A utilização do álcool por pessoas com gagueira é pouco discutida. Mas já atendi diversos adolescentes e adultos que faziam uso do álcool para reduzir a gagueira e a ansiedade relacionada à comunicação falada.
Vou descrever exemplos que tenho visto na minha prática clínica. Nenhuma dessas descrições se refere a um caso clínico específico; são aglutinações de casos.
Exemplo 1: adolescente que se sente bastante ansioso em situações de interação social com outros adolescentes, principalmente durante a abordagem ao sexo oposto. Devido à tensão física e emocional, ocorre piora significativa da gagueira nessas situações. Aos poucos, o adolescente aprende que, se beber um pouco, consegue ficar física e emocionalmente relaxado, não mais experimentando piora da gagueira. Passa, então, a adotar a estratégia de beber quando em situações de interação social com seus pares.
Exemplo 2: adolescente que se sente bastante ansioso em situações de fala em público na escola. Também devido à tensão física e emocional, ocorre piora significativa da gagueira nessas situações. Já sabe que o álcool facilita a fluência, porque os amigos já falaram que não gagueja quando bebe. Então, tem a ideia de beber um pouco antes da apresentação oral na sala de aula.
Exemplo 3: adulto jovem bastante preocupado com sua colocação no mercado profissional. Teme ser despedido, ainda mais pelo fato de apresentar gagueira. O chefe solicita que apresente alguns slides na próxima reunião na empresa. Por experiências anteriores, sabe que o álcool ajuda a reduzir a gagueira. Como a apresentação será na parte da tarde, pensa que pode beber um pouco na hora do almoço. Assim estará mais relaxado física e emocionalmente na hora da apresentação.
Exemplo 4: adulto jovem que ocasionalmente bebe bastante em situações de lazer. Os amigos já disseram que não gagueja nada quando está bêbado. Em tom de brincadeira, comenta: “Talvez eu devesse beber todo dia para não gaguejar!”. Se a sessão de terapia for no dia posterior a um evento em que bebeu bastante, pode faltar à sessão devido à ressaca ou chegar no consultório ainda com sinais de embriaguez.
Exemplo 5: adulto que não obteve melhoras significativas da gagueira, mesmo tendo feito diversos tratamentos. Na adolescência, aprendeu que o álcool desinibe e relaxa. Achou que isso ajudava e, gradualmente, passou a beber cada vez mais em situações de lazer. Aos poucos, o álcool também passou a fazer parte do dia-a-dia. Tem certeza que a ingestão diária e constante de álcool ajuda a ficar menos ansioso e a reduzir a gagueira.
O fonoaudiólogo deve discutir o assunto?
Eu, particularmente, não me furto a discutir sobre o assunto com meus pacientes. Mas já ouvi colegas dizendo que não falam sobre o efeito do álcool na gagueira para “não incentivar a curiosidade do paciente”. Eu não adoto essa postura. Acho que o assunto deve ser abertamente discutido, não pode ser tabu.
Retomando e discutindo os exemplos acima:
Exemplo 1: o adolescente está começando a vivenciar situações de interação social diferentes daquelas da infância. Com tanta tensão emocional, que também acaba se convertendo em tensão muscular, a gagueira pode piorar sensivelmente. O adolescente pensa: “Se eu gaguejar, é aí que não vou conseguir nada mesmo!”. O álcool entra em cena para ajudar a relaxar e a reduzir a gagueira. Acho que a última coisa que o adolescente quer é um profissional que imponha seus valores ou que recite a cartilha do certo e errado. Ouvir e discutir as angústias deste momento da adolescência é o caminho mais acertado, na minha opinião.
Acho que é muito oportuna a discussão sobre todos os aspectos que o adolescente colocar, porque este pode ser o início de um problema crônico com o álcool. Se o fonoaudiólogo não se sente preparado para discutir o assunto, tem dois caminhos: estudar e preparar-se ou sugerir uma conversa com um profissional da área psi.
Exemplo 2: neste exemplo, fica claro o uso do álcool com o objetivo específico de reduzir a gagueira e a ansiedade comunicativa. É diferente do exemplo anterior, que também envolvia outras questões. Como fonoaudióloga, acho este exemplo mais preocupante do que o anterior, porque o paciente está mostrando que a ansiedade em relação à comunicação falada é muito elevada e que a estratégia que ele encontra para lidar com a situação de fala em público é através do álcool. Se ele está aprendendo estratégias promotoras de fluência na terapia fonoaudiológica, não está conseguindo aplicá-las em situações de fala espontânea ou não considera que essas estratégias sejam eficientes (pode estar certo com relação a isso ou não).
