Gagueira e mercado de trabalho (III)

jul 22, 2013 | por Sandra Merlo | Gagueira, Mercado de trabalho

A gagueira interfere no desempenho profissional em alguns momentos, mas tende a não afetar a escolaridade e o nível de renda.

Neste terceiro texto da série, comparo dois estudos: um deles reporta opiniões de pessoas com gagueira em relação ao mercado de trabalho e o outro retrata dados concretos sobre a participação de pessoas que gaguejam no mercado de trabalho. São discutidas questões como:

  • A gagueira interfere na qualificação profissional?
  • A gagueira aumenta as chances de desemprego?
  • A gagueira diminui salários?

Joseph Klein & Stephen Hood publicaram um estudo sobre a opinião de pessoas com gagueira a respeito do mercado de trabalho. Participaram do estudo 232 adultos com gagueira, entre 18 e 70 anos. Os sujeitos responderam a um questionário com 17 afirmações sobre gagueira e deveriam indicar o quanto concordavam ou discordavam com cada afirmação.

A maioria dos sujeitos referiu que a gagueira, em alguns momentos, interferiu no desempenho profissional. Isso é esperado, certo? A partir da constatação de que a pessoa tem uma dificuldade para falar, é esperado que essa dificuldade interfira em seu desempenho (senão a gagueira não seria um distúrbio, seria apenas uma variação linguística). Importante pontuar que os sujeitos da pesquisa não disseram que a gagueira sempre interfere no desempenho, mas apenas em alguns momentos.

A maioria dos sujeitos também referiu que nunca recusou uma promoção ou um emprego melhor devido à gagueira. Excelente, não é? Sinal de que a gagueira não paralisou a maioria dos sujeitos que participaram da pesquisa.

Por outro lado, para as afirmações abaixo, as opiniões foram divididas. Aproximadamente metade dos sujeitos concordou e a outra metade discordou que:

  • Buscou um emprego no qual precisa falar pouco;
  • Teria melhor desempenho no trabalho se não gaguejasse;
  • Teria maiores chances de ser promovido se não gaguejasse;
  • Ganharia mais dinheiro se não gaguejasse;
  • Teria um emprego diferente ou melhor se não gaguejasse;
  • Teria construído uma carreira diferente ou melhor se não gaguejasse.

Metade dos sujeitos da pesquisa não concordou com as afirmações acima. Ou seja, o que essas pessoas estão dizendo é que a gagueira não traz grandes impedimentos para suas vidas profissionais.

E quem é a outra metade dos sujeitos, aqueles que concordaram com as afirmações acima? Três fatores se mostraram importantes:

  1. São pessoas com gagueira moderada ou grave e não com gagueira leve. No estudo, 45% relataram gagueira leve, 44% gagueira moderada e 11% gagueira grave. De fato, graus mais intensos de gagueira realmente podem dificultar a atuação profissional.
  2. São homens e não mulheres. Este é um resultado intrigante, porque, historicamente, as mulheres sempre tiveram menos trabalho e salários menores em relação aos homens. Então é intrigante que sejam os homens que se queixem mais dos efeitos da gagueira na atuação profissional.
  3. São pessoas com nível médio de escolaridade e não com nível superior. Como o número de pessoas com nível médio é maior do que o número de pessoas com nível superior, este achado pode indicar que, quanto maior a competição no mercado de trabalho, mais a gagueira se torna importante.

 

Jan McAllister & colaboradores publicaram um estudo sobre o impacto da gagueira na escolaridade e no mercado de trabalho. A base de dados utilizada no estudo foi o “National Child Development Study” (Estudo Nacional de Desenvolvimento Infantil). O corpus original era composto por 18.558 crianças que nasceram na Grã-Bretanha em 1958. Foram feitas coletas de dados no nascimento e também aos 7, 11, 16, 23, 33, 42, 46 e 50 anos de idade. No protocolo de pesquisa referente às idades de 7 e 16 anos, explicitamente constavam duas perguntas sobre gagueira (“Seu filho gagueja?” e “A gagueira é mais para o leve ou mais para o grave?”).

