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Fonologia e fluência da fala

Crianças com desvios fonológicos podem apresentar maior número de hesitações durante a fala, o que sugere que elas estão tentando ajustar a produção.

Neste texto, discuto relações da fonologia com a fluência. A pergunta norteadora é: “Crianças com alteração fonológica apresentam padrões diferentes de fluência?”

 

Hesitações em crianças com e sem alteração fonológica

Um estudo realizado por Larissa Berti & Viviane Marino analisou a ocorrência de hesitações em crianças com e sem alteração fonológica.

A alteração fonológica apresentada relacionava-se à produção das fricativas coronais desvozeadas do português brasileiro, ou seja, /s/ e /∫/. Por exemplo, as crianças falavam “chapo” ao invés de “sapo” ou “save” ao invés de “chave”. Importante ressaltar que essas ocorrências são bastante frequentes durante a aquisição do sistema fonológico (*). Entretanto, não são esperadas para além dos 4 anos e meio. Se essas ocorrências persistirem a partir desta idade, considera-se que há retardo na aquisição do sistema fonológico.

Na visão estruturalista, o que essas crianças apresentam seria descrito como “substituição de fonema”. Na visão gerativista, seria descrito como “processo fonológico” de [+ anterior] (caso de /∫/ para /s/) ou [-anterior] (caso de /s/ para /∫/). Na visão da fonologia articulatória, seria descrito como “produção gradiente” devido ao local de constrição.

A fala de seis crianças foi estudada: metade com e metade sem desvio fonológico (pareadas por sexo, idade e escolaridade). As crianças tinham entre 5 e 7 anos.

Foram escolhidos seis dissílabos paroxítonos: padrão /’CVCV/. Os dissílabos contrastavam /s/ e /∫/ em posição de ataque na sílaba tônica. As vogais tônicas foram as vogais extremas do triângulo vocálico: /a, i, u/. As palavras-chave foram: “sapo, Cida, suco; chapa, Chica, chuva”. Foi utilizada a frase-veículo: “Fale [palavra-chave] de novo”. Foram feitas dez repetições de cada palavra-chave, inserida na frase-veículo.

O objetivo primeiro do estudo era comparar o espectro acústico de [s] e [∫] em crianças com desvio fonológico e verificar se a produção apresentava diferenças estatísticas significativas: se não apresentasse, poderia ser dito que as crianças realmente substituíam um fonema pelo outro; se apresentasse, poderia ser dito que a produção é gradiente. Resumidamente, os resultados indicaram que as crianças produziram distinção entre /s/ e /∫/, ou seja, o espectro acústico de [s] era estatisticamente diferente do espectro de [∫]. Porém, as diferenças produzidas não eram percebidas auditivamente. Os resultados, portanto, não sustentaram a hipótese de que houve substituição verdadeira de fonema, mas, sim, produção gradiente.

Entretanto, durante a análise dos dados, foram percebidas diversas hesitações na fala das crianças com desvio fonológico.

Ao todo, foram analisadas 360 frases (metade de cada grupo). A ocorrência de hesitação foi quantitativamente diferente nos dois grupos: 49 frases produzidas pelas crianças com desvio fonológico continham hesitações contra apenas 8 frases produzidas pelas crianças sem desvio fonológico.

Este primeiro achado indicou que a fluência do grupo experimental era diferente da fluência do grupo controle. Mas esta diferença seria realmente devido ao retardo fonológico? Não poderia ser outro tipo de dificuldade? Por exemplo, se as hesitações ocorreram no início da frase, poderia indicar dificuldade para lembrar a frase a ser repetida (memória operacional). Para responder a esta pergunta, as autoras analisaram o local de ocorrência das hesitações nos dois grupos. Encontraram que nada mais, nada menos que 90% das hesitações produzidas pelo grupo experimental ocorreram imediatamente antes ou durante a produção dos fones-alvo (“Fale [‘CVCV] de novo”) contra apenas 20% no grupo controle.

E quais hesitações foram encontradas no grupo experimental? Na maioria das vezes, pausa silenciosa imediatamente antes dos fones-alvo ou alongamentos dos próprios fones-alvo. Interessante constatar que uma das hesitações mais frequentemente encontradas é uma hesitação tipicamente gaguejada (o alongamento fônico em início de palavra). Nenhuma das crianças tinha queixa de fluência.

De maneira geral, os resultados indicaram que as crianças estavam tentando ajustar a produção fônica. A tentativa de ajuste motor foi duplamente sinalizada: pela diferenciação dos espectros acústicos (significativa na produção, mas não na percepção) e pela ocorrência das hesitações. As hesitações indicaram claramente que a produção não estava automatizada e que as crianças estavam ativamente (embora talvez não conscientemente) buscando a produção fônica mais efetiva.

 

Outro estudo, este realizado por Maria Cláudia Freitas, também analisou a ocorrência de hesitações na fala de crianças com retardo fonológico.

Duas crianças foram acompanhadas ao longo de três meses (uma gravação por mês). A primeira criança tinha 6 anos; sua produção dos fonemas /s/ e /∫/ se assemelhava ao fone [t]. A segunda criança tinha 5 anos; sua produção do fonema /∫/ se assemelhava ao fone [s].

