Um dos meus pacientes passou por uma situação bastante preconceituosa durante sua busca por recolocação profissional. Ele trabalha na área de informática e está buscando oportunidades profissionais mais adequadas à sua qualificação e experiência.
Uma das estratégias neste processo consistiu em cadastrar o currículo em vários sites de empregos. A situação pode ser esquematizada da seguinte forma:
- Site 1: o currículo está disponível há onze meses e meu paciente recebeu chamadas para entrevistas.
- Site 2: currículo está disponível há dez meses e meu paciente também recebeu chamadas para entrevistas.
- Site 3: currículo está disponível há apenas dois meses e meu paciente já recebeu chamadas para entrevistas.
- Site 4: currículo está disponível há sete meses e meu paciente não recebeu *nenhuma* chamada para entrevista. Este foi o único site em que ele informou explicitamente que apresenta distúrbio de fala. No sistema deste site, há um item específico sobre deficiência. Meu paciente selecionou a opção “grandes alterações na fala” (sem maiores especificações). Após sete meses com o currículo no site e nenhuma chamada para entrevista, ele resolveu retirar a informação sobre a deficiência na fala. Resultado: em apenas uma semana, recebeu dois convites para entrevistas.
Antes da retirada da informação sobre o distúrbio de fala, tínhamos dúvida se esta realmente era a causa de ele não ser chamado para entrevistas ou se, porventura, aquele site específico era pouco acessado por recrutadores da área de informática. Entretanto, essa dúvida se desfez quando ele recebeu dois convites para entrevistas logo após retirar a informação.
Sim, acho que foi uma situação de preconceito, porque os recrutadores automaticamente assumiram que uma pessoa com “grande alteração na fala” não era um candidato interessante ou competente.
Eu me pergunto o que um recrutador entende quando lê “grandes alterações na fala”. Eu mesma, como fonoaudióloga, ficaria confusa ao ler esta informação. Será que essa pessoa teria uma grande dificuldade articulatória devido à, por exemplo, paralisia facial? Será que essa pessoa teria uma grande nasalidade na fala devido à fissura labiopalatina? Será que essa pessoa teria um grave problema vocal devido a, por exemplo, edema de Reinke? Será que essa pessoa teria uma gagueira muito grave? Enfim, se para mim, que sou especialista em distúrbios da comunicação, uma informação como “graves alterações na fala” mais prejudica do que ajuda, então como é para um recrutador, que deve ser praticamente leigo no assunto?
É claro que ter uma “grande alteração na fala” não é inócuo. Mas existem funções compatíveis. Inclusive existem funções que aparentemente não são compatíveis, mas que, com o tempo ou com a experiência prática, podem mostrar-se perfeitamente plausíveis. Meu paciente, por exemplo, mesmo tendo uma “grande alteração na fala” já foi diversas vezes chamado para dar palestras e aulas em razão de sua competência técnica. Excluir um candidato apenas com base na informação de que ele possui uma “grande alteração na fala” denota um pensamento preconcebido: o de que aquele candidato não terá condições de exercer adequadamente sua função. Mas sem conhecer esse candidato pessoalmente, sem saber de seus pontos fortes e sem saber como ele lida com sua “grande alteração na fala”, a conclusão pode ser, além de precipitada, incorreta.
Talvez a própria situação de indicar “grande alteração na fala” no currículo induza ao preconceito e à discriminação. Ao ler essa informação, o recrutador automaticamente imagina alguma alteração de fala que ele considera importante (e que pode não ser a que o candidato apresenta) e imagina que essa alteração de fala afeta todo o desempenho do candidato. Neste contexto, a ação mais natural é a exclusão do candidato.
Uma possibilidade é que o recrutador imagine um candidato com gagueira grave e que conclua que esse candidato não será capaz de interagir com a equipe, fazer telefonemas ou apresentações em público. Isso pode ser verdade, mas também pode não ser. Existem pessoas com gagueiras graves que têm dificuldades em muitas situações de comunicação. Entretanto, essas pessoas às vezes são extremamente competentes tecnicamente (até como mecanismo psicológico compensatório) e são capazes de resolver o que outros profissionais não resolvem. Também existem pessoas que gaguejam gravemente apenas na fala espontânea e que apresentam fluência muito boa em situações em que a fala é preparada com antecedência (como no caso de apresentações em público). Ou seja, sem conhecer a real dinâmica de fala do candidato pode ser muito difícil tecer uma conclusão acertada.
Qual deve ser a atitude de uma pessoa que tenha uma “grande alteração na fala” ao preencher um currículo? Informar sua situação e correr o risco de ser preconceituosamente preterido? Ou não informar sua situação e ter maior probabilidade de ser chamado para entrevistas? Eu escolheria a segunda opção, embora ela englobe o risco de eu ser posteriormente acusada pela omissão. Mas assim, pelo menos, teria a oportunidade de esclarecer a questão pessoalmente. O recrutador teria realmente a oportunidade de avaliar o grau da minha dificuldade para falar (sem deduções hipotéticas de qual seria e como seria essa dificuldade de fala). E eu teria a oportunidade de explicar o que possivelmente causou meu problema de fala, desde quando tenho o problema, o que fiz e o que faço para melhorar, como meu problema afeta minha atuação profissional, quais são as tarefas que me sinto preparada e as que não me sinto preparada para fazer (como todo mundo, aliás).