Localizei apenas duas pesquisas específicas sobre gagueira e testosterona. Ambas são de 2015. São estudos preliminares, mas que podem nos ajudar a compreender melhor a dinâmica da gagueira.
Níveis pré-natais de testosterona e gagueira
Como dito no texto anterior desta série, fetos do sexo masculino apresentam quantidades moderadas de testosterona a partir da sétima semana de vida intrauterina. O psicólogo alemão Christian Montag e colaboradores procuraram responder a seguinte pergunta: pessoas que gaguejam de forma crônica foram expostas a maiores níveis pré-natais de testosterona? [1]
O nível pré-natal de testosterona não foi medido diretamente durante a gestação. Esse nível foi inferido através de outra medida diretamente correlacionada a ele: o tamanho dos dedos anular e indicador. A mão masculina tende a apresentar o dedo anular mais longo do que o indicador. O dedo indicador é considerado o segundo dedo da mão (2D), enquanto o anular é considerado o quarto dedo (4D). Por isso, a proporção é chamada de 2D:4D. A proporção masculina tende a ser menor do que a feminina, portanto. Este padrão no comprimento dos dedos das mãos está relacionado a níveis pré-natais de exposição à testosterona.
Participaram do estudo 38 adultos com gagueira (sendo 28 homens) e 36 adultos sem gagueira (sendo 24 homens), com idade média de 30 anos. As mãos dos sujeitos foram escaneadas e as medidas foram realizadas digitalmente. Quando o sujeito relatava que já havia fraturado o dedo anelar ou indicador de uma das mãos, aquele dado era excluído da amostra. Os sujeitos com gagueira também responderam a um questionário com 100 questões sobre o impacto da gagueira em suas vidas. Quanto maior a pontuação no questionário, maior o impacto da gagueira na vida da pessoa.
Quando os sujeitos foram comparados em relação ao sexo, os homens realmente apresentaram menor proporção 2D:4D na mão direita, ou seja, dedo anular significativamente maior do que o indicador. Apenas para a mão direita, não para a esquerda.
Quando os sujeitos foram comparados em relação à fala, não houve diferença na proporção 2D:4D entre os grupos, ou seja, os sujeitos com gagueira não apresentaram dedo anular maior do que o indicador em relação aos sujeitos sem gagueira. Consequentemente, concluiu-se que os sujeitos com gagueira não foram expostos a maiores níveis de testosterona na vida pré-natal.
Entretanto, as mulheres com gagueira apresentaram correlações significativas entre a menor proporção 2D:4D e a maior pontuação no questionário de impacto da gagueira. Ou seja, maiores níveis de exposição à testosterona na vida intrauterina de fetos femininos estiveram relacionados a maiores dificuldades para lidar com a gagueira na vida adulta. Uma possível explicação para este achado é que a presença do hormônio durante a gestação tem maior impacto no desenvolvimento do sistema límbico de fetos femininos do que de fetos masculinos.
(Para saber mais sobre os motivos da relação entre os níveis de testosterona pré-natal e o comprimento dos dedos das mãos, sugiro o seguinte artigo: “Human 2D (index) and 4D (ring) finger lengths and ratios: cross-sectional data on linear growth patterns, sexual dimorphism and lateral asymmetry from 4 to 60 years of age”, Gillam et al., Journal of Anatomy, 2008).
Níveis de testosterona em crianças com gagueira
O médico turco Engin Selçuk e colaboradores avaliaram o nível de testosterona circulante no sangue em crianças com diagnóstico de gagueira [2]. Conforme assinalado no texto anterior desta série, embora a produção de testosterona seja baixa durante a infância, ela não é nula.
Participaram do estudo 50 crianças entre 7 e 12 anos. Metade das crianças apresentava gagueira (21 meninos e 4 meninas). Foram coletadas amostras de sangue das crianças para medição da concentração de testosterona.
O nível de testosterona no grupo de crianças com gagueira variou entre 12 e 184 ng/ml. No grupo de crianças sem gagueira, o nível variou entre 2 e 30 ng/ml. Os níveis de testosterona nas crianças com diagnóstico de gagueira foram estatisticamente superiores.
Ainda, foram encontradas correlações positivas entre o nível de testosterona e a gravidade da gagueira. Nas crianças com gagueiras leves ou moderadas, a concentração média de testosterona foi de 20 ng/ml. Já nas crianças com gagueiras graves, a concentração foi de 88 ng/ml. Ou seja, quanto maior a concentração de testosterona, maior a gravidade da gagueira. Essa correlação é causa ou consequência da gagueira? Os autores levantam as duas hipóteses. Poderia ser causa, no sentido de afetarem o desenvolvimento encefálico e o controle motor da fala. Mas também poderiam ser consequência, no sentido de que o estresse ocasionado pela gagueira poderia afetar o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal e aumentar a produção do hormônio.
