Gagueira e infecções (V)

dez 20, 2016 | por Sandra Merlo | Gagueira, Infecções

Ilustração do “Toxoplasma gondii“, protozoário causador da toxoplasmose. Um estudo encontrou grande incidência deste protozoário em crianças com gagueira.

Encontrei ainda outro artigo na interface de gagueira com infecções, que relaciona gagueira com toxoplasmose.

Toxoplasmose é a doença causada pelo protozoário Toxoplasma gondii [1, 2].

Quando um indivíduo é infectado pelo T. gondii, o que acontece? [1]

  • Em 80% dos casos, não vai haver nenhum sintoma. Ou seja, na maior parte dos casos, o indivíduo não se dá conta de que se infectou.
  • Em 20% dos casos, ocorrem febre e inflamação de linfonodos, havendo melhora espontânea em algumas semanas.

A forma mais comum de transmissão do T. gondii é através dos felinos, particularmente dos gatos [1, 2]. Os ovos do protozoário podem ser encontrados nas fezes dos gatos. Importante destacar que os gatos não adoecem quando infectados pelo T. gondii. Para que um ser humano seja infectado, basta que ele toque em algum objeto que tenha entrado em contato com as fezes do gato e, na sequência, leve a mão à boca.

Outra forma de contaminação é através da ingestão de alimentos contaminados [1, 2]. A carne de animais contaminados contém cistos microscópicos de T. gondii. Após a ingestão de carne crua, mal cozida ou mal passada, o protozoário é liberado no sistema digestivo humano.

Uma vez infectado, o parasita não é eliminado do organismo [1, 2]. Ele permanece na forma de cistos microscópicos, principalmente nos músculos esqueléticos e no sistema nervoso central [1, 2]. Quando houver queda de imunidade, os protozoários conseguem atacar o organismo. As agressões costumam ocorrer em órgãos importantes [1]:

  1. No sistema nervoso central, causa encefalite, com os sintomas de febre, cefaleia, convulsões e coma. É a neurotoxoplasmose.
  2. No coração, causa miocardite.
  3. Nos pulmões, causa pneumonite, com alterações difusas e bilaterais.
  4. Nos olhos, causa coriorretinite, com redução da acuidade visual ou até mesmo cegueira.

Para indivíduos com sintomas de toxoplasmose ativa, o tratamento é feito com dois medicamentos, por pelo menos três semanas [1].

A taxa de infecção pelo T. gondii costuma variar de acordo com a ingestão de carne. Nos estados do sul do Brasil, por exemplo, estima-se que cerca de 90% da população seja infectada [1]. No estado de São Paulo, a incidência é um pouco menor: de 70 a 80% da população é infectada [1]. Em relação à população mundial, cerca de 30% é infectada [2].

 

Estudo clínico

O médico Tuncay Celik & colaboradores [3] realizaram um estudo pioneiro sobre uma possível relação entre gagueira infantil e infecção por T. gondii.

Participaram do estudo 65 crianças com gagueira e 65 crianças sem gagueira, entre 4 e 14 anos, pareadas para sexo e idade. O diagnóstico de gagueira seguiu orientações do DSM IV (“The Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – 4th edition”).

Através da coleta de amostras de sangue, foram analisadas as concentrações de anticorpos anti-T. gondii. As crianças com gagueira infectadas pelo protozoário também foram submetidas a exames neurológicos: exame clínico, eletroencefalografia (EEG) e ressonância magnética de crânio (RM).

A análise sorológica indicou diferença significativa entre os grupos: 18 das 65 crianças com gagueira apresentaram anticorpos anti-T. gondii contra apenas 3 das 65 crianças sem gagueira. Ou seja, 28% das crianças com gagueira já haviam sido infectadas contra apenas 5% das crianças sem gagueira. A incidência de anticorpos anti-T. gondii na amostra de crianças com gagueira também é maior na comparação com a incidência geral para crianças abaixo de 12 anos (cerca de 10%).

Os exames neurológicos (clínico, EEG e RM) foram considerados normais nas crianças com gagueira soropositivas para T. gondii.

A neurotoxoplasmose clássica afeta apenas indivíduos imunodeprimidos (como transplantados e infectados por HIV) [1, 2]. Por outro lado, indivíduos imunocompetentes que já foram infectados pelo T. gondii apresentam infecção crônica e latente, mas não na forma clássica [2]. A infecção crônica tem sido cada vez mais associada a alterações neuropsiquiátricas, tais como depressão e esquizofrenia [2, 3]. O T. gondii é capaz de infectar neurônios e, desta forma, induzir a biossíntese de serotonina e dopamina, alterando a concentração desses neurotransmissores no sistema nervoso central [2, 3]. Quando isso acontece, o tratamento faz uso de medicamentos antagonistas desses neurotransmissores [2, 3].

Há cerca de 20 anos, já se sabe que a dopamina é um dos neurotransmissores envolvidos na gagueira. A dopamina estaria presente em altas concentrações no cérebro de pessoas com gagueira em comparação a pessoas sem gagueira, particularmente na circuitaria que envolve os núcleos da base e os córtices frontal e temporal [4]. Também se sabe que medicamentos antagonistas de dopamina podem melhorar a gagueira, embora com efeitos colaterais importantes [5]. Assim, se um dos mecanismos de ação do T. gondii em sua forma crônica e latente é através da síntese dopaminérgica, faz sentido que esta infecção possa induzir o surgimento da gagueira em certos indivíduos (talvez naqueles que já apresentam predisposição genética para distúrbios da fluência).

 

Referências

[1] Mendonça, J. S. (2011). Toxoplasmose. Entrevista a Drauzio Varella. Acesso em dez 2016. Disponível aqui.

[2] Henriquez, S. A.; Brett, R.; Alexander, J.; Pratt, J. & Roberts, C. W. (2009). Neuropsychiatric disease and Toxoplasma gondii infection. Neuroimmunomodulation, 16, 122-133.

[3] Celik, T.; Gokcen, C.; Aytas, O.; Ozcelik, A.; Celik, M. & Coban, N (2015). The prevalence of anti-Toxoplasma gondii antibodies in stutterers is higher than in the control group. Folia Parasitologica, 62, 66 (5 pp).

[4] Wu, J. C.; Maguire, G.; Riley, G.; Lee, A.; Keator, D.; Tang, C.; Fallon, J. & Najafi, A. (1997). Increased dopamine activity associated with stuttering. Neuroreport, 8, 767-770.

[5] Stager, S. V.; Calis, K.; Grothe, D.; Bloch, M.; Berensen, N. M.; Smith, P. J. & Braun, A. (2005). Treatment with medications affecting dopaminergic and serotonergic mechanisms: effects on fluency and anxiety in persons who stutter. Journal of Fluency Disorders, 30, 319-35.