No estudo de Jan McAllister & colaboradores, os sujeitos no banco de dados do “National Child Development Study” foram divididos em dois grupos: com e sem relato de gagueira aos 16 anos. Foram excluídos os sujeitos com relato de gagueira aos 7 anos, mas não mais aos 16 anos (2.864 sujeitos no total). Em seguida, os dados foram avaliados nas idades de 23 e 50 anos.

Os resultados principais são elencados a seguir.

 

Gagueira aos 16 anos

Aos 16 anos, 1,5% (217 sujeitos) apresentava gagueira de forma crônica. Destes, 80% (174 sujeitos) eram rapazes. Os demais 98,5% (15.694 sujeitos) não gaguejavam. Destes, 50% (7.823 sujeitos) eram rapazes. Três variáveis estavam associadas ao relato de gagueira aos 16 anos: ser do sexo masculino, ter sido alvo de zombaria na infância e apresentar maior pontuação em testes de habilidade cognitiva.

 

Abandono escolar

Na Grã-Bretanha, a escolaridade obrigatória vai dos 5 aos 16 anos (ensinos primário e secundário). O relato de gagueira aos 16 anos não se correlacionou com maiores índices de abandono escolar. Outras variáveis se mostraram importantes, tais como: os próprios pais terem abandonado a escola, ser de classe socioeconômica mais baixa e apresentar menor pontuação em testes de leitura.

 

Desemprego aos 23 anos

O relato de gagueira aos 16 anos não se correlacionou com maiores índices de desemprego aos 23 anos. Outras variáveis se mostraram importantes, tais como: ser do sexo masculino e apresentar menor pontuação em testes de habilidade cognitiva.

 

Qualificação aos 50 anos

O relato de gagueira aos 16 anos não se correlacionou com menores índices de qualificação profissional aos 50 anos. Outras variáveis se mostraram importantes, tais como: ser do sexo feminino, os pais terem abandonado a escola, ser de classe socioeconômica mais baixa e apresentar menor pontuação em testes de leitura.

 

Remuneração aos 23 e aos 50 anos

O relato de gagueira aos 16 anos também não se correlacionou com menor remuneração aos 23 ou aos 50 anos. Outras variáveis se mostraram importantes, tais como: ser do sexo feminino, apresentar menor pontuação em testes de habilidade cognitiva e ter sido alvo de zombaria na infância.

 

O estudo indicou, portanto, que ter gagueira na adolescência não se correlaciona com menor escolaridade ou com menor renda na vida adulta. As dificuldades de leitura e o nível intelectual na infância e na adolescência, por outro lado, são fatores muito mais importantes para explicar o abandono escolar, o desemprego, a menor qualificação profissional e/ou a menor remuneração na vida adulta. Mas é importante lembrar que os resultados do estudo de Jan McAllister & colaboradores se aplicam principalmente a casos de gagueiras leves, que eram a grande parte (92%) dos casos no estudo.

Em se tratando apenas de casos mais leves de gagueira, os dois estudos apontam para a mesma direção: a gagueira não interfere de forma significativa na atuação profissional. Certamente isso é estimulante. Entretanto, para casos mais graves, a gagueira deve interferir de forma negativa na atuação profissional, sim. A meu ver, isso levanta duas questões:

  • A necessidade de, cada vez mais, aprimorarmos as estratégias de tratamento para que o grau de gagueira chegue pelo menos no nível leve no pós-tratamento. Além disso, a necessidade de que o tratamento da gagueira alcance todas as parcelas sociais.
  • Se casos mais graves de gagueira interferem na atuação profissional, a gagueira deveria ou não ser considerada uma deficiência? Este é o assunto do próximo e último texto desta série.