Gagueira e tensão muscular (II)

ago 20, 2012 | por Sandra Merlo | Gagueira, Tensão muscular

Exercícios de trato vocal semiocluído (como a fonação em tubo) podem auxiliar na redução da tensão muscular ao longo do trato vocal e, consequentemente, contribuir para a melhora da gagueira.

Vou começar a discutir algumas estratégias terapêuticas de equilíbrio da tensão muscular que agem especificamente sobre os órgãos fonoarticulatórios.

 

Exercícios de trato vocal semiocluído

Talvez alguém levante objeções quanto à utilização de exercícios de trato vocal semiocluído na terapia de gagueira. De fato, esses exercícios foram primariamente desenvolvidos para a terapia de voz e não para a terapia de gagueira. Mas penso que podem ser utilizados na terapia de gagueira, principalmente quando é necessário relaxar a musculatura laríngea.

Os exercícios de trato vocal semiocluído estão entre os mais utilizados na terapia fonoaudiológica e alguns deles inclusive são de conhecimento popular (como a vibração de lábios ou língua). Na minha prática clínica, eu me deparo frequentemente com reclamações sobre a eficácia desses exercícios por parte dos pacientes com gagueira. Tenho duas considerações a respeito:

  • Alguns pacientes reclamam que não percebem melhora da gagueira logo após a realização dos exercícios de trato vocal semiocluído. Aí claramente temos um problema de compreensão sobre a função desses exercícios. A função dos exercícios de trato vocal semiocluído é de serem facilitadores da emissão, nada mais do que isso. Como esses exercícios aumentam as pressões internas do trato vocal, eles favorecem a adoção de padrões musculares mais econômicos. Mas não adianta fazer os exercícios e, na sequência, falar com o padrão habitual de tensão. Ou seja, esses exercícios não devem ser utilizados de forma isolada: devem ser combinados com outros, principalmente com a estratégia de suavização da fala. Pela minha experiência pessoal e clínica, acho bem mais fácil suavizar a tensão muscular durante a fala se esses exercícios já tiverem previamente relaxado o trato.
  • A segunda consideração é que os exercícios de trato vocal semiocluído não surtem efeito quando são feitos de maneira errada! Atenção para postura corporal, postura de cabeça, suporte respiratório, presença de ataque vocal brusco no início do movimento, tempo mínimo de execução, repouso entre execuções e fadiga muscular. Já vi muitos pacientes (inclusive os meus) fazerem esses exercícios erroneamente quando desassistidos. Aí não vai funcionar mesmo…

O que acontece no trato vocal durante os exercícios de semioclusão? O cientista da fala Ingo Titze vem estudando esta questão nos últimos anos. Em um de seus artigos, ele apresentou uma simulação computacional de diversos tipos de tubos sonoros.

Durante a fala, o trato vocal funciona como um tubo sonoro. A extremidade fechada corresponde à glote, com as pregas vocais em vibração. A extremidade aberta corresponde aos lábios e/ou às narinas. O grau de abertura labial depende do fone que está sendo articulado: no caso de uma vogal aberta como o [a], por exemplo, o grau de abertura é máximo e no caso de um vogal fechada como o [u], o grau de abertura é mínimo. Nesta configuração de tubo fechado-aberto, a pressão intraglótica é maior do que a supraglótica.

Os exercícios de trato vocal semiocluído modificam a dinâmica habitual, fazendo com que as duas extremidades do trato sejam fechadas. Nesta configuração de tubo fechado-fechado, a pressão supraglótica aumenta e a pressão intraglótica aumenta ainda mais. O aumento da pressão intraglótica dificulta a adução entre as pregas vocais, o que reduz sua amplitude de vibração, a área de contato glotal e a colisão tecidual. Essas modificações minimizam a possibilidade de lesão fonatória.

O treino deve iniciar com o máximo de semioclusão no trato e terminar com a menor semioclusão (mais próxima da fala habitual). A sugestão sequencial do Ingo Titze é a seguinte:

  • Fonação com tubo de menor diâmetro;
  • Fonação com tubo de maior diâmetro;
  • Fricativa vozeada bilabial ou labiodental [β, v];
  • Vibração vozeada de lábios ou língua;
  • Consoantes nasais [m, n];
  • Vogais orais altas [i, u].

Vou discutir duas dessas estratégias a seguir.

 

Fonação em tubos

Sou fã da fonação com tubo de ressonância: é um exercício eficaz para diversos objetivos (relaxamento do trato; aquecimento, estabilidade e qualidade vocais). Fazendo o controle fonético-acústico com vogal sustentada pré e pós-exercício, geralmente se constata mudança da frequência fundamental (indicativo de mudança na contração muscular laríngea) e redução de jitter e shimmer (indicativo de maior estabilidade vocal). Os pacientes são praticamente unânimes em relatar maior facilidade de emissão no pós-exercício. Veja aqui um artigo sobre os efeitos imediatos da fonação com tubo.

