Gagueira, alergias e sono

dez 22, 2020 | por Sandra Merlo | Alergias, Comorbidades, Gagueira, Sono

Está disponível nosso segundo estudo epidemiológico sobre gagueira infantil e sono. Neste estudo, foi analisado o papel das alergias nas queixas de sono em crianças e adolescentes que gaguejam. O estudo foi escrito pelo fonoaudiólogo americano Patrick Briley e por mim [1]. Foi publicado na revista “Perspectives of the ASHA Special Interest Groups” (veja aqui). A seguir, um resumo dos achados e implicações.

O estudo

Os dados analisados provêm do maior censo de saúde realizado nos Estados Unidos, o “National Health Interview Survey”. Todos os anos, são visitadas cerca de 40.000 residências e são colhidas informações sobre a saúde de cerca de 100.000 habitantes (incluindo crianças, adolescentes, adultos e idosos). Para este estudo específico, analisamos os dados referentes ao ano de 2012, porque apenas neste ano houve informações sobre as três condições-alvo (ou seja, gagueira, sono e alergias).

Em relação à gagueira, os pais foram solicitados a responder à seguinte pergunta: “Nos últimos 12 meses, a criança apresentou gagueira?”.

Em relação ao sono, os pais foram solicitados a responder às perguntas:

  1. “Nos últimos 12 meses, a criança regularmente apresentou insônia ou problemas para dormir?”
  2. “Nos últimos 12 meses, a criança regularmente apresentou sonolência excessiva durante o dia?”
  3. “Nos últimos 12 meses, a criança apresentou fadiga ou falta de energia por mais de três dias?”

Em relação às alergias, os pais foram solicitados a responder às perguntas:

  1. “Nos últimos 12 meses, a criança apresentou febre do feno [rinite alérgica]?”
  2. “Nos últimos 12 meses, a criança apresentou algum episódio de asma ou um ataque de asma?”
  3. “Nos últimos 12 meses, a criança apresentou algum tipo de alergia respiratória?”
  4. “Nos últimos 12 meses, a criança apresentou eczema ou alergia de pele?”
  5. “Nos últimos 12 meses, a criança apresentou alergia alimentar?”

A amostra final foi composta por crianças e adolescentes de 4 a 17 anos com resposta “sim” ou “não” para cada uma das perguntas listadas acima. Ao todo, 200 crianças e adolescentes foram referidos como tendo gagueira e 9.951 como não tendo gagueira nos últimos 12 meses.

Para as análises estatísticas, foram realizadas correções para diversas variáveis demográficas (sexo, idade, raça, região de residência, escolaridade dos pais e renda familiar).

 

Problemas de sono em crianças e adolescentes que gaguejam com e sem alergias

De maneira geral, as crianças e adolescentes com gagueira e algum tipo de alergia (rinite, asma ou dermatite atópica) apresentaram o dobro de chances de insônia ou problemas para dormir em relação aos pares com gagueira, mas sem alergias. A única exceção foi em relação à alergia alimentar.

Além disso, as crianças e adolescentes com gagueira e algum tipo de alergia (rinite,

Crianças e adolescentes com gagueira possuem maiores chances de apresentar alergias, as quais afetam o sono.

asma ou dermatite atópica) apresentaram também mais chances de consequências negativas dos problemas de sono durante o dia (como sonolência e fadiga diurnas).

Não é surpreendente que crianças e adolescentes com gagueira e com algum tipo de alergia também apresentem maiores chances de insônia ou problemas para dormir. Há muito tempo, sabe-se que as alergias interferem na quantidade e na qualidade do sono. As alergias respiratórias (rinite e asma) tendem a afetar principalmente a qualidade respiratória durante o sono. A dermatite atópica, principalmente devido à coceira, dificulta o início e a manutenção do sono. A alergia alimentar afeta basicamente a manutenção do sono, ocasionando despertares frequentes durante a noite.

 

Problemas de sono em crianças e adolescentes com e sem gagueira

Outro objetivo deste novo estudo foi comparar a prevalência de problemas de sono em crianças e adolescentes com e sem gagueira, controlando variáveis demográficas e comorbidades. Em nosso estudo anterior (veja resumo aqui; [2]), encontramos que crianças e adolescentes com gagueira apresentavam 3,72 mais chances de insônia ou problemas para dormir em relação aos pares sem gagueira. Naquele estudo, controlamos as variáveis demográficas e cinco comorbidades frequentemente encontradas na população com gagueira, a saber: convulsões/epilepsia, deficiência intelectual, distúrbios de aprendizagem, transtornos do espectro autista e transtorno do déficit de atenção e hiperatividade.

Entretanto, não controlamos a presença das alergias, que sabidamente afetam o sono. Controlando também para a presença dos quatro tipo de alergias (além das variáveis demográficas e das outras cinco comorbidades do estudo anterior), encontramos que crianças e adolescentes com gagueira apresentam 7,48 mais chances de insônia ou problemas para dormir em relação aos pares sem gagueira.

Comparando este achado com os achados de um estudo epidemiológico anterior (veja resumo aqui), é possível concluir que os problemas de sono e as convulsões/epilepsias são as comorbidades que mais diferenciam as crianças e adolescentes com gagueira em relação aos pares sem gagueira.

É particularmente importante identificar e tratar os distúrbios de sono devido ao seu potencial para interferir com a consolidação dos padrões fluentes de fala treinados durante a fonoterapia. Todas as aprendizagens que ocorrem ao longo do dia são consolidadas na memória de longo prazo durante o sono. Assim, distúrbios que interfiram na quantidade ou na qualidade do sono têm potencial para afetar negativamente a consolidação da aprendizagem.

 

Alergias em crianças e adolescentes com e sem gagueira

Em relação aos pares sem gagueira, crianças e adolescentes com gagueira apresentaram 1,72 mais chances de alergias respiratórias (rinite ou asma), 1,84 mais chances de dermatite atópica e 2,32 mais chances de alergia alimentar. Um estudo anterior publicado por pesquisadores europeus (veja resumo aqui) já havia demonstrado que adultos com gagueira possuem o dobro de chances de apresentar rinite, asma e dermatite atópica.

A prevalência aumentada de alergias em pessoas com gagueira sugere uma hipersensibilidade imune nesta população, a qual tem potencial para interferir com a maturação cerebral. A hipersensibilidade imune também já foi sugerida em outros transtornos do neurodesenvolvimento, como o transtorno do espectro autista e o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade.

 

Referências

[1] Briley, P. M. & Merlo, S. (2020). Presence of allergies and their impact on sleep in children who stutter. Perspectives of the ASHA Special Interest Groups, 5 (6), 1454-1466.

[2] Merlo, S. & Briley, P. M. (2019). Sleep problems in children who stutter: Evidence from population data. Journal of Communication Disorders, 82, doi: 10.1016/j.jcomdis.2019.105935.