Gagueira infantil e personalidade

jul 04, 2017 | por Sandra Merlo | Gagueira, Psicologia

Não há relação entre a gravidade da gagueira e traços de personalidade em crianças pré-escolares.

Um dos assuntos mais frequentes na clínica de gagueira é sua relação com a ansiedade. No caso da gagueira infantil, os pais frequentemente perguntam se o filho começou a gaguejar ou se gagueja de forma mais intensa por ser ansioso.

A fonoaudióloga australiana Elaina Kefalianos & colaboradores investigaram a possibilidade de a gagueira estar associada a determinados traços de personalidade (dentre eles, a ansiedade). Os resultados foram publicados em um estudo recente [1].

A personalidade pode ser definida como o modo como uma pessoa responde e interage com o mundo. Sabe-se que parte da personalidade é herdada geneticamente e parte é aprendida. Até o momento, não há dados científicos que, de fato, demonstrem relação causal entre certos traços de personalidade e a gagueira. Um dos princípios da investigação científica postula que os resultados encontrados em um estudo devam ser replicados em outro estudo (ou seja, com outros pesquisadores, com outros sujeitos, com outra forma de avaliação, em outro país). É exatamente isso que não acontece com os estudos que investigam a relação entre gagueira e personalidade: os resultados significativos relatados em um estudo não são replicados em outro estudo. O que de mais consistente há nos estudos sobre gagueira infantil e personalidade é a possibilidade de que crianças que gaguejam possam apresentar mais desatenção, hiperatividade e impulsividade em comparação a crianças que não gaguejam.

O estudo de Kefalianos & colaboradores avaliou 173 crianças com gagueira. Destas, 58% eram do sexo masculino, 3% nasceram de partos prematuros, 50% eram primogênitos, 15% tinham familiares com problemas de linguagem oral ou escrita, 9% tinham familiares com gagueira e 50% possuíam mães com nível superior de escolaridade. Os critérios de exclusão dos sujeitos incluíam síndromes (genéticas ou congênitas), grandes condições médicas (como o autismo) e deficiências (visual, auditiva, intelectual ou física).

As crianças foram selecionadas a partir de um grupo maior de crianças, as quais estavam sendo acompanhadas longitudinalmente em relação ao desenvolvimento da linguagem. Todas as crianças que participaram do estudo moravam em Melbourne (Austrália). Os pesquisadores tiveram o cuidado de selecionar crianças de três estratos sociais diferentes (baixo, médio e alto), a fim de eliminar a influência do estrato social.

Para a coleta dos dados do estudo, as crianças foram avaliadas uma vez por mês, durante 12 meses consecutivos. Em cada visita, os pais avaliaram a fluência da criança em uma escala de 0 a 10 (sendo 0 = sem gagueira e 10 = com gagueira muito grave). A avaliação da fluência da criança era relativa ao próprio dia da visita e também à semana anterior. Em cada visita, também era gravado um vídeo de 25 minutos dos pais brincando com a criança. Foram selecionados 20 vídeos para o pareamento entre a avaliação subjetiva dos pais e de um fonoaudiólogo. Houve concordância moderada entre as avaliações, sendo que geralmente o fonoaudiólogo atribuía 2 pontos a mais na gravidade da gagueira da criança. Ou seja, se os pais avaliaram a gagueira como sendo nota 2, o fonoaudiólogo avaliava como sendo nota 4. A atribuição de notas mais altas por parte do fonoaudiólogo deve-se ao fato de o profissional estar atento a um maior número de características da gagueira em comparação aos pais, que são leigos no assunto.

Além disso, em cada visita, os pais também preencheram um questionário mais detalhado, em que atribuíam notas para a frequência com que a criança havia apresentado diversas características de gagueira na semana anterior. São nove as características de gagueira que foram pesquisadas: repetições de fones, repetições de sílabas, repetições de palavras, repetições de sintagmas, prolongamento de fones, bloqueios, preenchedores, substituição de palavras e movimentos associados.

