A gagueira é uma condição com forte estigma social. Não é de surpreender, portanto, que pessoas com gagueira tentem não gaguejar ao conversar com familiares, amigos e colegas de trabalho. Para não demonstrar a gagueira explicitamente, podem ser utilizadas estratégias como: evitar pessoas e situações, evitar falar determinadas palavras, ensaiar previamente a fala. Essas estratégias são chamadas de “comportamentos de proteção”.
O fonoaudiólogo australiano Mark Onslow coordenou uma pesquisa sobre comportamentos de proteção em adultos com gagueira. Os resultados foram publicados na forma de artigo científico há poucos meses [1]. É sobre este artigo que vamos falar a seguir.
Muitas pessoas com gagueira se preocupam com “o que os outros vão pensar” se elas gaguejarem. Esta preocupação traz implícito o medo de avaliações negativas. Pessoas que gaguejam lançam mão de comportamentos de proteção, com o intuito de evitar a manifestação da gagueira e também de evitar avaliações negativas. O estudo coordenado por Mark Onslow teve o objetivo de fazer um levantamento dos comportamentos de proteção mais utilizados por adultos com gagueira.
Participaram do estudo 133 adultos, entre 18 e 68 anos, com gagueira. Os sujeitos preencheram um questionário que avaliou o uso de 27 comportamentos de proteção relativos à gagueira. Os sujeitos também preencheram outros dois questionários, que avaliaram o medo de avaliações negativas.
Os resultados indicaram que 132 dos 133 adultos com gagueira utilizam pelo menos um comportamento de proteção em situações de fala. Ou seja, pode-se concluir que virtualmente todos os adultos com gagueira utilizam algum comportamento de proteção.
Alguns comportamentos de proteção são mais utilizados do que outros. Por exemplo, o comportamento de evitar palavras difíceis, substituindo-as por outras, está no topo da lista (referido por 77% dos sujeitos). De fato, mesmo crianças com seis ou sete anos já podem ter aprendido esta estratégia por conta própria. Outros dois comportamentos bastante utilizados são o de falar pouco, apenas “o básico” (referido por 61% dos sujeitos) e o de evitar conversar em dias em que a gagueira está pior (57% dos sujeitos). Em restaurantes, por exemplo, também foram citados os comportamentos de pedir outra coisa para não ter que falar uma palavra difícil (referido por 51% dos sujeitos) e solicitar para outra pessoa fazer o pedido (32% dos sujeitos). Entretanto, os comportamentos de proteção não são apenas de evitação. Também há comportamentos mais proativos, como, por exemplo, ensaiar a fala inicial de um telefonema antes de fazer esse telefonema (referido por 54% dos sujeitos) e praticar técnicas de fala imediatamente antes de uma situação importante (referido por 53% dos sujeitos).
Além dos 27 comportamentos de proteção pesquisados, eu já ouvi relatos de ainda outros comportamentos de proteção, como por exemplo: não usar relógio para não ter que falar as horas para alguém na rua, falar grosseira e rispidamente com as pessoas para diminuir a chance de essas pessoas quererem conversar novamente, dizer que não sabe ou não conhece um assunto para não ter que dar sua opinião. A lista de comportamentos de proteção utilizados por pessoas com gagueira pode ser interminável. A ilustração deste texto com a imagem dos diversos escudos tem justamente a intenção de enfatizar a variedade dos comportamentos de proteção que podem ser utilizados.
Além disso, nem todos os adultos utilizam comportamentos de proteção na mesma intensidade: há os que utilizam mais e há os que utilizam menos. Quanto mais um adulto utiliza comportamentos de proteção, mais medo ele sente de avaliações sociais negativas. Foi isso que demonstrou a correlação significativa entre o uso dos comportamentos de proteção e os questionários relacionados ao medo de avaliações negativas. Quanto maior o medo de avaliações negativas, maior a probabilidade de o adulto com gagueira também preencher critério para fobia social. A fobia social pode ser definida como um medo intenso de ser ou de se sentir ridicularizado socialmente. Estima-se, na verdade, que a incidência de fobia social em adultos com gagueira seja bastante elevada, afetando cerca de dois terços dessa população.
O uso dos comportamentos de proteção tem o intuito de evitar a manifestação da gagueira e, consequentemente, evitar as consequências sociais negativas do ato de gaguejar. Tenho certeza de que, em muitos momentos, os comportamentos de proteção são efetivos para que a pessoa que gagueja não seja ou não se sinta ridicularizada socialmente. Por exemplo, avisar o interlocutor que se é uma pessoa com gagueira (referido por 22% dos sujeitos) tende a ser muito positivo, particularmente no caso dos homens (maiores detalhes aqui). Entretanto, duas críticas principais podem ser feitas ao uso dos comportamentos de proteção.
A primeira dela é que alguns comportamentos de proteção também podem induzir à avaliação social negativa, embora sua motivação tenha sido justamente o oposto. Por exemplo, uma pessoa pode evitar o contato ocular por não querer ser incluída em uma conversa. Vamos supor que o comportamento de evitar o contato ocular seja efetivo e que realmente a pessoa não seja chamada para uma determinada conversa. Necessariamente essa pessoa terá sucesso em evitar uma avaliação social negativa? Não, porque os interlocutores podem considerá-la um tanto quanto antissocial ou pouco amigável. Mas, por outro lado, a avaliação negativa inicialmente temida (gaguejar e passar vergonha) foi evitada.
A segunda crítica é que alguns comportamentos de proteção podem induzir à manutenção da fobia social. Como dito, quanto maior o uso dos comportamentos de proteção, maior a chance de o adulto com gagueira também apresentar fobia social. Os comportamentos de proteção podem ajudar a manter a fobia social, porque diminuem a possibilidade de a pessoa perceber que o medo pode não proceder. Voltando ao exemplo anterior de evitar o contato ocular. Sem se engajar na conversa, a pessoa perde a oportunidade de verificar se seu medo procede ou não. Existe a possibilidade de ela descobrir que poderia não ter gaguejado tanto quanto previa ou que, mesmo gaguejando, ela foi aceita pelos interlocutores. A quebra da previsão catastrófica tem efeito terapêutico, ajudando a reduzir a ansiedade e trazendo maior bem-estar.
O estudo, portanto, corrobora o que se encontra no dia-a-dia da clínica de gagueira: o uso de comportamentos de proteção é disseminado entre adultos com gagueira, sendo que o uso intenso desses comportamentos provavelmente está associado à presença de fobia social. É importante ressaltar que, em muitos casos, o sucesso da fonoterapia depende do manejo psiquiátrico ou psicológico da fobia social.
Referência
[1] Lowe, R.; Helgadottir, F.; Menzies, R.; Heard, R.; O’Brian, S.; Packman, A. & Onslow, M. (2017). Safety behaviors and stuttering. Journal of Speech, Language, and Hearing Research, 60, 1246-1253.