Gagueira e infecções (II)

fev 10, 2014 | por Sandra Merlo | Gagueira, Infecções

Ilustração do rotavírus. Um estudo relacionou a ocorrência de reação autoimune a este vírus a um caso de gagueira.

Rotavírus

O rotavírus afeta principalmente o trato gastrointestinal, provocando diarreia, vômitos e febre. Como existem três tipos diferentes de vírus que podem infectar os seres humanos, uma mesma pessoa pode desenvolver gastroenterite por rotavírus até três vezes.

A infecção por rotavírus afeta mais as crianças devido aos baixos hábitos de higiene desta faixa etária. Assume-se que toda criança terá pelo menos uma infecção por rotavírus até os cinco anos. O rotavírus é a principal causa de surtos de diarreia em creches e pré-escolas.

O rotavírus é transmitido pelas fezes. Mãos, objetos, água e alimentos contaminados podem infectar ao entrar em contato com a boca. O diagnóstico laboratorial é feito através de análise das fezes nos primeiros dias da doença.

Em até 5% dos casos, o vírus pode adentrar no sistema nervoso central e provocar encefalite. Mesmo nos casos em que há comprometimento neurológico, os exames laboratoriais (como exames de sangue, punção de líquor, eletroencefalograma e neuroimagem) podem ter resultados normais.

Os sintomas de fala mais tipicamente relatados devido à encefalite por rotavírus são mutismo, afasia de expressão, fala lentificada e disartria. Tendo em vista que as infecções por rotavírus acometem principalmente crianças, as complicações neurológicas também acometem mais esta faixa etária. Assim, por exemplo, Nigrovic & colaboradores relataram o caso de uma menina de três anos que apresentou inflamação cerebelar por rotavírus [veja o caso na íntegra aqui]. Dentre os sintomas neurológicos apresentados, estão mutismo (em um primeiro momento) e afasia de expressão (na evolução do caso).

 

Caso clínico

A fonoaudióloga Catherine Theys & colaboradores relataram o caso de um adolescente que começou a apresentar gagueira subitamente.

Aos 16 anos, D. teve uma infecção de garganta seguida de diarreia, vômitos e desmaio. Levado ao hospital, diagnosticou-se infecção por rotavírus. D. ficou internado por uma semana, tendo recebido alta.

Dezessete dias depois, começaram a aparecer sintomas neurológicos: diminuição da temperatura corporal (36º C), dificuldades motoras (como andar e vestir), dor de cabeça, tontura, lentificação da fala, crises de choro e mudanças de humor. Levado ao hospital novamente, foram realizados os exames neurológicos de eletroencefalograma e de tomografia computadorizada, os quais apresentaram resultados normais. Quatro dias depois, também houve dificuldades motoras com as mãos, dificuldades para nomear objetos, gagueira e desmaio. D. não tinha histórico de gagueira e nem parentes com gagueira.

Os sintomas neurológicos se intensificaram e foi dada entrada no pronto socorro do hospital. Foram feitos os exames de eletrocardiograma, eletroencefalograma, ressonância magnética e punção lombar, sendo todos os resultados normais. Entretanto, como os sintomas sugeriam encefalite cerebelar, foi iniciado tratamento medicamentoso com aciclovir (um antiviral). Os sintomas neurológicos regrediram e D. recebeu alta dez dias depois.

Tendo os sintomas piorado novamente, D. foi levado a outro hospital. A neurologista que o atendeu sugeriu que os sintomas eram psicológicos, tendo em vista a inconsistência entre o exame clínico e os resultados dos exames laboratoriais. Além disso, ela também observou que a gagueira, a perda de força muscular e o problema de equilíbrio não eram constantes.

Encaminhado para avaliação psiquiátrica, concluiu-se que era improvável que D. estivesse simulando os sintomas ou que eles fossem resultado de um evento psicológico traumático.

A pedido do psiquiatra, o adolescente foi então avaliado por uma fonoaudióloga. D. relatou que a gagueira era pior quando estava mais cansado. Também relatou que ele continuava conversando com as pessoas, mesmo tendo dificuldades de fala.

As avaliações de fala foram feitas três vezes: quando D. tinha 16 anos e 9 meses, 17 anos e 18 anos.

Seis semanas depois do início dos sintomas e após o tratamento medicamentoso, D. passou então a receber tratamentos intensivos de fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupacional e hidroterapia. Durante dois meses, D. fazia os tratamentos diariamente.

Na primeira avaliação (aos 16 anos), a gagueira foi classificada como moderada e estava presente em todas as situações comunicativas (fala espontânea, leitura em voz alta, canto e sequências automáticas de dias da semana e de números). Na segunda e na terceira avaliações (17 e 18 anos, respectivamente), a gagueira já não estava mais presente em nenhuma das situações avaliadas, tendo havido remissão total.

A gagueira de D. era caracterizada:

  • Principalmente por repetições fônicas. Repetições de sílabas, alongamentos e bloqueios fônicos ocorriam em 20% das vezes.
  • Por ocorrer no início das palavras. Em 10% dos casos, ocorria no interior de palavras.
  • Por apresentar movimentos involuntários de olhos, cabeça e mãos.
  • Por não haver medo de falar ou fuga de situações de fala.

D. também apresentou leve agramatismo na fala espontânea (exemplo: “então em 30 de abril começar desmaiar”). D. não apresentou dificuldades significativas de acesso lexical.

O caso de D. seria o que se chama de “gagueira neurogênica”, ou seja, um caso de gagueira que inicia após dano no tecido cerebral.

Pela descrição do caso, percebe-se que três características são típicas de casos de “gagueira do desenvolvimento”: tipologia das hesitações gaguejadas, posição da gagueira na palavra e presença de movimentos involuntários associados à fala.

Por outro lado, o agramatismo não é típico da gagueira do desenvolvimento, mas pode ser explicado pelo envolvimento cerebelar.

Outra característica diferente do caso de D. em relação aos casos de gagueira do desenvolvimento é o fato de a gagueira ocorrer em todas as situações comunicativas (incluindo canto e sequências automáticas) e não apenas na fala espontânea e na leitura em voz alta.

Ainda outra característica diferente do caso de D. em relação aos casos de gagueira do desenvolvimento é não haver medo de falar ou fuga de situações de fala. Penso que isso pode ser explicado pelo fato de a gagueira de D. ter sido breve (durou pouco mais de três meses). Caso ele tivesse continuado a gaguejar e começado a experimentar situações de crítica à sua fala, o medo não teria aparecido?

O caso relatado por Theys & colaboradores indica que, se a gagueira iniciar ao mesmo tempo ou semanas depois de um período em que a criança teve diarreia e vômitos, pode ter sido causada por rotavírus. Nestes casos, geralmente vai haver outros sintomas neurológicos, além do problema na fala.