Gagueira e sono (III)

jun 04, 2012 | por Sandra Merlo | Fisiologia, Gagueira, Sono

A apneia obstrutiva do sono provoca lesões em algumas regiões do cérebro. Um estudo sugeriu que a gagueira é um fator predisponente para a apneia do sono.

As questões que pretendo abordar neste post são:

  • Já foi demonstrada alguma relação direta entre apneia obstrutiva do sono e gagueira?
  • Os danos cerebrais causados pela apneia obstrutiva do sono podem prejudicar a terapia de gagueira?

Em 2002, foi publicado um estudo científico, no qual foi analisada a estrutura cerebral de adultos com e sem apneia obstrutiva do sono. Foram estudados 21 homens com apneia e outros 21 sem apneia. Como era de se esperar, foram encontradas lesões (perda de massa cinzenta) no grupo com apneia.

Algumas das lesões encontradas estavam em apenas um lado do cérebro (unilaterais, portanto). Para quem gosta de neuroanatomia, as lesões unilaterais foram:

  1. giro pós-central direito
  2. giro cingulado esquerdo
  3. giro temporal inferior direito
  4. hipocampo direito
  5. córtex cerebelar medial direito
  6. córtex frontal lateral esquerdo (áreas 45 e 47 de Brodmann)

Os autores do estudo entenderam que lesões unilaterais não poderiam ter sido causadas pelos episódios repetidos de falta de oxigênio no cérebro. Entenderam que eram lesões pré-existentes ao início da apneia e que, provavelmente, teriam favorecido seu início, já que todas elas estão relacionadas com sensibilidade, motricidade ou respiração.

O que chama atenção é a lesão na área de Broca (item 6), justamente uma das áreas afetadas em pessoas com gagueira. Pesquisando entre os sujeitos, os autores descobriram um dado interessantíssimo: 8 dos 21 adultos com apneia tinham histórico de gagueira (contra apenas 2 dos 21 que não tinham apneia). Os autores sugeriram que a presença de gagueira seja um fator predisponente para o desenvolvimento de apneia do sono.

Outras lesões ocorreram dos dois lados do cérebro (bilateralmente, portanto). Neste caso, foram consideradas consequência dos episódios repetidos de falta de oxigênio. De novo, para quem gosta de neuroanatomia:

  1. giro para-hipocampal
  2. giro frontal superior
  3. córtex parietal posterior (área 7 de Brodmann)

Chama atenção a lesão no córtex parietal posterior (item 3), porque podem ter consequências negativas para a terapia fonoaudiológica da gagueira. O córtex parietal posterior é responsável pela percepção consciente de sensações somáticas (tato, posição, temperatura e dor) [1]. Em alguns casos, uma das metas da terapia fonoaudiológica da gagueira é aprender a utilizar um grau menor de tensão muscular durante a fala (estratégia de suavização). Nesses casos, é importante aprender a perceber diferentes graus de tensão muscular empregados na fala, aprendizagem que é mediada pelo córtex parietal posterior. Para quem apresenta mais gagueira em consoantes, é fundamental conseguir perceber graus de tensão em lábios e língua. Já para quem apresenta mais gagueira em vogais, é fundamental perceber graus de tensão nas pregas vocais.

O córtex parietal posterior não trabalha sozinho, mas em conjunto com a audição e a visão.

Ele recebe informações do córtex auditivo secundário para que possa saber o resultado acústico de um movimento [1]. Neste sentido, também é fundamental aprender a ouvir um gesto articulatório produzido com graus variados de tensão muscular, porque este feedback é mais um indicador da necessidade de se reduzir ou não a tensão muscular no trato vocal.

O córtex parietal posterior também recebe informações do córtex visual secundário [1]. Isso explica por que algumas pessoas conseguem perceber melhor a tensão muscular depois que a veem. Dito de outra forma: algumas pessoas não conseguem sentir ou ouvir a tensão, mas, quando assistem a uma gravação em vídeo da sua fala, veem a tensão muscular utilizada para falar. E aí “cai a ficha”: “puxa, mas eu realmente faço muita força pra falar, hein?!”

E o que o córtex parietal posterior faz com todas essas informações? Envia para o córtex motor secundário, que diretamente planeja os gestos articulatórios [1]. Com as informações coletadas pelo córtex parietal posterior, o córtex motor secundário planeja os gestos articulatórios com maior precisão.

Ou seja, danos no córtex parietal posterior podem ser negativos para a terapia fonoaudiológica da gagueira, porque prejudicam a habilidade para perceber a musculatura do trato vocal e para programar gestos articulatórios mais suaves.

Portanto, este estudo mostra que há um ciclo vicioso. Por um lado, os danos cerebrais presentes em indivíduos com gagueira aumentam a chance de se desenvolver apneia do sono. Por outro, os danos cerebrais decorrentes da apneia do sono podem dificultar a melhora da gagueira.

 

 

Referência

[1] Guyton, A. C. & Hall, J. E. (1996). Somatic sensations: I. General organization; the tactile and position senses. In: Textbook of medical physiology (pp. 595-607). 9th ed. Philadelphia: W.B. Saunders.

 

* Agradeço ao leitor Leandro por ter indicado o artigo sobre apneia e gagueira.