Gagueira e rinite alérgica

mar 21, 2020 | por Sandra Merlo | Alergias, Comorbidades, Gagueira

A rinite alérgica é um fator de risco para o início precoce e a persistência da gagueira.

Uma nova pesquisa epidemiológica mostrou que adultos com rinite alérgica começaram a gaguejar mais cedo e tiveram maiores chances de persistência da gagueira em relação aos adultos com gagueira, mas sem rinite alérgica. A pesquisa foi realizada por Vladeta Ajdacic-Gross, epidemiologista da Universidade de Zurique (Suíça), e colaboradores, representando um avanço na compreensão e possivelmente no tratamento da gagueira.

 

O estudo

Os dados provieram de um estudo epidemiológico suíço, o estudo PsyCoLaus. O “PsyCoLaus” é a parte psiquiátrica (“Psy”) de um estudo epidemiológico maior, o CoLaus, realizado na cidade de Lausanne (“Laus”). O PsyCoLaus lança mão de entrevistas semiestruturadas sobre doenças neuropsiquiátricas, estressores psicossociais e comorbidades para fazer a coleta de dados.

A gagueira foi pesquisada com a seguinte pergunta (em francês): “Você teve gagueira durante a sua infância?” As possibilidades de respostas eram “Sim”, “Não” ou “Não sei”. Caso o participante respondesse “Sim”, perguntava-se em que idade a gagueira foi inicialmente percebida. Também se perguntava se a gagueira melhorou. Caso o participante respondesse “Sim”, perguntava-se em que idade isso ocorreu.

As alergias são comorbidades frequentes dos distúrbios neuropsiquiátricos. Neste caso, perguntava-se se a pessoa apresentava rinite alérgica, asma alérgica ou dermatite atópica. Para a rinite alérgica, também se perguntava se ela iniciou antes ou depois dos 16 anos (início precoce ou tardio, respectivamente).

Os participantes do PsyCoLaus foram 4.874 adultos, sendo 2.264 homens e 2.610 mulheres, com idades entre 35 e 82 anos.

Resultados

Dos 4.874 adultos que participaram, 118 (2,5%) afirmaram que gaguejaram na infância, sendo 71 homens e 47 mulheres.

Os pesquisadores investigaram como os 8 fatores seguintes se relacionaram com o início precoce e a persistência da gagueira:

  1. Distúrbios de neurodesenvolvimento (tiques, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, transtorno opositivo desafiador e transtorno de conduta);
  2. Transtornos de ansiedade de início precoce (ansiedade de separação e fobias);
  3. Violência entre os pais (ou seja, frequentes brigas e discussões entre os pais);
  4. Medo de maus tratos por parte dos pais;
  5. Experiências traumáticas antes dos 10 anos de idade;
  6. Rinite alérgica (de início precoce ou tardio);
  7. Dermatite atópica;
  8. Asma alérgica.

Os autores investigaram quais fatores de risco estavam relacionados a um início mais precoce da gagueira. Dos 8 fatores analisados, somente a rinite alérgica se mostrou significativa. Em média, os adultos relataram que a gagueira iniciou bem próximo aos 6 anos de idade. Os dados indicaram que adultos com rinite alérgica, independente da idade de início da rinite, começaram a gaguejar cerca de um ano e meio antes dos adultos com gagueira e sem rinite alérgica (ou seja, aos 4,5 anos). [A respeito deste resultado do início da gagueira, os autores do estudo fazem uma observação importante. Houve uma divergência considerável na idade de início da gagueira relatada pelos adultos com gagueira (6 anos) com a idade encontrada em estudos clínicos (3 anos). Quando a janela temporal entre a idade do relato e a idade de início do fenômeno é longa (como no estudo em questão) tende a haver um “efeito telescópico”, isto é, a idade reportada é maior do que a idade real de ocorrência. É um viés mnésico. Este efeito também leva a concluir que a idade de início da gagueira em casos de rinite alérgica seria, na verdade, 18 meses e não 4,5 anos].

Os autores também investigaram quais fatores de risco estavam relacionados à persistência da gagueira. Dos 118 adultos que relataram gagueira na infância, 36 deles continuaram gaguejando na vida adulta (30,5%). Dos 10 fatores analisados, a idade mais precoce de início da gagueira, ser do sexo masculino e a presença de rinite alérgica se mostraram significativos. Assim, os adultos que relataram início mais precoce da gagueira, os homens e os adultos que relataram início precoce de rinite alérgica foram aqueles com maior tendência de persistir gaguejando.

