Gagueira e doença de Sandhoff

jul 11, 2021 | por Sandra Merlo | Casos clínicos, Gagueira, Genética

Estrutura da enzima Hex B, deficitária na doença de Sandhoff. (Imagem criada por Emw).

O neurologista espanhol Jorge Alonso-Pérez e colaboradores acabaram de publicar um artigo com dois casos de doença de Sandhoff associados à gagueira [1]. Em um dos casos, a gagueira foi referida como o único sintoma clínico da doença de Sandhoff.

 

Doença de Sandhoff

A doença de Sandhoff é uma doença genética rara, com herança autossômica recessiva, causada por mutações no gene HEXB localizado no cromossomo 5. O gene HEXB é responsável por codificar a subunidade beta das enzimas lisossômicas beta-hexosaminidase A e B (Hex A e Hex B, respectivamente). Estas duas enzimas são responsáveis pela degradação de gangliosídeos, que são glicolipídeos de membrana plasmática encontrados principalmente no sistema nervoso central (SNC). Na doença de Sandhoff, a falta de enzimas funcionais Hex A e Hex B faz com que gangliosídeos especificamente do tipo monosiático 2 (GM2) se acumulem no SNC (há mais de doze tipos de gangliosídeos no SNC). Devido à falha na degradação dos gangliosídeos GM2, a doença de Sandhoff é uma das doenças de armazenamento.

A doença de Sandhoff pode ter início na infância ou na idade adulta. A forma clássica da doença geralmente inicia entre 2 e 9 meses de idade, com óbito antes dos 3 anos. Os sintomas clássicos são fraqueza muscular progressiva, deficiência intelectual, alterações sensoriais (visão e audição) e epilepsia. O início da doença na idade adulta é muito raro. A idade de início da doença e a gravidade clínica são ambas relacionadas com a quantidade de enzimas funcionais Hex A e Hex B.

 

Casos clínicos

O primeiro caso é de um homem de 46 anos, com uma longa história de câimbras musculares nos membros superiores e inferiores e também com gagueira, as quais iniciaram na adolescência. Próximos dos 40 anos, a fraqueza muscular se intensificou, com prejuízo para subir e descer escadas.

O exame neurológico indicou fasciculações e fraqueza muscular nos membros inferiores. Os reflexos estavam hipoativos nos membros inferiores e normais nos superiores. Não havia sinais de acometimento dos pares cranianos, do cerebelo, da visão e da audição.

O segundo caso é de uma mulher de 41 anos, irmã do paciente anterior. O único sintoma clínico relatado foi a gagueira, a qual iniciou na adolescência. O exame físico não encontrou indícios de fraqueza ou fasciculação muscular, com reflexos normais. Também não havia sinais de acometimento dos pares cranianos, do cerebelo, da visão e da audição.

A eletromiografia de agulha sugeriu denervação em membros inferiores no primeiro caso e normalidade no segundo caso. A ressonância magnética de crânio sugeriu normalidade nos dois casos. O exame genético indicou as mesmas duas mutações no gene HEXB nos dois casos clínicos. A atividade sérica das enzimas Hex A e Hex B estavam muito abaixo do valor mínimo esperado para os dois casos.

Levando-se em conta todas as avaliações, os dois casos receberam o diagnóstico de doença de Sandhoff com início na idade adulta.

É importante destacar que não foi realizada avaliação fonoaudiológica formal da fala dos pacientes. No artigo publicado, não há qualquer dado quantitativo a respeito da avaliação da fluência e nem de qualquer outro aspecto da fala. Entretanto, os autores também disponibilizaram um vídeo no qual é possível ver e ouvir a fala dos pacientes. Na minha opinião, o primeiro caso não apresenta apenas gagueira, mas também disartria flácida. É possível observar alguns bloqueios leves ou moderados, típicos de gagueira. Mas também é possível perceber nítida hipernasalidade, imprecisão articulatória e baixo suporte respiratório para a fala. No segundo caso, também observei alguns bloqueios leves ou moderados, típicos de gagueira. Além disso, também é possível ver movimentos espasmódicos involuntários na região da face e do pescoço. Mas também neste caso é possível perceber hipernasalidade, embora mais leve do que no caso anterior, sugerindo disartria flácida.

Do ponto de vista da fluência, a descrição destes dois casos é, sem dúvida, muito interessante. Entretanto, a falta de avaliação fonoaudiológica formal parece ter feito os autores concluírem erroneamente que o único distúrbio de fala é a gagueira, sendo que há  indícios de disartria flácida (compatível com o acometimento do neurônio motor inferior). Além disso, a falta da avaliação fonoaudiológica da gagueira deixou perguntas importantes sem resposta: a gagueira destes dois pacientes desaparece durante o canto?, eles possuem “sons difíceis”?, eles trocam palavras “difíceis” por mais fáceis?, dentre diversas outras perguntas que poderiam ter sido respondidas.

 

Genética da gagueira

Cerca de 20% dos casos de gagueira também parecem estar relacionados com mutações em genes que interferem com vias bioquímicas relacionadas aos lisossomos (veja aqui). Os quatro genes encontrados até o momento que estão relacionados à gagueira estão localizados nos cromossomos 12, 15 e 16. Entretanto, o cromossomo 5, onde está o gene HEXB, já havia sido anteriormente identificado como uma provável região de genes relacionados à gagueira. Neste contexto, estes são dois casos que, mais uma vez, apontam para a gagueira ser também uma doença de armazenamento.

 

Referência

[1] Alonso-Pérez, J., Casasús, A., Gimenez-Muñoz, A., Duff, J., Rojas-Garcia, R., Illa, I., Straub, V., Töpf, A., & Díaz-Manera, J. (2021). Late onset Sandhoff disease presenting with lower motor neuron disease and stuttering. Neuromuscular Disorders, doi: 10.1016/j.nmd.2021.04.011.