Testosterona e ansiedade
Popularmente, existe a crença generalizada de que a gagueira é decorrente da ansiedade. Entretanto, a testosterona apresenta efeito ansiolítico [3] e a gagueira ocorre mais no sexo masculino.
A literatura científica em gagueira é unânime em apontar que este distúrbio de fluência atinge muito mais indivíduos do sexo masculino, sejam eles meninos ou homens [4]. Na infância, existe o dobro de meninos afetados, ou seja, para cada dois meninos com gagueira, há uma menina com gagueira (proporção 2:1). Na vida adulta, existe o quádruplo de homens afetados, ou seja, para quatro homens com gagueira, há apenas uma mulher com gagueira (proporção 4:1) [4].
Por outro lado, analisando a prevalência de transtornos ansiosos ao longo da vida na cidade de São Paulo, temos que [5]:
- Para cada homem com transtorno de ansiedade generalizada, há 1,5 mulheres com o mesmo problema.
- Para cada homem com algum tipo de fobia, há 2,6 mulheres com o mesmo problema.
- Para cada homem com transtorno de pânico, há 3,3 mulheres com o mesmo problema.
Ou seja, a prevalência de transtornos ansiosos é sempre maior em mulheres do que em homens. Na clínica de gagueira, ocorre justamente o contrário. Portanto, dados epidemiológicos contradizem a ideia de que um dos fatores causais da gagueira sejam os distúrbios de ansiedade.
Ainda, a idade mediana para início dos transtornos de ansiedade fica em torno de 15 anos [5]. Esta idade é bem distante da idade de início da gagueira (que costuma ser entre 2 e 4 anos) [4].
Estudos sobre o efeito deste hormônio nas funções cerebrais são consistentes em afirmar que a testosterona apresenta efeito ansiolítico [3]. Homens e mulheres com distúrbios de ansiedade apresentam menores concentrações de testosterona na saliva quando comparados com seus pares sem distúrbios de ansiedade [3].
A testosterona, portanto, é um fator que poderia ajudar a explicar a discrepância de gênero entre a gagueira e os transtornos de ansiedade.
Conclusões?
Difícil concluir o assunto com pesquisas ainda tão incipientes.
O estudo de Montag e colaboradores [1] indicou que, em princípio, pessoas com gagueira não foram expostas a maiores níveis de testosterona na vida intrauterina.
Já o estudo de Selçuk e colaboradores [2] indicou que crianças com diagnóstico de gagueira apresentam níveis mais elevados de testosterona circulante. Se isso for uma regra para crianças com gagueira, então essas crianças irão entrar na puberdade um pouco antes das crianças sem gagueira.
Fica em aberto se adultos com gagueira também apresentam níveis mais elevados de testosterona circulante. Se apresentam e se o hormônio é de fato utilizado pelos tecidos, a presença de características sexuais secundárias tipicamente masculinas (maior quantidade de pelos, acne, maior massa muscular, voz mais grave, etc.) deve ser mais expressiva nesses sujeitos (tanto em homens, quanto em mulheres).
Se adultos com gagueira apresentam maiores quantidades de testosterona circulante, então deve haver melhora da fluência em mulheres que fazem uso de pílula anticoncepcional, tendo em vista que, nesta circunstância, os hormônios masculinos permanecem em níveis pré-púberes.
Para finalizar, o efeito ansiolítico da testosterona sugere que a ansiedade não seja um fator causal da gagueira, tendo em vista o maior número de sujeitos do sexo masculino que gaguejam.
Referências
[1] Montag, C.; Bleek, B.; Breuer, S.; Prüss, H.; Richardt, K.; Cook, S.; Yaruss, J. S. & Reuter, M. (2015). Prenatal testosterone and stuttering. Early Human Development, 91: 43-46.
[2] Selçuk, E. B.; Erbay, L. G.; Özcan, Ö. Ö.; Kartalci, Ş. & Batcioğlu, K. (2015). Testosterone levels of children with a diagnosis of developmental stuttering. Therapeutics and Clinical Risk Management, 11: 793-798. Texto na íntegra aqui.
[3] McHenry, J.; Carrier, N.; Hull, E. & Kabbaj, M. (2014). Sex differences in anxiety and depression: role of testosterone. Frontiers in Neuroendocrinology, 35: 42-57. Texto na íntegra aqui.
[4] Curlee, R. F. (2004). Stuttering. In: Kent, R. D. (Ed). The MIT encyclopedia of communication disorders (pp. 220-223). Cambridge (MA) e Londres: A Bradford Book e The MIT Press.
[5] Andrade, L. H. S. G. & Wang, Y.-P. (2008). Epidemiologia dos transtornos psiquiátricos. In: Alvarenga, P. G. & Andrade, A. G. Fundamentos em psiquiatria (pp.65-88). Barueri (SP): Manole.