Penso que deve haver espaço na terapia fonoaudiológica para o adolescente expor suas angústias em relação à gagueira (sentimento de inferioridade, medo de gozações, cobranças por melhora, etc.). Também acho que o fonoaudiólogo não deve vir com “fórmulas prontas” para discutir essas questões: “Imagine, você não é inferior porque tem gagueira. Você tem tantas coisas boas, a gagueira é só um detalhe!”. Nunca vi isso funcionar. Por exemplo, se o paciente tem certeza que é inferior porque tem gagueira, acho que o caminho é tentar compreender como ele construiu essa certeza. Alguns fonoaudiólogos não se propõem a discutir aspectos emocionais relacionados à gagueira. Nesses casos, penso que é necessário o encaminhamento para outro fonoaudiólogo que faça esse trabalho ou para um profissional da área psi.
Questões adicionais relativas aos dois exemplos anteriores, que envolvem adolescentes, ou seja, menores de 18 anos.
- Teoricamente, menores de idade não deveriam ter acesso a bebidas alcoólicas… Inclusive a Organização Mundial da Saúde recomenda consumo zero de álcool em idades inferiores a 18 anos [1]. Não vou entrar no mérito desta questão. Os motivos por que menores de idade conseguem ter acesso a bebidas alcoólicas é um problema que foge ao escopo da discussão que proponho aqui.
- O fonoaudiólogo deve manter sigilo sobre o assunto ou deve contar aos pais? Afinal, trata-se de um adolescente e os pais ainda são os responsáveis legais por ele. Em um primeiro momento, deixo o assunto restrito à sessão de terapia com o adolescente. Se, em outro momento, os relatos do paciente sugerirem abuso de álcool, discuto com ele a necessidade de expor o assunto aos pais: tanto para o cuidado com ele (adolescente), quanto em relação à minha responsabilidade profissional.
Exemplo 3: basicamente as mesmas considerações do Exemplo 2.
Exemplo 4: acho que a hipótese de “beber todo dia para não gaguejar” deve ser discutida seriamente. Como argumento a favor do uso do álcool está a redução imediata da gagueira. Como argumentos contrários ao uso do álcool estão a redução da atenção e da memória, a lentidão motora e o risco de abuso ou dependência.
Haveria outra possibilidade de lidar com a gagueira? Que tal um tratamento especializado e personalizado? Todas as possibilidades podem ser levantadas: terapia fonoaudiológica de fluência, terapia fonoaudiológica de processamento auditivo, uso do SpeechEasy e/ou terapia medicamentosa. Nenhuma terapêutica precisa ser exclusiva, podem ser combinadas.
Se o paciente chegar ao consultório com sinais de ressaca ou embriaguez, não adianta fazer exercícios de fala (a aprendizagem não ocorre neste estado). Mas pode ser um momento oportuno para discutir sobre por que isso está acontecendo. No caso do paciente não querer discutir, só resta dispensá-lo naquele dia.
Exemplo 5: o paciente deste exemplo nem sempre se consultou com um profissional da área psi e nem sempre concorda que abusa ou é dependente de álcool. Inclusive ele pode dizer isso explicitamente: “Eu não sou alcoólatra, não preciso de psiquiatra. Eu só bebo para gaguejar menos”. Ele tem meu voto de confiança. Esse paciente precisa de um plano terapêutico personalizado, que produza resultados rapidamente. Da mesma forma que no exemplo anterior, todas as possibilidades terapêuticas devem ser discutidas e consideradas. Conforme os resultados forem surgindo, a redução no consumo diário de bebida pode ser negociada. Alguns irão conseguir, outros não. Para aqueles que não conseguirem, fica explícita a perda de controle com a bebida. No caso de terapia medicamentosa para gagueira, os medicamentos receitados exigem consumo zero de álcool.
Questão adicional relativa aos Exemplos 4 e 5: se o paciente tem sinais de embriaguez e está dirigindo, o que o fonoaudiólogo deve fazer? Deixá-lo ir embora livremente? Telefonar para alguém buscá-lo no consultório? Colocá-lo num táxi? Pela lei brasileira, quem comete infração é o condutor que dirige embriagado. Mas o fonoaudiólogo, percebendo sinais de embriaguez em seu paciente, deveria tentar impedi-lo de dirigir? Na primeira vez em que isso aconteceu na minha prática clínica, confesso que não pensei nisso. Em outras vezes, sugeri que não dirigisse: eu poderia telefonar para alguém buscá-lo ou chamar um táxi. O paciente recusou e foi embora dirigindo. Considerei que eu não poderia impedi-lo, porque o paciente é maior de idade e responsável por seus atos.
O próximo texto abordará questões trazidas pelos pacientes sobre a relação entre gagueira e álcool.
Referência
[1] Andrade, Arthur G.; Alvarenga, Pedro G. & Silveira, Camila M. (2008). Transtornos relacionados ao álcool. In: Andrade, Arthur G. & Alvarenga, Pedro G. Fundamentos em psiquiatria (pp. 247-266). Barueri, SP: Ed. Manole.