Mais algumas estratégias terapêuticas de equilíbrio da tensão muscular que agem especificamente sobre os órgãos fonoarticulatórios.
Sobrearticulação
A “hiperarticulação” se refere à maior amplitude dos gestos articulatórios durante a fala. Dentre os vários efeitos acústicos da hiperarticulação, destacam-se dois:
- Aumento da duração fônica. Se os gestos são mais amplos, necessitam de mais tempo para serem completados em relação a gestos de menor amplitude. Neste sentido, a duração de palavras e frases praticamente dobra da fala habitual para a hiperarticulada em falantes do inglês americano.
- Expansão do triângulo vocálico. Se os gestos têm maior amplitude no eixo vertical e no horizontal, haverá modificação do primeiro e do segundo formantes das vogais.
A hiperarticulação é uma estratégia naturalmente adotada pelos falantes em determinadas situações, tais como: falar com bebês, com falantes não nativos da língua ou com deficientes auditivos. Isso porque a hiperarticulação favorece a compreensão auditiva por parte do interlocutor. A maior duração segmental e o maior espaço vocálico produzem contrastes fonéticos mais robustos, o que facilita a discriminação perceptual da fala.
A técnica de sobrearticulação da terapia fonoaudiológica tem suas raízes na estratégia de hiperarticulação. Entretanto, na sobrearticulação, os gestos articulatórios são exageradamente ampliados e a taxa de elocução é bastante lentificada. A técnica tem três finalidades:
- Melhorar a precisão articulatória. Util para pessoas que apresentam “fala travada”, ou seja, com gestos de pequena amplitude.
- Reduzir a taxa de elocução. Útil para pessoas que falam rápido, com comprometimento da inteligibilidade.
- Favorecer o alongamento da musculatura de fala, reduzindo a tensão.
Um estudo com eletromiografia de superfície avaliou a atividade dos músculos mentoniano, depressor do lábio inferior, ventre anterior do digástrico e masseter em taxas variadas de elocução (habitual, rápida e lenta). Como se sabe, a lentificação da taxa de elocução é produzida, não pela diminuição da velocidade de fala (medida em mm/s), mas pelo aumento da distância percorrida pelos articuladores (medida em mm). Assim, conforme esperado, os resultados indicaram que a fala mais lenta reduz a atividade muscular. Ou seja, gestos articulatórios mais amplos e que duram mais tempo reduzem a tensão muscular.
A sobrearticulação pode alongar e relaxar uma vasta área: terços médio e inferior da face, lábios, língua e laringe (veja aqui). Pacientes que apresentam grande tensão muscular na face e no pescoço, podem inclusive referir leve dor nas primeiras realizações ou podem não tolerar muitos minutos de exercício.
É possível utilizar uma série de materiais para realizar o exercício (vogais, sílabas, números, frases, leitura). A sobrearticulação pode ser realizada com ou sem feedback visual.
É um exercício contraindicado para pacientes com DTM (disfunção temporomandibular), porque pode aumentar a dor e a crepitação na região da ATM.
Gagueira voluntária
A gagueira voluntária, como o próprio nome diz, consiste em simular voluntariamente a ocorrência da gagueira. Em princípio, isso parece estranho: para que gaguejar mais se o objetivo é gaguejar menos? Por incrível que pareça, a gagueira voluntária é uma estratégia efetiva para redução da gagueira real.
Apesar dos efeitos benéficos da gagueira voluntária serem conhecidos há décadas, somente mais recentemente tem se compreendido por que isso acontece. A razão da melhora parece não ser devido à dessensibilização (ou seja, à redução do medo da gagueira), como se acreditava.
