Gagueira e paralisia facial

out 12, 2021 | por Sandra Merlo | Casos clínicos, Gagueira, Últimas descobertas

Homem de 62 anos com gagueira desde a infância apresentou melhora total da gagueira após paralisia facial.

O neurocientista italiano Pierpaolo Busan e colaboradores publicaram um artigo relatando melhora total da gagueira em um adulto após lesão iatrogênica do nervo facial [1].

 

Caso clínico

O paciente apresentava gagueira grave desde a infância, caracterizada principalmente por longos bloqueios no início de palavras.

Aos 62 anos, ele foi encaminhado para neurocirurgia devido a um tumor benigno no nervo vestíbulo-coclear esquerdo, o qual já estava com cerca de 9 mm de diâmetro. Naquele momento, o paciente já apresentava perda auditiva à esquerda. Foi realizada retirada cirúrgica do tumor, com monitoramento intraoperatório dos potenciais evocados dos nervos trigêmeo e facial. Um dia após a cirurgia, o paciente passou a apresentar paralisia facial à esquerda. A gagueira desapareceu completamente quando a paralisia facial se instalou. Um ano após, o paciente ainda não havia se recuperado da paralisia facial e a gagueira continuava ausente.

Não foi a perda auditiva que causou a melhora total da gagueira, tendo em vista que o paciente já estava com surdez à esquerda quando foi operado. Assim, a melhora da gagueira não pode ser atribuída à mudança no feedback auditivo. Como a melhora da gagueira ocorreu após a paralisia facial, os autores especularam que foi a mudança no feedback proprioceptivo e motor que fez com que a gagueira melhorasse. O nervo facial é responsável pela motricidade da maior parte dos músculos da expressão facial (como o orbicular da boca e o bucinador). Com os músculos do lado esquerdo da face paralisados, o paciente não podia mais produzir a fala da maneira como sempre produziu, sendo obrigado a fazer novos ajustes motores para compensar a paralisia. Isso faz sentido com o que se sabe a respeito da neurobiologia da gagueira. Sabe-se que o principal déficit neurobiológico da gagueira está na alça córtico-estriado-tálamo-cortical, a qual não temporaliza adequadamente os sons da fala ao utilizar pistas internas (para maiores detalhes, veja aqui). Por outro lado, a temporalização da fala pode se normalizar quando a pessoa que gagueja consegue se valer de pistas externas, como fala ou leitura em coro. Com a instalação da paralisia facial, o paciente passou a contar com uma nova pista externa robusta e constante para temporalizar sua fala. Os autores especularam que, após a instalação da paralisia facial, a fala do paciente não pode mais ser processada apenas utilizando pistas internas devido à grande alteração no feedback proprioceptivo e motor da face. Neste sentido, os autores pretendem continuar acompanhando este paciente para saber se a gagueira pode reaparecer após alguns anos, quando, em tese, o paciente já poderá ter aprendido a compensar a paralisia facial e a fala poderá voltar a ser processada apenas com pistas internas.

 

Referência

[1] De Bonis, P.; Busan, P.; D’Ausilio, A.; Labanti, S.; Cavallo, M. A. & Fadiga, L. (2020). Developmental stuttering disappearance after iatrogenic lesion of the facial nerve. Journal of Neurosurgical Sciences, 64 (3), 311-312.