Gagueira, duração do sono e insônia

maio 31, 2021 | por Sandra Merlo | Comorbidades, Gagueira, Sono

Já está disponível nosso terceiro estudo epidemiológico sobre gagueira e sono [1]. No artigo, analisamos dados de duração do sono e de insônia em adolescentes e adultos jovens. O artigo foi escrito por mim e também por Molly Jacobs e Patrick Briley, ambos da East Carolina University.

 

Base de dados

Os dados analisados foram coletados através do “National Longitudinal Study of Adolescent to Adult Health” (Add Health), que é um estudo epidemiológico longitudinal realizado nos Estados Unidos. O Add Health foi desenhado de forma a construir uma amostra representativa de cerca de 13 mil adolescentes e adultos jovens americanos. O estudo iniciou nos anos de 1994 e 1995, recrutando adolescentes que tinham entre 12 e 17 anos naquela época. Os participantes foram entrevistados cinco vezes ao longo de 20 anos. Na 5ª e última entrevista, que ocorreu de 2016 a 2018, os participantes tinham entre 31 e 42 anos.

 

Nosso estudo

A amostra total do Add Health foi constituída por 13.564 participantes, sendo 46% do sexo masculino e 54% do sexo feminino.

Na 3ª e na 4ª entrevista do Add Health, os participantes responderam se apresentavam gagueira ou não. Na época da 3ª entrevista, os participantes tinham entre 18 e 26 anos e na 4ª entrevista, entre 24 e 32 anos. Então, aqueles que responderam afirmativamente podem ser considerados com gagueira persistente, tendo em vista que todos eram adultos à época em que a pergunta sobre gagueira foi feita.

Em todas as entrevistas, os participantes relataram quantas horas geralmente dormem por noite, em média.

Na 4ª entrevista, os participantes responderam se apresentaram dificuldades para iniciar ou manter o sono no último mês (ou seja, insônia) e com que frequência.

Os dados do grupo que referiu ter gagueira e do grupo que não referiu gagueira foram pareados para variáveis demográficas como sexo, idade, etnia, escolaridade e emprego. Além disso, os grupos também foram pareados de acordo com o índice de massa corporal e três comorbidades associadas (transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, transtorno de ansiedade e transtorno de aprendizagem). Embora pessoas com gagueira possam apresentar um grande número de comorbidades, apenas aquelas com prevalência de pelo menos 10% foram incluídas; por isso, comorbidades como rinite, asma, epilepsia e depressão não foram incluídas.

 

Resultados

Ao todo, 261 participantes (1,7% da amostra) identificaram-se como pessoas com gagueira, sendo 169 homens (64%) e 92 mulheres (36%).

Em relação aos dados brutos (não pareados), o grupo com gagueira referiu dormir cerca de 7h27min por noite, enquanto o grupo sem gagueira referiu dormir cerca de 7h46 min por noite. Os dados brutos podem ser vistos na figura abaixo:

Horas de sono relatadas por participantes com gagueira persistente (em azul) e por participantes sem gagueira persistente (em laranja) dos 12 aos 42 anos.

Embora a diferença de 19 minutos entre os grupos pareça pequena, é importante lembrar que ela ocorreu de forma persistente ao longo dos 20 anos do estudo epidemiológico, indicando que os participantes com gagueira dormiram menos em comparação aos pares sem gagueira de forma contínua. Ou seja, não apenas a gagueira foi persistente, a redução na duração do sono também foi. Além disso, os participantes com gagueira também apresentaram maior variabilidade na duração do sono em relação aos pares sem gagueira. Importante ressaltar que as diferenças existiram independentemente das variáveis demográficas e das comorbidades.

Em relação aos dados brutos (não pareados), 15% do grupo com gagueira referiu insônia em quase todas as noites ou em todas as noites durante o último mês, enquanto 9% do grupo sem gagueira referiu o mesmo. O pareamento dos grupos com as variáveis demográficas e comorbidades indicou que a chance de insônia é 2,1 vezes maior no grupo com gagueira em relação aos pares sem gagueira (com intervalo de confiança a 95% de 1,5 a 2,9).

 

Implicações clínicas

Levando em consideração que o sono é fundamental para a consolidação da aprendizagem (incluindo a aprendizagem neuromotora da fala), o fato de adolescentes e adultos jovens com gagueira dormirem significativamente menos sugere que os resultados da fonoterapia possam ser comprometidos por esta privação leve, mas persistente de sono. Embora sejam necessários outros estudos para verificação desta hipótese, já foi demonstrado, por exemplo, que a perda de 30 minutos de sono por noite piora o tempo de reação e aumenta a sonolência e a fadiga diurnas de jogadores profissionais de beisebol [2].

Tendo em vista que o estudo também encontrou maior variabilidade na duração do sono em adolescentes e adultos jovens com gagueira, outra possibilidade é que a variabilidade na duração do sono se correlacione com a variabilidade da gagueira: ou seja, em semanas que o paciente dorme mais ou melhor, a gagueira também está melhor (e vice-versa).

Além disso, o fato de duas vezes mais participantes com gagueira terem relatado insônia em quase todas as noites ou em todas as noites também deve interferir nos ganhos da fonoterapia. Um paciente que experiencie dificuldades para iniciar ou manter o sono em quase todas as noites ou em todas as noites vai estar menos alerta e mais fadigado no momento da fonoterapia, além de estar com menor capacidade atencional para utilizar as técnicas de fala no dia a dia. Também é possível que o grau de insatisfação com a própria fala seja maior nos pacientes com insônia devido ao comprometimento do humor, que é uma consequência comum em quem tem insônia.

Os resultados do nosso estudo são importantes principalmente considerando um achado de outro estudo recente [3]: que o sono saudável parece ser necessário para a remissão total da gagueira.

 

Referências

[1] Jacobs, M. M., Merlo, S., & Briley, P. M. (2021). Sleep duration, insomnia, and stuttering: The relationship in adolescents and young adults. Journal of Communication Disorders, 91, 106106.

[2] Mah, C. D., Anguera, J. A., Gazzaley, A., & Luke, A. (2017). Sleep loading improves visual search response time and reduces fatigue in professional baseball players. Sleep, 40, A278.

[3] Neumann, K., Euler, H. A., Zens, R., Piskernik, B., Packman, A., St. Louis, K. O., et al. (2019). Spontaneous” late recovery from stuttering: Dimensions of reported techniques and causal attributions. Journal of Communication Disorders, 81, 105915.