Gagueira e mercado de trabalho (IV)

jul 29, 2013 | por Sandra Merlo | Gagueira, Mercado de trabalho

A gagueira deve ou não ser considerada deficiência?

Neste último texto da série, abordo uma questão ainda em aberto: a gagueira deve ou não ser considerada deficiência? A resposta para esta pergunta influencia diretamente a atuação de pessoas que gaguejam no mercado de trabalho.

O Decreto nº 3.298 (1999) especifica o que é oficialmente considerado como deficiência no Brasil.

A definição de deficiência dada pelo Decreto refere-se à “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”. Seguindo essa definição, a gagueira poderia ser considerada deficiência, porque implica anormalidade de uma função (a fala), a qual, em alguns casos, gera incapacidade para o desempenho de atividades do cotidiano.

As deficiências contempladas pelo Decreto são:

  1. Deficiência física: alteração de um ou mais segmentos do corpo.
  2. Deficiência visual: baixa visão ou cegueira no melhor olho e com a máxima correção óptica.
  3. Deficiência auditiva: perda bilateral acima de 40 dB nas frequências de 500 a 3000 Hz.
  4. Deficiência mental: inteligência significativamente inferior à média da população.

O Decreto enfatiza que as alterações devem ser suficientes para produzir prejuízos significativos no desempenho de vida diária. Vamos tomar o caso da deficiência auditiva como guia. Segundo a definição do Decreto, não é qualquer perda auditiva que é considerada como deficiência: apenas perdas bilaterais de mais de 40 dB nas frequências da fala. Assim:

  • Se uma pessoa possui uma grande perda auditiva em apenas uma das orelhas, ela não é considerada deficiente auditiva.
  • Se uma pessoa possui perda de 40 dB ou menos, ela também não é considerada deficiente auditiva. Ou seja, perdas auditivas leves (aquelas até 40 dB) não são consideradas como deficiência auditiva.
  • Se a perda auditiva ocorre fora das frequências mais importantes para a fala (de 500 a 3000 Hz) também não é considerado como deficiência auditiva.

Com isso quero enfatizar que o Decreto não considera qualquer perda de função como deficiência: é imprescindível haver prejuízo importante para o desempenho de vida diária. Este mesmo raciocínio poderia se aplicar à gagueira: não seria qualquer grau de gagueira considerado como deficiência, mas apenas aqueles que implicam prejuízos significativos para a comunicação falada. No texto anterior desta série, fiz referência a dois estudos que concluíram que casos leves de gagueira não trazem prejuízos significativos para a escolarização e a atuação profissional. Assim, a legislação poderia contemplar casos de gagueira grave como deficiência. Neste sentido, teria que ser criada uma categoria que contemplasse os distúrbios de comunicação, porque nenhuma das categorias existentes (física, visual, auditiva e mental) é adequada para a gagueira. Esta categoria traria a especificação do percentual mínimo de sílabas gaguejadas na fala espontânea e na leitura em voz alta necessário para a caracterização da gagueira como deficiência. Geralmente considera-se como gagueira grave acima de 15% de sílabas gaguejadas na fala.

A inserção da gagueira grave como deficiência poderia trazer benefícios importantes para esta população. O Decreto prevê a chamada “equiparação de oportunidades” (Art. 15) para os portadores de deficiências, que inclui:

  • Reabilitação integral, ou seja, tratamento completo para a deficiência. No caso da gagueira, isso incluiria tratamentos nas mais variadas esferas: fonoterapia, uso de tecnologia, medicação, psicoterapia.
  • Formação e qualificação profissional.
  • Escolarização com os apoios necessários.
  • Orientação individual, familiar e social.

É também este Decreto que regulamenta a inserção da pessoa com deficiência no mercado de trabalho, estabelecendo a porcentagem de funcionários com deficiência que uma empresa deve ter (Art. 36) e a inscrição em concursos públicos em cargos compatíveis com a deficiência (Art. 37).

Na prática, o que eu vejo é que casos graves de gagueira são considerados como deficiência. O empregador, ao se deparar com um candidato com gagueira grave, não equipara esse candidato com os que apresentam fala normal, mas também não pode incluí-lo na cota de deficientes estipulada pelo Decreto. Em concursos públicos, o candidato com gagueira grave não pode se inscrever como deficiente, mas, no momento da prova prática ou da perícia médico-psicológica, também não será considerado normal (veja este caso, que foi parar na Justiça). Neste sentido, penso que a inclusão da gagueira grave como deficiência poderia ser um meio de equiparação de oportunidades para esta população.