Um grupo de pesquisa da Grã-Bretanha, liderado pela neurocientista Kate Watkins, acaba de publicar um estudo que sugere maiores concentrações de ferro não-heme no cérebro de adultos com gagueira persistente [1].
A gagueira é relacionada à disfunção na alça córtico-estriado-tálamo-cortical esquerda (veja aqui). Nesta alça, os núcleos da base ganham destaque, porque participam ativamente do processo de automatização de movimentos, incluindo os movimentos de fala (veja aqui). Uma das propriedades dos núcleos da base é apresentar grandes concentrações de ferro [1]. Baixas concentrações de ferro durante o desenvolvimento são consideradas prejudiciais ao neurodesenvolvimento [1]. Por outro lado, maiores concentrações de ferro são esperadas ao longo do processo de envelhecimento e grandes concentrações de ferro são típicas de certas doenças neurológicas, como o Parkinson [1].
No artigo publicado por Kate Watkins e colaboradores [1], foi realizado imageamento do tecido cerebral por ressonância magnética, com protocolos específicos para análise da quantidade de mielina na substância branca e na cinzenta e da quantidade de ferro na substância cinzenta. Participaram do estudo 41 adultos com gagueira e 32 adultos sem gagueira pareados por sexo e idade, ambos grupos com idade média de cerca de 30 anos. A gagueira foi avaliada de forma objetiva, com pontuação média no protocolo SSI variando entre 16 e 40. As imagens de ressonância magnética foram obtidas com os participantes em repouso, sem realizar tarefas de fala.
Os resultados sugeriram maiores concentrações de ferro no grupo com gagueira em relação ao sem gagueira nas seguintes regiões do hemisfério esquerdo (geralmente o dominante para a linguagem):
- Putâmen
- Sulco frontal superior
- Parte opercular do giro frontal inferior (área de Broca)
- Porção posterior do sulco frontal inferior
- Córtex opercular frontal e ínsula anterior
- Porção relativa à língua no giro pré-central
- Plano temporal (área de Wernicke)
- Lóbulo parietal superior
É importante frisar que o protocolo que analisou a presença de ferro no tecido cerebral é sensível apenas para ferro não-heme, ou seja, o ferro que está presente no tecido cerebral em si e não no sangue [1]. Por isso, os resultados não podem ser interpretados como maior fluxo sanguíneo para as regiões cerebrais citadas anteriores. Além disso, os resultados encontrados não se devem a diferenças morfométricas no grupo com gagueira, tendo em vista que a análise morfométrica não indicou diferenças regionais no volume de substância cinzenta no grupo com gagueira em relação ao sem gagueira [1].
As maiores concentrações de ferro não se correlacionaram com a gravidade da gagueira, tal qual medida pelo SSI. Este achado sugere que a alta concentração de ferro seja um marcador da gagueira em si, independentemente de sua gravidade [2].
Como explicar a maior concentração de ferro não-heme na alça córtico-estriado-tálamo-cortical em adultos com gagueira? Uma possibilidade é através da dopamina, sendo que a alta concentração de ferro não-heme pode estar correlacionada com alta concentração de dopamina [1], já que o ferro possibilita a conversão da tirosina em levodopa no botão sináptico [2]. Outra possibilidade é através dos lisossomos, que poderiam não degradar a ferritina a ser transportada para processos celulares que necessitam de ferro [1]. Como é sabido, os quatro genes descobertos até o momento que se relacionam com a gagueira envolvem o metabolismo lisossômico (veja aqui).
Não houve diferença entre os grupos em relação à quantidade de mielina. Este achado pode parecer incoerente com achados anteriores que sugerem baixa anisotropia funcional na substância branca de quem gagueja. Entretanto, os autores esclarecem que a baixa anisotropia pode ter outros fatores (como a orientação das fibras axonais e o calibre axonal), não sendo a quantidade de mielina o único fator [1].
Ao comentar o trabalho de Kate Watkins e colaboradores [1], três pesquisadores da área argumentam que este achado tem o potencial de reclassificar a gagueira na Classificação Internacional de Doenças (CID), fazendo com que deixe de ser classificada como um distúrbio de comunicação e passe a ser classificada como um distúrbio do movimento [2].
Referências
[1] Cler, G. J., Krishnan, S., Papp, D., Wiltshire, C. E. E., Chesters, J., & Watkins, K. E. (2021). Elevated iron concentration in putamen and cortical speech motor network in developmental stuttering. Brain, 144, 2979-2984.
[2] Sommer, M., SheikhBahaei, S., & Maguire, G. A. (2021). An unexpected iron in the fire of speech production. Brain, 144, 2904-2905.