Um estudo analisou os efeitos da audição e da produção de gagueira voluntária na fluência de pessoas que gaguejam. A gagueira voluntária sempre foi modelada como repetições de sílabas sem tensão muscular. Dez adultos participaram do estudo. Inicialmente, os sujeitos eram solicitados a ler um pequeno texto em voz alta. Em seguida, eles participavam de quatro situações experimentais distintas; vou me ater a duas delas. Em uma dessas situações, os sujeitos viam e ouviam uma pessoa gaguejando voluntariamente; na sequência, eles liam outro pequeno texto em voz alta. Em outra situação experimental, os sujeitos imitavam a gagueira voluntária vista e ouvida; na sequência, também liam outro pequeno texto em voz alta. Os resultados mostraram que, após as situações com gagueira voluntária (percebida ou produzida), houve redução imediata de 40% da gagueira na segunda leitura em relação à primeira. Os autores concluíram que a audição ou a produção de gagueira voluntária favorece a aprendizagem de mecanismos compensatórios mais eficientes para dar continuidade à fala.
Outro estudo analisou os efeitos cerebrais da gagueira voluntária. Trinta pessoas (metade com e metade sem gagueira) participaram do estudo. Quatro situações experimentais foram avaliadas, mas vou me ater somente à situação de gagueira voluntária. Nesta situação, os sujeitos deveriam falar palavras ouvidas, repetindo diversas vezes a sílaba inicial. A gagueira voluntária induziu uma grande ativação no cérebro das pessoas com gagueira; ativação esta que era bem mais compatível com a fala fluente. Por exemplo, na fala habitual, a ativação cerebral limitou-se à área motora primária esquerda, à área motora suplementar direita e ao giro do cíngulo direito, não tendo sido observada ativação significativa de áreas auditivas. Na gagueira voluntária, houve ativação bilateral dos córtices auditivos primário e secundário e também do giro frontal inferior direito (região homóloga à área de Broca). Ou seja, os resultados deste estudo com neuroimagem funcional indicaram que a ativação cerebral gerada pela gagueira voluntária não é igual à ativação gerada pela gagueira real, aproximando-se mais da ativação relativa à fala fluente.
Portanto, a gagueira voluntária (produzida como várias repetições silábicas sem tensão muscular) é um mecanismo compensatório eficiente para reduzir a ocorrência de gagueira.
Feedback
Também é possível utilizar feedback para modificar a tensão muscular. Embora a tensão se refira especificamente a um sistema de eferência, as informações sensoriais aferentes podem servir como valioso feedback para alterar a resposta eferente.
A primeira modalidade a ser explorada é a propriocepção muscular. Geralmente as pessoas com gagueira não estão cientes do excesso de tensão muscular utilizada na fala ou mesmo durante o repouso. Como aquele grau excessivo de tensão é o habitual, a pessoa acha normal. Nas primeiras vezes em que os exercícios de relaxamento do trato vocal são executados, ocorrem mudanças no grau de tensão muscular, mas são transitórias. Com a prática repetitiva dos exercícios, a percepção do relaxamento vai se cristalizando. Até chegar o momento em que o paciente percebe, por si mesmo, a tensão muscular.
A segunda modalidade a ser explorada é a audição. Movimentos executados com maior tensão muscular soam diferentes de movimentos com menor tensão. Os pacientes geralmente não estão atentos a isso também. É útil ouvir palavras faladas com graus variados de tensão muscular. Aos poucos, o paciente aprende a ouvir a tensão e a utilizar esta informação em benefício próprio.
A terceira modalidade é a visão. Movimentos executados com maior tensão muscular também são diferentes de movimentos com menor tensão. Como os pacientes raramente se veem quando estão falando, também não costumam ter consciência disso. Vídeos de fala espontânea geralmente são eficazes para que a tensão muscular e o esforço físico despendidos na fala sejam visualizados.
A utilização do feedback para alterar o curso do movimento tem respaldo neurobiológico. O córtex motor secundário recebe aferência do córtex somatossensorial secundário e este, por sua vez, recebe aferências dos córtices auditivo e visual secundários [1].
Antes de apresentar gravações em áudio ou vídeo para um paciente, sempre pergunto se ele está preparado para se ouvir ou se ver. A audição ou a visão da gagueira pode suscitar uma avalanche de emoções (tristeza, desânimo, raiva, choro). E é preciso lidar com isso também.
Referência
[1] Guyton, A. C. & Hall, J. E. (1996). Somatic sensations: I. General organization; the tactile and position senses. In: Textbook of medical physiology (pp. 595-607). 9th ed. Philadelphia: W.B. Saunders.