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Gagueira e tensão muscular (V)

Estratégias terapêuticas que reduzem diretamente a tensão muscular durante o ato da fala (como a fala mais lentificada, a fala com menor volume vocal e a suavização) podem auxiliar na melhora da gagueira.

Finalizo a discussão sobre estratégias terapêuticas de equilíbrio da tensão muscular que agem especificamente sobre os órgãos fonoarticulatórios. Deixei para este post as estratégias com aplicação direta na fala espontânea. As estratégias abordadas anteriormente são facilitadoras da fluência, mas não são em si estratégias de fala.

 

Falar mais devagar e/ou mais baixo

Um estudo com eletromiografia de superfície no músculo orbicular dos lábios (parte cutânea) demonstrou que a fala mais lentificada e/ou com menor intensidade vocal reduz a atividade muscular.

Vinte pessoas participaram do estudo (10 mulheres e 10 homens), os quais leram um pequeno texto em cinco taxas de elocução diferentes (lenta, médio-lenta, média, médio-rápida e rápida) e com três diferentes intensidades vocais (baixa, média e alta). Diversos resultados emergiram:

  • Quando os participantes foram solicitados a falar mais devagar, eles não modificaram apenas a taxa de elocução, mas também a intensidade vocal: ou seja, falaram mais devagar e mais baixo. O inverso também foi verdadeiro: quando falaram mais rápido, também falaram mais alto.
  • Por outro lado, quando os participantes foram solicitados a falar mais baixo ou mais alto, não houve mudança na taxa de elocução.
  • A atividade muscular diminuiu significativamente quando os participantes falaram mais lento ou mais baixo e aumentou significativamente quando falaram mais rápido ou mais alto.
  • O lábio inferior sempre esteve mais ativo do que o superior durante a fala.
  • A atividade muscular não foi simétrica, havendo maior contração no lado direito do orbicular dos lábios. Assim, confirma-se a existência de um lado preferencial também para a atividade muscular.

Um estudo com articulografia avaliou os movimentos da língua em duas taxas de elocução diferentes (média e rápida). Oito homens participaram do estudo. Duas pequenas bobinas foram fixadas ao longo da língua dos sujeitos: uma próxima à ponta (para registrar a consoante da sílaba [ta]) e outra próxima ao dorso (para registrar a consoante da sílaba [ka]). Quatro características cinemáticas foram avaliadas: velocidade, aceleração, tempo e distância. Os resultados indicaram que as duas características preferenciais de ajuste foram distância e tempo. Ou seja, para falar rápido, os sujeitos diminuíram a distância percorrida pela língua e a duração do movimento. Nenhum dos sujeitos optou pelo aumento da velocidade da língua para falar mais rápido. Em termos fisiológicos, se a língua se movimenta menos, sua musculatura fica mais encurtada e tensionada.

Portanto, aprender a falar mais lentamente e/ou com menor intensidade vocal (sem perder a naturalidade), também é uma estratégia efetiva para redução da tensão muscular.

 

Suavização da fala

A estratégia de suavização consiste em falar utilizando pouca tensão muscular. Os gestos articulatórios devem ser produzidos com a tensão muscular necessária para serem precisos, nada mais. Os movimentos dos órgãos fonoarticulatórios devem ser relaxados e os contatos entre eles devem ser suaves.

Conseguir suavizar bem determinados fones não implica conseguir suavizar bem todos. Por exemplo, os músculos intrínsecos da laringe contraem de maneiras diferentes para as diversas frequências de vibração (veja aqui). Ou seja, o processo de aprendizagem não é trivial.

Fica mais fácil suavizar a fala se a musculatura do trato vocal e da coluna cervical já tiver sido previamente relaxada com exercícios apropriados. Também fica mais fácil suavizar se o paciente consegue utilizar informações proprioceptivas e auditivas a seu favor.

É necessário prática para fazer bom uso desta estratégia. No início, a aplicação é totalmente voluntária. Com o passar dos meses, dois cenários podem ocorrer. Alguns pacientes referem que a estratégia se torna automática, ou seja, eles a aplicam sem ter que prestar atenção nela. Já outros pacientes referem que a estratégia é mais automatizada do que no início, mas sempre requer algum grau de atenção.

Eu e meu orientador publicamos recentemente um estudo de caso sobre as características fonético-acústicas da fala suavizada. O paciente tinha 21 anos na época do estudo e apresentava gagueira desde criança. O protocolo experimental consistiu na leitura de frases-veículo, em que se inseriam palavras-alvo (“Diga … baixinho”). As palavras-alvo eram dissílabos paroxítonos iniciados pelas três plosivas não-vozeadas [p, t, k] e pelas sete vogais orais tônicas do português brasileiro [a, e, ɛ, i, o, ɔ, u]. Assim, as palavras-alvo eram como as seguintes: “para”, “pêra”, “pera”, “pira”, “pôres”, “poro” e “pura”.

