Gagueira e apneia obstrutiva do sono

set 15, 2022 | por Sandra Merlo | Gagueira, Sono, Últimas descobertas

Foi publicado nosso quarto artigo epidemiológico sobre gagueira e sono. Neste artigo, analisamos sintomas de apneia obstrutiva em adultos jovens com gagueira. O artigo foi escrito por mim e por Molly Jacobs (Florida University) e Patrick Briley (East Carolina University).

Nosso estudo

Os dados epidemiológicos são provenientes do “National Longitudinal Study of Adolescent to Adult Health” (Add Health), um estudo longitudinal realizado nos Estados Unidos. Neste artigo específico, analisamos os dados da fase IV do Add Health, quando os participantes tinham entre 24 e 32 anos.

Ao todo, 261 participantes se identificaram como pessoas com gagueira, sendo que 65% eram do sexo masculino e 35% eram do sexo feminino. O grupo controle, ou seja, aqueles que não se identificaram como pessoas com gagueira, teve 14.386 participantes, sendo 46% do sexo masculino e 54% do sexo feminino. A idade média em ambos os grupos foi de 29 anos.

Selecionamos dois sintomas noturnos e dois sintomas diurnos relacionados à apneia obstrutiva do sono. Todos os participantes responderam às seguintes perguntas:

  1. “Com base na sua percepção e na de outras pessoas, você ronca ou para de respirar durante o sono?”
  2. “Com que frequência você tem dificuldade para permanecer dormindo durante a noite? Por exemplo, você acorda diversas vezes à noite ou acorda mais cedo do que planeja?”
  3. “Com que frequência, na última semana, você teve dificuldades para se concentrar no que estava fazendo?”
  4. “Com que frequência, na última semana, você se sentiu muito cansado para fazer as coisas?”

Para a análise estatística, foram controladas as variáveis de sexo, idade, etnia, dificuldade para iniciar o sono, índice de massa corporal (IMC), alergias respiratórias, uso de medicação para alergias respiratórias, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, ansiedade e depressão.

Resultados

Em relação aos quatro sintomas de apneia obstrutiva do sono, os dados brutos foram os seguintes:

RespostasAdultos com gagueiraAdultos sem gagueira
Ronco ou parada respiratória durante o sonoSim60% (= 157)47% (= 6.801)
Dificuldade para permanecer dormindo durante a noiteDe 3 a 7 noites na semana30% (= 78)21% (= 2.961)
Dificuldade para se concentrar durante o diaMuitas vezes ou a maior parte do tempo26% (= 68)15% (= 2.120)
Sensação de cansaço durante o diaMuitas vezes ou a maior parte do tempo23% (= 60)16% (= 2.330)

A análise de regressão indicou que quem gagueja tem 1,4 mais chances de referir ronco, 1,3 mais chances de ter dificuldades para permanecer dormindo e 1,8 mais chances de ter dificuldades para se concentrar em comparação a quem não gagueja. Não houve diferença entre os grupos em relação à sensação de cansaço diurno.

A modelagem com equações estruturais mostrou que os sintomas de ronco, dificuldade para permanecer dormindo e dificuldades para se concentrar se correlacionam entre si, ou seja, quem refere um dos sintomas tende a referir os outros. Além disso, a modelagem com equações estruturais também mostrou que estes três sintomas de apneia obstrutiva do sono se correlacionam com a gagueira, ou seja, quem tem gagueira tende a referir estes três sintomas. O único sintoma de apneia obstrutiva do sono que não se correlacionou com a gagueira foi o cansaço durante o dia, embora este sintoma tenha se correlacionado com os outros três sintomas de apneia.

No grupo com gagueira, 62% dos participantes referiram pelo menos dois sintomas de apneia obstrutiva do sono em comparação a apenas 27% dos participantes sem gagueira.

Um achado importante do estudo é que os sintomas de apneia obstrutiva do sono em adultos com gagueira não podem ser explicados pela maior prevalência do sexo masculino e de alergias respiratórias. Na idade adulta, há um claro predomínio de homens com gagueira persistente em relação a mulheres. Além disso, também há maior prevalência de alergias respiratórias em pessoas com gagueira persistente (veja aqui). Entretanto, mesmo com o controle destas variáveis, os sintomas de apneia obstrutiva do sono continuaram significativamente mais elevados no grupo com gagueira em relação aos controles.

Considerando que nenhuma variável demográfica ou condição de saúde conseguiu explicar a maior prevalência de sintomas de apneia obstrutiva do sono em adultos com gagueira, é possível que as próprias alterações anátomo-funcionais presentes no cérebro de quem gagueja estejam envolvidas neste processo. Esta hipótese foi inicialmente formulada em um estudo publicado em 2002, que analisou alterações anatômicas no cérebro de adultos com apneia obstrutiva do sono [2]. Tendo em vista que a gagueira inclui alterações anátomo-funcionais relacionadas à via aérea superior, é possível que estas alterações tornem mais provável o colapso da via aérea durante o sono, contribuindo para os sintomas de apneia obstrutiva. A possibilidade de que alterações anátomo-funcionais cerebrais contribuem para a apneia obstrutiva do sono também foi cogitada para casos de epilepsia [3] e de acidente vascular cerebral [4].

Uma das formas de a apneia obstrutiva interferir no sono é através da dessaturação de oxihemoglobina. A apneia obstrutiva afeta a oxigenação cerebral, podendo inclusive ocasionar momentos de hipóxia. A ocorrência repetitiva e persistente de dessaturação/hipóxia durante o sono predispõe a danos neuronais. Em termos clínicos, quanto maior for a dessaturação durante o sono, mais intensas tendem a ser as consequências diurnas (como, por exemplo, as dificuldades de concentração).

É possível que a ocorrência de apneia obstrutiva do sono seja bastante prejudicial para a fonoterapia da gagueira. Estudos futuros poderão analisar se a ocorrência repetitiva e persistente de dessaturação ou hipóxia durante o sono tem o potencial para intensificar as alterações anátomo-funcionais cerebrais, intensificando também a gagueira. Além disso, já se sabe que a apneia obstrutiva do sono prejudica as funções cognitivas e a saúde mental, levando a alterações de concentração, de planejamento e de humor, por exemplo. Tendo em vista que a fonoterapia da gagueira geralmente envolve a aprendizagem de novos padrões de fala, dificuldades adicionais de concentração, de planejamento e de regulação emocional têm grande potencial para limitar os ganhos da fonoterapia.

 

Referências

[1] Merlo, S., Jacobs, M. M., & Briley, P. M. (2022). Symptoms of Obstructive Sleep Apnea in Young Adults Who Stutter. Perspectives of the ASHA Special Interest Groups, 7(5).

[2] Macey, P. M., Henderson, L. A., Macey, K. E., Alger, J. R., Frysinger, R. C., Woo, M. A., Harper, R. K., Yan-Go, F. L., & Harper, R. M. (2002). Brain morphology associated with obstructive sleep apnea. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine, 166(10), 1382-1387.

[3] Sivathamboo, S., Perucca, P., Velakoulis, D., Jones, N. C., Goldin, J., Kwan, P., & O’Brien, T. J. (2018). Sleep disordered breathing in epilepsy: Epidemiology, mechanisms, and treatment. Sleep, 41(4).

[4] Seiler, A., Camilo, M., Korostovtseva, L., Haynes, A. G., Brill, A. K., Horvath, T., Egger, M., & Bassetti, C. L. (2019). Prevalence of sleep-disordered breathing after stroke and TIA: A meta-analysis. Neurology, 92(7), e648-e654.