Um aspecto clínico que poucas pessoas que gaguejam e poucos profissionais conhecem é a gagueira induzida por medicamentos. Entretanto, este é um assunto presente na literatura através de relatos de casos e, mais recentemente, de pesquisas estruturadas e revisões. A gagueira induzida por medicamentos é um tipo de gagueira adquirida.
A farmacêutica holandesa Corine Ekhart e colaboradores publicaram um artigo [1] sobre os medicamentos mais frequentemente associados com gagueira induzida por medicamentos. A Organização Mundial da Saúde, em conjunto com o Centro de Monitoramento de Uppsala (Suécia), realiza atividades de farmacovigilância em quase todos os países do mundo. O Centro de Monitoramento de Uppsala mantém um banco de dados mundial sobre reações adversas a medicamentos desde 1968, o qual contém mais de 23 milhões de relatos.
Para analisar os relatos de gagueira induzida por medicamentos, foram analisados dados de 1988 a 2020 da base de dados do Centro de Monitoramento de Uppsala. Foram encontrados 3.358 relatos de gagueira induzida por medicamentos em 51 países. Os relatos foram geralmente feitos por consumidores (46%) e profissionais de saúde (35%). Os autores analisaram os dados em relação à desproporcionalidade e ao número absoluto de relatos de gagueira induzida por medicamentos.
A desproporcionalidade se refere ao percentual de relatos de gagueira induzida por medicamentos associados a uma determinada medicação em comparação à média de relatos das outras medicações. A Tabela 1 lista as 20 medicações com mais chances de induzirem gagueira através desta métrica.
Tabela 1: Medicações com mais chances de induzirem gagueira de acordo com 3.358 relatos no banco de dados do Centro de Monitoramento de Uppsala.
Medicação | Indicação principal | Número de relatos | Desproporcionalidade | |
---|---|---|---|---|
1. | Tiagabina | Epilepsia | 4 | 25,6 |
2. | Lomustina | Quimioterapia | 4 | 24,0 |
3. | Dexmetilfenidato | TDAH | 5 | 20,3 |
4. | Ziconotida | Analgésico | 5 | 15,7 |
5. | Dosulepina | Depressão | 5 | 14,3 |
6. | Lurasidona | Esquizofrenia e transtorno bipolar | 19 | 14,1 |
7. | Guanfacina | Hipertensão e TDAH | 6 | 12,5 |
8. | Topiramato | Epilepsia | 54 | 12,5 |
9. | Lisdexanfetamina | TDAH | 24 | 12,3 |
10. | Dobutamina | Insuficiência cardíaca | 4 | 10,1 |
11. | Brivaracetam | Epilepsia | 3 | 9,9 |
12. | Dexanfetamina | TDAH | 4 | 9,7 |
13. | Asenapina | Esquizofrenia e transtorno bipolar | 10 | 9,6 |
14. | Pregabalina | Epilepsia | 175 | 9,5 |
15. | Atomoxetina | TDAH | 31 | 8,6 |
16. | Metilfenidato | TDAH | 54 | 8,1 |
17. | Ciclobenzaprina | Relaxante muscular | 9 | 7,8 |
18. | Gabapentina | Epilepsia | 86 | 7,6 |
19. | Montelucaste de sódio | Alergia respiratória | 28 | 7,6 |
20. | Bupropiona | Depressão | 71 | 7,4 |
Por outro lado, o número de relatos se refere ao número bruto total de relatos de gagueira induzida por medicamentos. A Tabela 2 lista as 20 medicações com mais relatos em números absolutos.
Tabela 2: Medicações que mais frequentemente induzem gagueira de acordo com 3.358 relatos no banco de dados do Centro de Monitoramento de Uppsala.
Medicação | Indicação principal | Número de relatos | Desproporcionalidade | |
---|---|---|---|---|
1. | Pregabalina | Epilepsia | 175 | 9,5 |
2. | Natalizumabe | Esclerose múltipla | 162 | 7,1 |
3. | Inteferon beta 1-a | Esclerose múltipla | 119 | 4,5 |
4. | Gabapentina | Epilepsia | 86 | 7,6 |
5. | Quetiapina | Esquizofrenia | 75 | 6,3 |
6. | Clozapina | Esquizofrenia | 75 | 3,3 |
7. | Bupropiona | Depressão | 71 | 7,4 |
8. | Adalimumabe | Doenças autoimunes | 70 | 0,9 |
9. | Duloxetina | Depressão e ansiedade | 67 | 6,9 |
10. | Ácido fumárico | Esclerose múltipla | 60 | 3,6 |
11. | Vacina influenza | Prevenção de gripe | 55 | 1,5 |
12. | Topiramato | Epilepsia | 54 | 12,5 |
13. | Metilfenidato | TDAH | 54 | 8,1 |
14. | Venlafaxina | Depressão e ansiedade | 53 | 5,6 |
15. | Lamotrigina | Epilepsia e transtorno bipolar | 52 | 6,0 |
16. | Olanzapina | Esquizofrenia | 50 | 5,1 |
17. | Sertralina | Depressão | 50 | 4,6 |
18. | Fingolimode | Esclerose múltipla | 49 | 4,0 |
19. | Aripripazol | Esquizofrenia | 47 | 5,1 |
20. | Fluoxetina | Depressão | 43 | 3,7 |
Existe sobreposição de medicações nas duas listas. Fica evidente que muitas medicações podem induzir gagueira, o que faz com que a tarefa de identificar esta situação seja mais complexa. Neurolépticos, drogas antiepilépticas, imunossupressores, psicoestimulantes e antidepressivos são as classes de medicamentos mais citadas. Também fica evidente que diversos neurotransmissores participam da regulação da fluência: dopamina, GABA, acetilcolina, serotonina. Uma vez que haja suspeita de gagueira induzida por medicamento, deve-se proceder à redução da dose ou à substituição da medicação para teste da hipótese. Em geral, a melhora ocorre em poucos dias.
Na minha experiência clínica, a suspeita de que a gagueira possa estar sendo agravada pelo uso de algum medicamento é quase sempre recebida com incredulidade por parte do paciente e da família. Como as pessoas associam fortemente a gagueira a fatores psicológicos, não parecer ser plausível, em um primeiro momento, que ela possa estar sendo agravada por alguma medicação – ainda mais quando esta medicação não está relacionada a algo psicológico ou quando é uma medicação usada justamente para auxiliar em algo psicológico. Sempre é necessário fazer a prova terapêutica, com o aval do médico responsável, para que o paciente e a família se convençam de que, sim, existe gagueira induzida por medicamentos.
Referência:
[1] Ekhart, C., van Hunsel, F., van Harten, P., van Baarsen, J., Yingying, T., & Bast, B. (2021). Drug-induced stuttering: Occurrence and possible pathways. Frontiers in Psychiatry, 12, 692568, doi.org/10.3389/fpsyt.2021.692568.