Uma das perguntas mais ouvidas pelos fonoaudiólogos que trabalham com gagueira é: “Qual é a causa da gagueira?” Estima-se que 55% dos casos de gagueira persistente estejam relacionados à predisposição genética. Os outros 45% seriam devido a outros fatores, como lesão cerebral precoce ou reação autoimune cerebral.
Os geneticistas Carlos Frigerio-Domingues & Dennis Drayna publicaram recentemente um artigo de revisão sobre o papel da genética nos casos de gagueira persistente [1]. Segundo os autores, os últimos 40 anos possibilitaram um avanço considerável na compreensão dos fatores genéticos envolvidos na gagueira. Vamos relatar a seguir quais foram essas descobertas.
Estudos de gêmeos
Uma das maneiras de compreender a influência da genética em algum comportamento ou distúrbio é através de estudos de gêmeos. De 1976 a 2012, foram publicados nove estudos deste tipo relacionados à gagueira. Os principais achados podem ser assim resumidos:
- Quando se trata de gêmeos idênticos (que compartilham 100% da carga genética), há maior probabilidade de ambos apresentarem gagueira quando comparados a gêmeos fraternos (que compartilham 50% da carga genética).
- A concordância de gagueira em gêmeos idênticos é sempre inferior a 100%. Isso quer dizer que apenas fatores genéticos não explicam toda a predisposição para gagueira.
- A maior parte dos estudos sugere que o grau de herdabilidade da gagueira é de cerca de 80%, ou seja, 80% da gagueira se deve a fatores genéticos, enquanto os demais 20% se devem a fatores não genéticos.
Estudos de ligação e de identificação de genes
Também foram realizados estudos de ligação, os quais procuram identificar regiões do código genético que podem conter genes que predispõem à gagueira. De 2004 a 2014, foram publicados oito estudos deste tipo. Dos 23 pares de cromossomos no genoma humano, 14 deles apresentam potencial para conter genes de gagueira. São eles: 2, 3, 5, 7, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 18, 20 e 21.
Há ainda outros estudos, que são os de identificação de genes. Até o momento, foram identificados quatro genes que predispõem à gagueira: GNPTAB, GNPTG, NAGPA e AP4E1.
Um estudo com 44 famílias consanguíneas no Paquistão indicou o cromossomo 12 como altamente provável para conter genes de gagueira. O sequenciamento genético de uma região específica do cromossomo 12 levou ao gene GNPTAB, que codifica a enzima fosfotransferase. Foi encontrada uma mutação principal deste gene, relacionada à gagueira, que envolve a substituição do ácido glutâmico por lisina na posição 1200 do gene. Esta mutação é fundadora, ou seja, ocorreu há milhares de anos e foi, inicialmente, associada a uma população isolada. Também foram encontradas outras mutações no GNPTAB, todas mutações raras e associadas à gagueira persistente.
A descoberta de mutações no gene GNPTAB induziu estudos adicionais em outros dois genes relacionados: o GNPTG e o NAGPA, ambos localizados no cromossomo 16. O gene GNPTG codifica uma subunidade proteica que se combina com a subunidade proteica codificada pelo gene GNPTAB: as proteínas codificadas por esses dois genes formam, ao final, a enzima fosfotransferase. Por outro lado, o gene NAGPA codifica a enzima de descobertura, também relacionada ao funcionamento da fosfotransferase. Essas duas enzimas (fosfotransferase e de descobertura) atuam em uma via bioquímica relacionada aos lisossomos. Diversas mutações nos genes GNPTG e NAGPA foram encontras em sujeitos com gagueira persistente. As mutações no gene NAGPA são, até o momento, exclusivamente relacionadas à gagueira, ou seja, não se conhece outra doença ou distúrbio humano com mutação neste gene. Importante destacar que essas mutações não estão restritas às famílias paquistanesas, sendo comprovadamente encontradas em sujeitos por todo o mundo, inclusive no Brasil.
Quando as mutações dos genes GNPTAB e GNPTG estão presentes no cromossomo herdado do pai e no cromossomo herdado da mãe (condição de homozigose), eles causam uma doença genética, chamada de mucolipidose. A mucolipidose está associada a uma falha na via bioquímica relacionada aos lisossomos. A mucolipidose tipo II está associada à mutação dos dois alelos do gene GNPTAB no cromossomo 12, o que ocasiona uma atividade extremamente baixa (até 3% do esperado) da fosfotransferase, levando os sujeitos acometidos a óbito na primeira década de vida. A mucolipidose tipo IIIA está associada à mutação dos dois alelos do gene GNPTG no cromossomo 16, havendo baixa atividade (até 15% do esperado) da fosfotransferase, levando os sujeitos acometidos a óbito na segunda década de vida. Os sujeitos com gagueira que apresentam mutação nos genes GNPTAB e GNPTG são heterozigotos, ou seja, a mutação está presente em apenas um dos alelos. Um estudo adicional já demonstrou que sujeitos com gagueira não apresentam sinais de mucolipidose, embora a atividade da enzima de descobertura seja estimada em 50% do esperado.
Um estudo de uma grande família de Camarões indicou o cromossomo 15 como altamente provável para conter genes para gagueira. Foram identificadas duas mutações de aminoácidos no gene AP4E1. Essas duas mutações estiveram presentes em outros 96 sujeitos camaronenses com gagueira e ausentes em 96 sujeitos camaronenses sem gagueira. Mais uma vez, é importante destacar que essas mutações não estão restritas a Camarões, sendo comprovadamente encontradas em sujeitos por todo o mundo, inclusive no Brasil.
O gene AP4E1 codifica uma subunidade do complexo proteico adaptador. Existem cinco desses complexos em seres humanos. Esses complexos reconhecem que os endossomos estão carregados e agem para alocar corretamente esses carregamentos dentro da célula. Sabe-se que o componente AP4 interage com a enzima de descoberta codificada pelo gene NAGPA e que mutações no gene AP4E1 anulam essa interação. Assim, o gene AP4E1 também está relacionado, mesmo que indiretamente, com a via bioquímica dos lisossomos.
Os sujeitos com gagueira são heterozigotos em relação às mutações no gene AP4E1. Entretanto, sujeitos homozigotos apresentam distúrbios neurológicos como paraplegia espástica ou paralisia cerebral.
Portanto, a gagueira é atualmente reconhecida como uma doença genética complexa, sendo que todos os quatro genes identificados até o momento estão relacionados ao tráfego intracelular.
Qual seria o peso desses quatro genes para a totalidade dos casos de gagueira? Perspectivas mais conservadoras estimam que esses genes expliquem 12% dos casos de gagueira persistente, enquanto perspectivas menos conservadoras estimam que esses genes expliquem 20% dos casos de gagueira persistente.
Os estudos sobre genética, além de nos ajudarem a compreender cientificamente a gagueira, também ajudam a reduzir o estigma social que cerca a gagueira. Saber que a maioria dos casos de gagueira apresenta predisposição genética e, mais ainda, já haver a identificação de alguns genes, certamente ajuda a mudar o estereótipo que cerca a gagueira e as pessoas que gaguejam.
Referência
[1] Frigerio-Domingues, C. & Drayna, D. (2017). Genetic contributions to stuttering: the current evidence. Molecular Genetics & Genomic Medicine, 5, pp. 95-102. [Artigo de acesso aberto].