Gagueira e tensão muscular (I)

ago 13, 2012 | por Sandra Merlo | Gagueira, Tensão muscular

O excesso de tensão muscular nos órgãos do sistema fonador piora consideravelmente a gagueira.

Na primeira série do blog, discutimos sobre a influência do sono na gagueira. Agora eu gostaria de abrir uma discussão sobre outro fator que geralmente influencia muito a gagueira: a tensão muscular. Eu me refiro especificamente ao aumento da tensão muscular durante a fala, especialmente durante a ocorrência de eventos de gagueira.

 

Aprendendo a tensionar a fala

Muitas pessoas com gagueira aumentam a tensão muscular quando percebem que vão gaguejar. São aqueles pacientes que dizem: “Quando eu gaguejo, forço para a palavra sair”. Não deixa de ser uma estratégia. Ruim, no caso, mas não deixa de ser uma estratégia. É bom tentar compreender por que pessoas com gagueira crônica fazem isso. Tenho uma hipótese. Vou fazer uma analogia: se estou empurrando um objeto (uma caixa, uma mesa, etc.) e ele não sai do lugar, o que eu faço? Simples: empurro com mais força. E vou colocando cada vez mais força até conseguir mover o objeto. Com a gagueira é a mesma coisa. A pessoa está falando e, de repente, a fala trava bruscamente. O que ela faz? Coloca mais força para destravar. É intuitivo.

O que ela não percebe é que, fazendo isso, tudo o que consegue é piorar a gagueira. Mas por quê? Se o objetivo é destravar a fala, os órgãos fonoarticulatórios (lábios, língua, véu palatino e pregas vocais) precisam movimentar. O aumento da tensão muscular faz com que os órgãos fiquem fixos na mesma postura articulatória. A manutenção da mesma postura articulatória aumenta a duração do bloqueio, o que piora a gagueira. Para destravar, o melhor é reduzir a tensão da musculatura fonoarticulatória, para que se possa deslizar mais facilmente de um movimento para outro. Mas isso não é nada intuitivo.

 

Tirando a prova

Isso é tão pouco intuitivo que muitos pacientes não acreditam quando eu os oriento a não fazerem força para a palavra sair. Eles dizem: “Aí é que não vai sair mesmo!”. Na dúvida, basta fazer a prova: falar com maior e com menor tensão muscular. Assim é possível constatar se a tensão é um fator importante para aquele paciente. Uma maneira simples de fazer o teste é pedir para o paciente falar com maior volume vocal em uma situação e com menor volume vocal em outra situação. O aumento do volume vocal propicia aumento da tensão muscular em toda a musculatura utilizada na fala (inclusive a respiratória). Os dois trechos são gravados e comparados (para isso, eu utilizo o software Praat). A diferença costuma ser clara: o aumento da tensão muscular aumenta o número e/ou a duração dos eventos de gagueira. Para mim esta estratégia é muito efetiva, inclusive com crianças a partir de 7 anos.

Por que eu faço o teste com o volume vocal ao invés de simplesmente solicitar que, em uma gravação, o paciente fale colocando força toda vez que gaguejar e, em outra gravação, fale sem colocar força quando gaguejar? Porque o paciente não consegue fazer isso. Para quem já está há anos ou décadas tensionando a fala, não é possível parar de tensionar de uma hora para outra. O paciente pode até querer, mas dificilmente vai conseguir, porque colocar força já se tornou automático. Então, a forma que encontrei de fazer o teste de forma empírica, para que o próprio paciente consiga perceber que colocar mais tensão na fala é uma estratégia ruim, foi com o contraste de volume vocal. Na verdade, é um contraste de “tensão” com “mais tensão ainda”, porque a fala habitual do paciente já é tensa e o aumento do volume vocal tensiona ainda mais. Mas acho que tem servido muito bem ao propósito de exemplificar este fator aos pacientes. Se alguém utilizar outra estratégia, por favor, compartilhe!

 

Onde intervir?

Antes de pensar em fazer o manejo terapêutico da tensão muscular, é preciso saber exatamente em que órgãos fonoarticulatórios ele é necessário. Para isso, penso que a análise fonética é fundamental. Analisar gravações de fala espontânea ou leitura em voz alta para saber em que fones geralmente ocorre o aumento de tensão é de grande valia. O relato do paciente pode não ser fidedigno neste sentido: já tive diversos casos em que os pacientes afirmavam forçar mais determinados fones, mas a avaliação indicou que eram outros fones os mais acometidos. Não estou pensando em que fones a gagueira mais ocorre (este seria outro fator, o dos “sons difíceis”), mas especificamente em fones gaguejados nos quais ocorre aumento de tensão muscular. É claro que pode haver intersecção entre esses dois fatores, mas não necessariamente.

O levantamento fônico aponta para a musculatura que deve ser relaxada. É necessário buscar as semelhanças entre os fones mais acometidos. Por exemplo*:

  • Fones consonantais como [p, b, f, v, m] e vogais fechadas sugerem os lábios.
  • Fones consonantais como [t, d, s, z, ʃ, ʒ, l, n] sugerem a região anterior da língua.
  • Fones consonantais como [k, g, ɣ] sugerem a região posterior da língua.
  • Fones consonantais como [m, n] e vogais nasalizadas sugerem o véu palatino.
  • Fones vocálicos ou consoantes vozeadas sugerem as pregas vocais.

Sabendo a região exata onde é necessário intervir, a terapêutica terá mais eficácia.

Mas existem casos em que parece não haver fones mais ou menos acometidos. Nesses casos, é necessário reduzir a tensão muscular de todo o trato vocal.

 

Como intervir?

Na minha opinião, o manejo terapêutico da tensão muscular é um dos mais importantes na terapia de gagueira, principalmente em casos crônicos. Existem diversas estratégias, que podem e devem ser combinadas. Algumas são estratégias que agem especificamente no trato vocal, enquanto outras são estratégias que agem no corpo como um todo.

Quanto às estratégias com ação específica no trato vocal, elaborei a seguinte lista:

  1. Face (terços médio e inferior): sobrearticulação.
  2. Lábios: exercícios de trato vocal semiocluído; prática negativa; feedback auditivo; feedback visual; redução voluntária da tensão durante a fala.
  3. Região anterior da língua: exercícios de trato vocal semiocluído; prática negativa; feedback auditivo; feedback visual; redução voluntária da tensão durante a fala.
  4. Região posterior de língua: prática negativa; feedback auditivo; feedback visual; redução voluntária da tensão durante a fala.
  5. Véu palatino: prática negativa; feedback auditivo; redução voluntária da tensão durante a fala.
  6. Pregas vocais: exercícios de trato vocal semiocluído; prática negativa; feedback auditivo; redução voluntária da tensão durante a fala.
  7. Pescoço: alongamento da musculatura posterior e lateral.

Quanto às estratégias com ação no corpo como um todo, elaborei esta outra lista:

  1. Melhora da qualidade de sono;
  2. Reeducação postural global (RPG);
  3. Relaxantes musculares (ação periférica);
  4. Medicamentos com ação relaxante que agem no sistema nervoso central.

Pretendo discutir essas estratégias nos próximos posts.

 

* Estou utilizando a simbologia do IPA para o dialeto paulista do português brasileiro. IPA = International Phonetic Alphabet (Alfabeto Fonético Internacional).