletroterapia e sua aplicação na prática clínica. In: Cisneros, L. L. & Salgado, A. H. I. Guia de eletroterapia (pp. 35-45). Belo Horizonte: Coopmed Editora Médica.

[2] Robinson, A. J. (2010). Conceitos básicos em eletricidade e terminologia contemporânea na eletroterapia. In: Robinson, A. J. & Snyder-Mackler, L. Eletrofisiologia clínica: eletroterapia e teste eletrofisiológico (pp. 15-40). 3ª ed. Porto Alegre: Artmed.

[3] Robinson, A. J. (2010). Instrumentação para eletroterapia. In: Robinson, A. J. & Snyder-Mackler, L. Eletrofisiologia clínica: eletroterapia e teste eletrofisiológico (pp. 41-83). 3ª ed. Porto Alegre: Artmed.

[4] Soki, E. A. et al. (2006). Corrente elétrica e os tecidos biológicos. In: Cisneros, L. L. & Salgado, A. H. I. Guia de eletroterapia (pp. 27-33). Belo Horizonte: Coopmed Editora Médica.