As figuras abaixo ilustram duas realizações da palavra “pôres”: uma com a fala habitual (Figura 1) e outra com a fala suavizada (Figura 2). Os dados dessas duas realizações resumem bem os achados de duração da fala habitual e da suavizada:

– Na fala habitual, houve bloqueio fônico no [p], o que aumentou bastante a duração da fase de oclusão (408 ms). Por outro lado, na fala suavizada, como não houve bloqueio, a duração da fase de oclusão do [p] foi bem menor (163 ms).
– Na fala habitual, a fase de soltura do [p] durou 25 ms. Na fala suavizada, a fase de soltura durou um pouco mais, 47 ms.
– A vogal tônica [o], por outro lado, apresentou durações muito similares na fala habitual e na suave (193 e 191 ms, respectivamente).
– A palavra como um todo apresentou maior duração na fala habitual do que na suave (855 e 613 ms, respectivamente).

 Fala habitual

Figura 1: Uma das realizações da palavra “pôres” com a fala habitual.
A imagem mostra a segmentação dos fones de interesse e da palavra como um todo.
Os dados de duração da fase de oclusão da plosiva e da palavra estão explicitados.

 Fala suavizada

Figura 2: Uma das realizações da palavra “pôres” com a fala suavizada.
A imagem mostra a segmentação dos fones de interesse e da palavra como um todo.
Os dados de duração da fase de oclusão da plosiva e da palavra estão explicitados.

 

Assim, resumidamente, nossos achados relativos à duração foram:

  • Houve eliminação da gagueira na fala suavizada em relação à fala habitual.
  • A duração das plosivas diminuiu 30% na fala suavizada em relação à fala habitual (197 versus 280 ms, em média). Como as plosivas têm duas fases de produção, analisamos como a suavização afetou cada uma delas. A duração da fase de oclusão diminuiu na fala suavizada (149 versus 243 ms, em média). Isso faz sentido, uma vez que os bloqueios incidiam sob esta fase, aumentando sua duração. A fase de soltura, por outro lado, aumentou de duração na fala suavizada (48 versus 37 ms, em média). Isso também faz sentido, uma vez que o relaxamento da musculatura diminuiu a pressão intraoral, ocasionando maior lentidão na soltura.
  • As vogais não apresentaram diferenças significativas de duração da fala suave para a habitual (179 versus 185 ms, em média).
  • Houve redução na duração das palavras-alvo (511 versus 615 ms, em média) e das frases-veículo (1600 versus 1800 ms, em média) da fala suavizada em relação à habitual.
  • Também analisamos se a suavização afetou a sincronia entre articulação e fonação, uma vez que o sujeito passou da articulação de um fone não-vozeado (a consoante) para um fone vozeado (a vogal). Descobrimos que não houve diferença entre a duração da fase de soltura das plosivas não-vozeadas e a duração do voice onset time (48 e 45 ms, em média, respectivamente). Isso indica que a suavização preservou a sincronia entre articulação e fonação.

Também estudamos outras características fonético-acústicas, cujos resultados foram:

  • Houve leve redução na frequência fundamental das vogais na fala suavizada (127 versus 144 Hz, em média). Ou seja, a voz ficou um pouco mais grave. Este resultado indica que a suavização também foi aplicada em nível glótico.
  • Não houve mudança do primeiro e do segundo formantes da fala suavizada em relação à habitual. Lembrando que F1 está relacionado com a posição vertical e F2 com a posição horizontal da língua. Ou seja, a suavização não alterou a posição da língua, o que indica que não modificou a precisão articulatória.
  • Também não houve mudança do terceiro formante da fala suave para a habitual. F3 está relacionado com a constrição labial, faríngea e velofaríngea. Ou seja, a suavização não alterou a ressonância da fala.
  • A inclinação espectral diminuiu na fala suave (13 versus 15 dB, em média). Este resultado indica aumento de energia em altas frequências. Nossa hipótese é que o relaxamento das pregas vocais aumentou a coaptação glótica, por isso o aumento de energia.

Portanto, nosso estudo de caso sugeriu que a suavização promove uma série de mudanças acústicas na fala (aumento da taxa de elocução, voz levemente mais grave e aumento de energia em altas frequências), porém, sem afetar a precisão articulatória, a ressonância e a inteligibilidade da fala.

A suavização é considerada um dos métodos terapêuticos mais efetivos para a redução da gagueira (veja aqui).

Também existem estudos com neuroimagem funcional demonstrando a eficácia da estratégia de suavização. Embora os resultados exatos divirjam de um estudo a outro, os estudos indicam que a aprendizagem da estratégia de suavização modifica o funcionamento cerebral. Ha estudos que mostram que a suavização reorganiza o substrato neural entre áreas auditivas e motoras do hemisfério esquerdo (veja aqui). Neste sentido, a estratégia ajudaria a remodelar o substrato neural comprometido.