Existe uma grande variedade de tubos que podem ser utilizados na clínica:

  • O chamado tubo finlandês possui 25-28 cm de comprimento, 8-9 mm de diâmetro interno e é de vidro.
  • Um canudo comum possui 20-24 cm de comprimento, 3-4 mm de diâmetro interno e é de plástico flexível.
  • Também existem canudos menores, com 9 cm de comprimento, 2-3 mm de diâmetro interno e de plástico semirrígido.

Como selecionar o mais adequado?

Uma pesquisa recente comparou o efeito de cinco diferentes tubos de ressonância na musculatura laríngea (o monitoramento muscular foi feito com eletromiografia de agulha). Selecionei alguns achados do estudo:

  • A atividade muscular reduziu no tireoaritenoideo (TA) e no cricotireoideo (CT) no pós-exercício. O relaxamento muscular foi menor no TA e maior no CT, o que fez a razão TA/CT ser maior no pós-exercício. A maior proporção TA/CT é benéfica, porque diminui o limiar de início da fonação, ou seja, a fonação é iniciada com níveis menores de pressão intraglótica.
  • A proporção TA/CT aumentou de acordo com o grau de constrição do trato vocal. Assim, tubos de menor diâmetro (que oferecem maior resistência à passagem do ar e do som) propiciam maior relaxamento dos músculos TA e CT. Então, quanto maior for a necessidade de relaxamento laríngeo, menor deve ser o diâmetro do tubo utilizado.
  • A proporção TA/CT foi maior na fonação de vogais altas como [i, u] e menor na fonação de vogais baixas como [a], o que é um argumento a favor do uso de vogais altas em exercícios de relaxamento do trato vocal.
  • A atividade muscular aumentou no cricoaritenoideo lateral (CAL) no pós-exercício. Isso indica que a fonação em tubo propicia o relaxamento de alguns músculos (como o TA e o CT) e o fortalecimento de outros (como o CAL), justificando o uso desses exercícios tanto em disfonias hiperfuncionais, quanto em disfonias hipofuncionais.
  • A atividade do CT e do CAL se correlacionou com a frequência fundamental (F0). Penso que isso explica por que alguns pacientes apresentam redução, enquanto outros apresentam aumento da F0 no pós-exercício: havendo maior relaxamento do CT, ocorre redução da F0; havendo maior fortalecimento do CAL, ocorre aumento da F0.
  • A atividade do CAL também se correlacionou com a intensidade sonora. Penso que isso explica o frequente achado de que a voz fica mais potente após a realização do exercício de fonação em tubo.

 

Vibração vozeada de lábios ou língua

Os primeiros relatos de uso clínico da vibração de lábios e língua datam da década de 1970. Não é à toa que são técnicas tão populares.

A vibração de lábios é facilmente executada por sujeitos de qualquer idade, já a vibração de língua tende a ser mais problemática e alguns pacientes não conseguem executá-la (às vezes devido a um impedimento físico do frênulo lingual). Alguns pacientes encontram dificuldades na manutenção da vibração, conseguindo produzir o movimento oscilatório por poucos segundos; isso tende a melhorar com a progressão do treino. Uma das dificuldades do movimento refere-se à sua coordenação, porque a frequência de oscilação dos lábios ou da língua é muito inferior à frequência de oscilação das pregas vocais.

A vibração vozeada de língua é um exercício efetivo desde que bem executado. É menos eficaz fazer vibração de língua com os lábios estirados, certo? Se a ideia é ocluir o trato, os lábios devem estar protruídos e arredondados e não estirados. Ou seja, é necessário observar os procedimentos do exercício e não executá-lo de qualquer maneira.

A fisiologia da vibração vozeada de língua está sendo documentada por técnicas variadas. As técnicas de imagem mostram que a vibração vozeada de língua aumenta a constrição laringofaríngea e a amplitude de vibração das pregas vocais. A eletroglotografia mostra aumento no quociente de fechamento glótico.

Por isso, é um exercício eficiente para diversos objetivos: relaxamento da musculatura intrínseca da língua e da laringe, aquecimento vocal, melhora do foco de ressonância, melhora da estabilidade, da clareza e da qualidade vocais (veja aqui e aqui).

Um estudo recente comparou a produção vocal após 1, 3 e 5 minutos de exercício de vibração vozeada de língua. Outro estudo mostrou que é necessário atentar para as diferenças de gênero: mulheres se beneficiam com 3 minutos de exercício, enquanto homens se beneficiam com 5 minutos de exercício.

Também é necessário observar as contraindicações dos exercícios de vibração: quadros inflamatórios agudos e pós-operatório imediato do trato vocal.

 

Transferência

Esses exercícios são tidos como artificiais, ou seja, são bem diferentes do que se faz na fala espontânea. Isso levanta a questão: há transferência de ganhos para a fala espontânea? Sim, há. A prática repetitiva dos exercícios propicia mudança no padrão de contração muscular do trato vocal e o novo padrão pode ser aplicado na fala espontânea.