Muda vocal e testosterona

jun 27, 2016 | por Sandra Merlo | Fisiologia, Hormônios, Musculatura de fala

Forma de onda e espectograma de tons puros sintetizados no software Praat. A linha azul representa os três tons puros indicados na camada de transcrição (218, 236 e 254 Hz). Esses tons puros representam o menor, o médio e o maior tom da voz infantil durante a produção sustentada da vogal [a]. Na infância, ainda não há diferenciação de tom entre a voz de meninas e meninos.

Durante a infância, não há diferenciação entre a frequência fundamental da voz dos meninos e das meninas. “Frequência fundamental” é um termo que se refere ao número de vibrações por segundo das pregas vocais. Esta medida é expressa em Hertz (Hz). Quanto mais alta a frequência, mais aguda é a voz. Quanto mais baixa a frequência, mais grave é a voz. A frequência fundamental da voz é popularmente referida como “tom da voz”, podendo ser “mais fino” (mais agudo) ou “mais grosso” (mais grave).

Em um artigo clássico na fonoaudiologia brasileira, Mara Behlau & colaboradores [1] analisaram a variação de frequência fundamental em 30 crianças, todas com idades entre 8 e 11 anos. A média foi de 236 Hz e o desvio-padrão foi de 9 Hz. Supondo uma distribuição gaussiana, dois desvios-padrões acima e dois abaixo da média delimitam 95% da distribuição. Assim, a frequência vocal infantil estaria delimitada entre 218 e 254 Hz. A figura utilizada neste texto ilustra justamente o valor mínimo, o médio e o máximo da frequência fundamental infantil. Abaixo, podem-se ouvir os tons puros desses três pontos da curva.

 

Em princípio, pode-se pensar que a muda vocal ocorre apenas em meninos, mas isso não é verdade. O que acontece é que ela é muito mais evidente nos meninos, mas também ocorre nas meninas. Nas meninas, a muda vocal ocorre entre 12 e 14 anos; nos meninos, ocorre entre 13 e 15 anos [2].

A muda vocal é deflagrada pelo início da puberdade. Da mesma forma que ocorre o aumento da estatura corporal (o “estirão”), também ocorre o aumento do tamanho da laringe. As pregas vocais das meninas aumentam até 4 mm em comprimento, enquanto a dos meninos aumentam muito mais: até 1 cm [2]. Quanto maior o crescimento das pregas vocais, mais grave se torna a frequência gerada. Embora a puberdade se desenrole ao longo de vários anos, o processo de muda vocal dura até um ano [2].

Pensando nos músculos em si, a testosterona induz hipertrofia muscular, ou seja, aumento de miofibrilas nas células musculares. A hipertrofia ocorre paulatinamente, de forma que o comprimento e a massa das pregas vocais aumentam pouco a pouco. As instabilidades de comprimento e massa geram instabilidades na frequência de vibração, quebras de sonoridade e mudanças de qualidade vocal.

Uma das mudanças mais marcantes da muda vocal refere-se ao ângulo da cartilagem tireóidea. Nos homens, é justamente a proeminência deste ângulo que é chamada de “pomo de Adão”. Nos meninos, o ângulo entre os lados direito e esquerdo da cartilagem tireóidea é de 110º, decrescendo para 90º nos homens [2]. Nas meninas, o ângulo é de 120º, decrescendo para 110º nas mulheres [2]. Ou seja, a redução no ângulo é maior no sexo masculino, aumentando a proeminência na região anterior do pescoço a fim de melhor acomodar pregas vocais mais longas.

Nos meninos, a entrada na puberdade está relacionada com o aumento da produção de testosterona pelos testículos. Assim, o aumento do tamanho dos testículos e o consequente aumento na concentração de testosterona circulante são os primeiros sinais da puberdade masculina (ver primeiro texto desta série). Como a muda vocal está correlacionada com o aumento do tamanho da laringe, ela se correlaciona também com o aumento da estatura corporal [2]. Um dos últimos caracteres sexuais secundários que se desenvolvem no sexo masculino são os pelos na face. Por isso, quando o adolescente apresentar barba desenvolvida, a muda vocal já deve estar completa.

A muda vocal também está sujeita a alterações [3]:

  1. A muda pode ocorrer de forma precoce, ou seja, antes dos 12 anos.
  2. A muda pode ocorrer de forma tardia, ou seja, após os 15 anos.
  3. A muda pode ocorrer de forma prolongada, ou seja, ultrapassando os seis ou doze meses típicos de duração.
  4. A muda pode ocorrer de forma incompleta, ou seja, a frequência da voz pode permanecer aguda demais.
  5. A muda pode ocorrer de forma excessiva, ou seja, a frequência da voz pode se tornar grave demais.

A voz é considerada adulta a partir dos 18 anos. Nesta idade, não deve mais haver qualquer resquício de muda vocal e instabilidades vocais típicas da muda. Durante a produção sustentada da vogal [a], mulheres e homens entre 18 e 45 anos de idade apresentam frequência vocal média de 205 e 113 Hz, respectivamente [1], o que claramente diferencia os sexos. Abaixo, a exemplificação da frequência fundamental média de mulheres e homens, através de espectogramas e de tons puros.

F0-mulheres

 

F0-homens

 

Referências

[1] Behlau, M.; Tosi, O. & Pontes, P. A. (1985). Determinação da frequência fundamental e suas variações em altura (jitter) e intensidade (shimmer) para falantes do português brasileiro. Acta AWHO, 4: 5-9.

[2] Behlau, M.; Azevedo, R. & Pontes, P. (2013). Conceito de voz normal e classificação das disfonias. In: Behlau, M. (Org.). Voz – o livro do especialista (pp. 53-84). Vol. I. Rio de Janeiro: Revinter.

[3] Behlau, M.; Azevedo, R.; Pontes, P. & Brasil, O. (2013). Disfonias funcionais. In: Behlau, M. (Org.). Voz – o livro do especialista (pp. 247-293). Vol. I. Rio de Janeiro: Revinter.