Os pais também completaram um questionário sobre a personalidade da criança, sempre na visita mais próxima ao aniversário de 3, 4 ou 6 anos da criança. O questionário utilizado possuía 30 perguntas, as quais exploravam as seguintes dimensões da personalidade:

  • A característica “aproximação ou sociabilidade” mede a reação da criança em relação a pessoas e situações desconhecidas. O questionário avalia se a criança tem maior probabilidade de se aproximar ou de se esquivar de estímulos novos. Altas pontuações neste traço de personalidade sugerem timidez e indicam maior probabilidade de desenvolvimento de ansiedade.
  • A característica “distração” mede a facilidade com que a criança pode ser distraída por estímulos externos. Altas pontuações neste traço de personalidade sugerem baixa distração.
  • A característica “ritmicidade” mede a regularidade de funções fisiológicas, como o sono, a fome e o uso do banheiro. Altas pontuações neste item indicam pouca regularidade nas funções fisiológicas.
  • A característica “reatividade” mede a energia das respostas da criança para estímulos. Altas pontuações neste item indicam que a criança é mais irritadiça.
  • A característica “cooperação” mede a facilidade com que a criança se adapta a atividades rotineiras do dia-a-dia. Altas pontuações neste item indicam que a criança é pouco cooperativa.
  • A característica “persistência” mede a facilidade com que a criança consegue se concentrar em uma tarefa até que esteja completa. Altas pontuações neste traço de personalidade indicam que a criança é pouco persistente.
  • A característica “inflexibilidade” mede a dificuldade que a criança tem para lidar com raiva e frustração. Altas pontuações neste item indicam que a criança é mais inflexível.

As perguntas do questionário de personalidade eram respondidas em uma escala de 1 a 6 (sendo 1 = nunca e 6 = muito frequente). A pontuação indicava a frequência com que os pais percebiam determinada característica na criança.

Ao todo, foram realizados 131 testes estatísticos, sendo que 12 avaliaram a gravidade da gagueira em relação à personalidade e 119 avaliaram características específicas da gagueira em relação à personalidade.

Os resultados indicaram que, para 77 crianças de 3 anos e para 46 crianças de 4 anos, a gravidade da gagueira não se correlacionou com nenhum traço de personalidade. Ou seja, as crianças de 3 e 4 anos com gagueiras mais graves não eram mais ansiosas, mais distraídas, menos rítmicas, mais irritadiças, menos cooperativas, menos persistentes ou mais inflexíveis em comparação a seus pares com gagueiras mais leves.

Além disso, para 102 crianças de 3 anos, 79 crianças de 4 anos e 29 crianças de 6 anos, as nove características de gagueira também não se correlacionaram com nenhum traço de personalidade. Ou seja, não foi possível correlacionar características específicas da gagueira (como bloqueios ou movimentos associados) com traços específicos de personalidade.

Portanto, o estudo indicou não haver relação entre a gravidade da gagueira ou entre características específicas da gagueira e traços de personalidade em crianças pré-escolares.

Esses resultados têm consequências clínicas importantes. Não é porque uma criança está gaguejando de forma grave que ela apresenta problemas psicológicos graves. Também não é porque uma criança está gaguejando de forma leve que ela apresenta problemas psicológicos leves. Ou seja, a ideia popular (e, às vezes, erroneamente reforçada por fonoaudiólogos, psicólogos e pediatras) de que uma criança com gagueira necessariamente precisa de psicoterapia está incorreta. O estudo de Kefalianos & colaboradores esclarece que não há relação entre ter gagueira e apresentar determinados traços de personalidade (como a ansiedade) ou entre ter gagueira mais grave e apresentar alterações mais graves de personalidade. Ou seja, na prática clínica, a indicação de psicoterapia para uma criança com gagueira vai depender de esta criança, de fato, apresentar alterações na esfera psicológica, sendo que isso independe de ela gaguejar.

 

Referência

Kefalianos, E.; Onslow, M.; Ukoumunne, O. C.; Block, S. & Reilly, S. (2017). Temperament and early stuttering development: Cross-sectional findings from a community cohort. Journal of Speech, Language, and Hearing Research, 60 (4), 772-784.