Os autores argumentam que existe um subgrupo de adultos com gagueira e rinite alérgica. Este dado corrobora dados prévios de que as alergias de forma geral (e não apenas a rinite alérgica) estão associadas à maior prevalência de distúrbios de fala em geral (e não apenas de gagueira) durante a infância e a adolescência (veja aqui e aqui).

Os autores também discutem hipóteses de como, em termos fisiológicos, a rinite alérgica aumenta as chances de persistência da gagueira. Tendo em vista que os dados indicaram que a rinite alérgica iniciou após a gagueira na amostra estudada (idade média de 6 anos para a gagueira e de 16 anos para a rinite alérgica), os autores não acreditam em um relação causal direta (ou seja, na rinite alérgica como responsável pelo início da gagueira). Os autores acreditam que haveria uma alteração imunológica compartilhada entre gagueira e rinite alérgica, sendo que a alteração imunológica é que seria responsável pela manifestação das duas condições. Sabe-se que distúrbios imunológicos são capazes de modificar o desenvolvimento cerebral, atrasando ou alterando o desenvolvimento tanto da substância cinzenta (cortical ou subcortical), quanto das conexões entre as redes neurais (substância branca). Então, a hipótese dos autores é que haveria alterações imunológicas ocorrendo no tecido cerebral das pessoas com gagueira.

De minha parte, posso dizer que observo com muita frequência a ocorrência conjunta de gagueira e rinite alérgica. O fato de a maioria dos pacientes que atendo serem da Grande São Paulo tem a ver com isso, porque níveis mais altos de poluição estão associados a um aumento nas alergias respiratórias. Entretanto, como indicou o estudo de Ajdacic-Gross & colaboradores [1], esta não é a única explicação. Além disso, embora o estudo tenha indicado 16 anos como a idade média de início da rinite alérgica, vejo muitos casos em que a rinite está presente desde o momento em que inicio o atendimento da criança com gagueira. A meu ver, isso tem grandes implicações na prática clínica:

  • Uma das implicações é que os fonoaudiólogos, sendo geralmente os profissionais a quem os pais recorrem ao perceber a gagueira em seu filho, devem perguntar sobre a presença de rinite alérgica e devem saber reconhecer os sinais cardinais da doença (a saber: obstrução nasal, secreção nasal e espirros). Lembrando que a rinite alérgica, justamente por ser uma alergia, também pode apresentar um padrão de melhora e piora, fazendo com que a observação deva ser contínua ao longo do tempo.
  • Outro aspecto importante é observar se os períodos de piora da gagueira coincidem com períodos de piora da rinite alérgica, o que, em diversos casos, de fato ocorre. Fazer anotações sistemáticas sobre o grau da gagueira e os sintomas da rinite alérgica auxilia muito na percepção da associação entre as duas condições.
  • O fonoaudiólogo deve encaminhar a criança para tratamento médico adequado (com o pediatra, otorrinolaringologista ou alergologista), acompanhando de perto a avaliação e a conduta médicas, bem como a aderência ao tratamento. Há casos em que o tratamento rigoroso e contínuo da rinite alérgica diretamente reduz a gravidade da gagueira, embora ainda não se saiba o mecanismo fisiológico através do qual isso ocorre. Uma possibilidade é a sugerida por Ajdacic-Gross & colaboradores [1]: o tratamento da rinite alérgica auxiliaria no controle das alterações imunológicas, inclusive em relação à ação no tecido cerebral. Outra possibilidade é que o tratamento da rinite alérgica auxiliaria na melhora da qualidade do sono, o qual está sabidamente alterado na presença de alergias. Essas duas hipóteses não necessariamente são excludentes entre si.

Enfim, o estudo de Ajdacic-Gross & colaboradores [1] é uma grata surpresa na literatura de gagueira e abre novas portas para se pensar a respeito deste distúrbio de fluência.

 

Referência

[1] Ajdacic-Gross, V., Rodgers, S., Müller, M., von Känel, R., Seifritz, E., Castelao, E., Strippoli, M.-P. F., Vandeleur, C., Preisig, M, & Howell, P. (2020). Hay fever is associated with prevalence, age of onset and persistence of stuttering. Advances in Neurodevelopmental Disorders, 4, 67-73.