A fala de uma pessoa com gagueira, mesmo que esta fala não contenha gagueira, pode provocar impressões negativas no ouvinte?
O cientista cognitivo Devin McAuley e colaboradores procuraram responder esta pergunta e recentemente publicaram um artigo [1] com os resultados. Eles avaliaram quais são as impressões de ouvintes leigos sobre a leitura fluente produzida por pessoas com gagueira e também quais são as impressões desses mesmos ouvintes sobre as pessoas que produziram as leituras.
Estudo
Oito adultos com gagueira e oito adultos sem gagueira participaram do estudo. Em cada grupo, havia sete homens e uma mulher; o desequilíbrio na proporção de gêneros teve a intenção de reproduzir a própria desproporção de gêneros existente na gagueira. Todos os sujeitos foram avaliados em relação à fluência da fala através de um protocolo padronizado. No grupo com gagueira, o grau de comprometimento da fluência variou entre leve e grave.
Ao todo, havia oito textos disponíveis para serem lidos. Cada sujeito leu dois desses textos em voz alta. Sendo assim, havia 16 leituras de pessoas com gagueira e outras 16 leituras de pessoas sem gagueira. Importante frisar que, mesmo o grau de gagueira variando entre leve e grave nos oito sujeitos com este distúrbio, o grau de gagueira nas leituras foi bastante reduzido. Em média, a porcentagem de sílabas gaguejadas durante as leituras foi de apenas 2,4%. Clinicamente, para ser dado o diagnóstico de gagueira, a porcentagem de sílabas gaguejadas deve ser igual ou maior do que 3%. Ou seja, as leituras produzidas pelos sujeitos com gagueira apresentavam níveis subclínicos de gagueira.
Também participaram do estudo dez alunos de graduação (3 homens e 7 mulheres). Eles ouviram todas as 32 leituras em ordem aleatória. Após cada audição, deveriam avaliar a fala e o falante. As características da fala que deveriam ser avaliadas, em um escala de 1 a 5, estão na tabela a seguir:
Características da fala | Pergunta | Escala de avaliação |
---|---|---|
Fluência | Como você avalia a fluência da leitura? | 1 = não muito fluente, 5 = muito fluente |
Naturalidade | Como você avalia a naturalidade da leitura? | 1 = não muito natural, 5 = muito natural |
Inteligibilidade | Foi fácil entender as palavras pronunciadas pelo falante? | 1 = não muito fácil, 5 = muito fácil |
Taxa de elocução | Como você avalia a velocidade de fala do falante? | 1 = muito lenta, 5 = muito rápida |
Volume da voz | Como você avalia o volume da voz do falante? | 1 = muito baixa, 5 = muito alta |
As características do falante que deveriam ser avaliadas, em um escala de 1 a 5, estão na tabela a seguir:
Características do falante | Pergunta | Escala de avaliação |
---|---|---|
Inteligência | Como você avalia a inteligência do falante? | 1 = não muito inteligente, 5 = muito inteligente |
Agradabilidade | Você achou o falante agradável? | 1 = não muito agradável, 5 = muito agradável |
Ansiedade | Você achou o falante ansioso? | 1 = não muito ansioso, 5 = muito ansioso |
Probabilidade de distúrbio de fala | Você acha que o falante pode ter algum problema de fala? | 1 = não muito provável, 5 = muito provável |
Cada ouvinte deveria avaliar todos esses quesitos. Importante frisar que os ouvintes não tinham nenhuma informação adicional sobre os falantes (idade, escolaridade, nível socioeconômico, etc.). Os ouvintes também não foram informados que metade dos falantes apresentava gagueira. Tudo o que eles sabiam sobre os falantes se restringia às gravações com leitura.
Os resultados do estudo são impressionantes. Mesmo com nível subclínico de gagueira, as leituras produzidas por pessoas com gagueira sempre ocasionaram avaliações mais negativas por parte dos ouvintes. Ou seja, os ouvintes consideraram que as leituras produzidas por pessoas com gagueira eram menos fluentes, menos naturais, menos inteligíveis, mais lentas e com maior volume vocal em comparação às leituras produzidas por pessoas sem gagueira. Além disso, as pessoas com gagueira foram percebidas como menos inteligentes, menos agradáveis e mais ansiosas.
Os autores do estudo questionaram se as respostas negativas em relação às pessoas com gagueira poderiam ter sido induzidas por perguntas que diretamente remetiam à habilidade de fala. Ou seja, se perguntar diretamente aos ouvintes sobre a fluência, a naturalidade, a inteligibilidade e a probabilidade de o falante apresentar um distúrbio de fala poderiam induzir respostas mais negativas. Para responder esta dúvida, foi feito um segundo experimento, com outros dez ouvintes, no qual apenas foram incluídas as perguntas sobre taxa de elocução, volume vocal, inteligência, agradabilidade e ansiedade. Os resultados novamente apontaram para impressões negativas ocasionadas pelos falantes com gagueira, os quais foram percebidos como falando mais devagar, falando mais alto, sendo menos inteligentes, sendo menos agradáveis e sendo mais ansiosos em relação aos falantes sem gagueira.
A análise das respostas para o grupo sem gagueira demonstrou os mesmos efeitos: os adultos sem gagueira que falavam mais lentamente, com menor naturalidade e com menor inteligibilidade também foram julgados como menos inteligentes, menos agradáveis e mais ansiosos. Assim, o julgamento negativo do ouvinte independe da gagueira. Basta que o falante apresente fala mais lentificada, menos natural e menos inteligível. A rigor, o estereótipo de “menos inteligente, menos agradável e mais ansioso” provavelmente atinge a todas as pessoas com algum distúrbio de comunicação.
O design do experimento, a meu ver, razoavelmente recria algumas situações de vida diária. Por exemplo, quando uma pessoa com gagueira telefona para um estabelecimento comercial ou para um prestador de serviço para obter alguma informação. Neste caso, o ouvinte geralmente não possui nenhuma informação sobre o falante. Tudo o que ele sabe se restringe à interação daquele momento. O estudo coordenado por McAuley nos mostra que, mesmo com níveis subclínicos de gagueira, o ouvinte percebe a menor fluência da pessoa com gagueira e automaticamente faz julgamentos negativos sobre o falante a partir desta percepção.
Referência
[1] Amick, L. J.; Chang, S-E.; Wade, J. & McAuley, J. D. (2017). Social and cognitive impressions of adults who do and do not stutter based on listeners’ perceptions of read-speech samples. Frontiers in Psychology, 8: 1148. [Artigo de acesso aberto].