Para análise da fala, foram escolhidos dissílabos paroxítonos: padrão /’CVCV/. Os dissílabos contrastavam /s/, /∫/ e /t/ em posição de ataque na sílaba tônica. As palavras-chave foram: “sapo, sala, sebo, sela, sopa, surra; chave, xale, Chile, chip, chuva, churros; tala, tapa, tipo, time, tubo, tule”. Foi utilizada a frase-veículo: “Fale [palavra-chave] de novo”. Foram feitas cinco repetições de cada palavra-chave, inserida na frase-veículo. Importante ressaltar que as duas crianças estavam em terapia fonoaudiológica; sendo assim, o estudo também serviria para monitorar as mudanças na produção que ocorreriam na fala das crianças devido à terapia.

O objetivo principal do estudo era a descrição acústica das supostas “substituições fônicas”. Entretanto, a autora se deparou com a ocorrência de hesitações na terceira gravação das crianças, mas não nas primeiras duas. Na terceira gravação, a produção das fricativas começava a se aproximar do esperado na língua, o que não ocorreu nas duas gravações iniciais.

A terceira gravação da primeira criança indicou que, das 60 frases com palavras-alvo iniciadas pelas fricativas /s/ e /∫/, 54 foram produzidas com ruído fricativo semelhantes a [s] e [∫], 3 foram produzidas por ruído africado semelhante a [t∫] e 3 foram produzidas com ruído de plosão semelhante a [t]. Ao todo, 18 frases apresentaram hesitações.

A terceira gravação da segunda criança indicou que, das 30 frases com palavras-alvo iniciadas pela fricativa /∫/, 19 foram produzidas com ruído semelhante a [∫] e 11 foram produzidas com ruído semelhante a [s]. Ao todo, 17 frases apresentaram hesitações.

Para as duas crianças, as hesitações mais frequentes foram as pausas silenciosas e os falsos inícios. Houve 22 pausas silenciosas (como em “Fale… chuva de novo”) e 8 falsos inícios (como em “Fale s-Chile de novo”). Ambas hesitações consideradas comuns e não gaguejadas.

A ocorrência das hesitações pode ser interpretada como indício da dúvida vivenciada pelas crianças durante o processo de aquisição dos contrastes fônicos esperados pela língua. Apenas a partir do momento em que o padrão antigo, não esperado, foi desestabilizado e um padrão novo, esperado, começou a ser adquirido, é que as hesitações apareceram. As hesitações forneceram o tempo necessário para que as crianças pudessem decidir entre possibilidades diferentes e conflitantes de produção: entre [s], [∫] e [t] no caso da primeira criança e entre [∫] e [s] no caso da segunda. Assim, as hesitações foram marcas de produções articulatórias não automatizadas, nas quais um maior grau de atenção foi necessário.

 

Taxa de elocução em crianças com e sem alteração fonológica

Um estudo de Haydée Wertzner & Leila Silva analisou a taxa de articulação de crianças com e sem alteração fonológica.

Foi estudada a fala de 40 crianças: metade com e metade sem desvio fonológico (pareadas por sexo e idade). As crianças tinham entre 5 e 10 anos. Foram feitas provas de repetição de frases, tais como “O cachorro fugiu” e “A Maria tem uma bola vermelha”. Foi medido o tempo total de duração das frases e foram calculadas as taxas de fones e de sílabas por segundo.

Os resultados indicaram que as crianças com alteração fonológica necessitaram de mais tempo para repetir as frases (de 100 a 200 ms a mais), além de terem produzido uma quantidade menor de fones por segundo (1 fone a menos) e de sílabas por segundo (0,5 sílaba a menos) em comparação às crianças sem alteração fonológica.

Ou seja, assim como os estudos anteriores, este estudo indicou que a produção fônica das crianças com alteração fonológica não é tão automatizada quanto a das crianças sem alteração, porque elas precisam de mais tempo para realizar a articulação da fala.

Na verdade, as crianças adotaram uma estratégia inteligente: na medida em que não conseguiram articular com tanta precisão, elas lentificaram a produção. A produção mais lentificada provavelmente conduziu à articulação mais inteligível e mais próxima do alvo. A redução da taxa de articulação, portanto, é uma estratégia compensatória das crianças com alteração fonológica.

 

Portanto, crianças com retardo fonológico podem apresentar um padrão de fluência diferente em relação a crianças sem retardo fonológico. Os estudos aqui analisados indicam que pode haver aumento de hesitações e redução da taxa de articulação a partir do momento em que a criança começa a ter dúvidas sobre como estabelecer contrastes fonológicos de forma produtiva, ou seja, a partir do momento em que começa a cogitar que a produção fônica a que ela está acostumada possa não ser a mais adequada linguisticamente. As hesitações (geralmente pausas silenciosas) aparecem imediatamente antes da produção fônica problemática, mas também pode haver redução da taxa de articulação da fala como um todo.

 

 

(*) Quanto mais características são compartilhadas entre dois segmentos, maior a probabilidade de haver confusão na produção. É o caso de /s/ e /∫/: os dois segmentos apresentam muitas características em comum, exceto o fato de /s/ ser mais anterior do que /∫/.